Quem não conhecer António Antunes Gaspar e falar com ele, nunca dirá que está perante um juiz. Em lugar do discurso rígido, reservado e formatado que caracteriza os magistrados judiciais, António Gaspar surpreende-nos com uma linguagem solta e descomplexada, como se pode verificar nesta entrevista que deu à VISÃO, feita a propósito da sua jubilação, há dias, após três décadas de trabalho na judicatura. António Gaspar sempre fez questão de procurar dispor bem os seus colegas juízes, logo de manhã, à chegada ao tribunal, que é já de si, como diz, “um sítio muito pesado”. Nada disto surge por acaso: o juiz agora jubilado, aos 65 anos, é dono de uma inspiradora história de perseverança, que aqui conta. Antes de ser juiz, foi durante 13 anos funcionário judicial, dez dos quais como secretário do CEJ-Centro de Estudos Judiciários, a escola dos nossos magistrados, que punha “a funcionar”, como lembra. Nesse período tirou à noite o curso de Direito, e, a certa altura, descobriu a vocação tardia para ser juiz. Atirou-se, então, ao respetivo curso de três anos, no CEJ (cujos alunos se designam como auditores de Justiça), e superou-o, com quase 40 anos. Até encontrou o amor da sua vida no Palácio da Justiça, em Lisboa – a então colega funcionária judicial Maria Leonor, com quem está casado há 38 anos e com quem teve dois filhos. Aqui chegados, é tempo de dar a palavra ao desassombrado e babado avô de Duarte, que está à beira de fazer três anos.
Qual é a sua origem social?
Toda a minha família é oriunda da Pampilhosa da Serra, no distrito de Coimbra. O meu pai – que, em termos de valores, foi sempre a minha referência -, depois de cumprir o serviço militar, ingressou na GNR, onde fez toda a carreira. A minha mãe era doméstica, tomava conta de nós – de mim e da minha irmã, nove anos mais velha.
Onde estudou?
Fiz o liceu em Santarém. E, quando estou a terminar o 7.º ano, dá-se o 25 de Abril de 1974. Foi depois imposto o serviço cívico para quem quisesse começar o ensino superior. E eu estava ali suspenso de duas coisas: ou iria para o serviço cívico, se fosse chamado, ou para o serviço militar obrigatório. Ando ali um ano sem saber para onde vou ou não, e acabei por não ir para lado nenhum. Na tropa já não eram precisos militares, a Guerra Colonial tinha terminado, e não fui para o serviço cívico porque não tive vaga. E foi aí que decidi ir trabalhar para o tribunal – a conselho da minha irmã, que era funcionária do Ministério da Justiça, e que também foi sempre uma referência minha, no sentido de me indicar caminhos e soluções para as opções que precisava de tomar. Se não ia estudar nem ia para a tropa, havia que trabalhar.
E que tribunal foi esse?
O antigo tribunal da Boa Hora, em Lisboa. Comecei aí, em 1977, aos 21 anos, o estágio de funcionário judicial. Depois prossegui essa carreira no Palácio da Justiça e, a seguir, com uma comissão de serviço no CEJ, a partir de 1980.
Comissão de serviço, essa, que duraria dez anos…
Sim. A partir de certa altura tinha a meu cargo um departamento do CEJ que planeava os cursos. Trabalhava com magistrados, que eram os diretores, quer de estudos quer de estágios, e que programavam os cursos, e eu, digamos assim, punha aquilo a funcionar. Fazia horários, turmas, distribuição de professores. Quando a formação era permanente, já nos tribunais, fazia a reserva de hotéis e dos espaços necessários. Era ainda responsável por um outro departamento, o de divulgação e de distribuição de textos de apoio. No fundo, desde a abertura ao fecho de um concurso para magistrados, até que eles saíssem do CEJ ao fim de três anos, acompanhava-os sempre, no apoio executivo.
Durante esse período, quantos auditores de Justiça lhe passaram pelas mãos, digamos assim?
Cerca de 1 400, que depois, como magistrados, se distribuíram pelos tribunais de Norte a Sul do País.
E o seu contacto com eles era apenas burocrático?
Não. Suponho que, por causa do meu feitio mais descontraído, havia auditores que me falavam de problemas pessoais, de família, da angústia que sentiam por não saberem se a avaliação seria positiva ou negativa.
Quando decidiu tirar o curso de Direito, fê-lo já com o objetivo de tentar ser juiz?
Curiosamente, não. Vou para o curso de Direito, em 1984, no sentido de me apetrechar com mais algumas ferramentas técnicas, para poder conseguir desempenhar o cargo a que tinha chegado, de escrivão de Direito. Quando saísse do CEJ, onde estava em comissão de serviço, a matéria que trataria num tribunal seria completamente diferente. Já tinha saído há anos, e as práticas, os procedimentos e os processos eram, para mim, uma realidade que tinha terminado quando fui para o secretariado do CEJ. Pensava: “Um dia que saia daqui vou para um tribunal e tenho de saber alguma coisa daquilo.”
Tirou o curso à noite?
Sim, em horário pós-laboral. Iniciei-o com 28 anos e acabei com 34. Foram seis anos porque, quando andava no 2.º ano, nasceu o meu filho mais velho e interrompi o curso em fevereiro, para dar apoio à família.
Foi duro, adivinha-se…
Sim. Depois das aulas, chegava a casa por volta da meia-noite e meia e às nove da manhã tinha de estar no CEJ. Houve uma fase, como funcionário, em que a formação era quase ambulante – era feita nas diversas comarcas pelo País fora. Nessa altura tinha de conciliar as aulas com essas atividades, que eram as que sustentavam a família. Durante o curso de Direito poucas férias tive, e não tinha fins de semana, que aproveitava para estudar e pôr as matérias em dia. Foram seis anos de uma luta grande, mas entusiasmante.
Como surgiu o clique para tentar ser juiz?
A partir de uma determinada altura, no 4.º ano do curso de Direito, percebi o que era um magistrado e a sua função. E a dos tribunais. Quando faço a síntese das experiências que tenho enquanto funcionário judicial, sobretudo as do CEJ, sinto que tenho alguma capacidade para exercer aquele cargo. Considerei que tinha alguma sensibilidade para as pessoas, para os seus problemas, capacidade para ouvir, sem tomar grande partido nem tirar grandes conclusões no período de audição. Depois, entendia eu, também tinha capacidade de análise, para compreender as dinâmicas sociais. Em suma, sentia que tinha vocação para ser juiz.
E atirou-se mesmo ao curso do CEJ…
Sim, em 1990. Na altura, havia nos estatutos do CEJ duas exceções para os testes de ingresso no curso. Uma, que era o meu caso, respeitava aos oficiais de Justiça que tivessem mais de dez anos de serviço e classificação nunca inferior a “muito bom”. Eu entrei por essa exceção que havia na lei, sem fazer o teste de ingresso.
Aposta-se que, sendo um homem da casa, ficou logo sob a suspeita de favorecimentos…
Antecipei esse problema – iriam por certo ser muito mais exigentes comigo do que com os outros. Toda a gente sabia que tinha sido lá funcionário durante dez anos. E o CEJ, e os professores que tivesse, iriam querer demonstrar que não havia favores para ninguém, que eu não teria a vida mais facilitada em relação aos outros. Costumo dar, a propósito, o exemplo daquele jogador de banca francesa que chega a um ponto do jogo em que coloca as fichas todas no centro da mesa, aposta tudo. Ou perde tudo ou ganha tudo. Comigo foi um bocado isso.
E essa exigência especial aconteceu mesmo?
Sim. Na prática, a tal exceção traduziu-se numa avaliação contínua, em que praticamente todos os dias era chamado para me serem formuladas questões para dar conta dos meus conhecimentos técnicos. Tive um trabalho redobrado em relação aos outros. Fui um bocado “bode expiatório”.
Quando, no curso do CEJ, teve de escolher a magistratura para que ia, o Ministério Público esteve sempre fora das suas cogitações?
Sim.
Porquê?
Fundamentalmente, pela independência. A estrutura do Ministério Público é hierarquizada. Já nós, juízes, tomamos decisões que podem ser revistas por tribunais superiores. Não temos hierarquia, um chefe, alguém que emita pareceres ou decisões para nós cumprirmos. Sentia-me mais à vontade na judicatura, até porque já tinha, como funcionário judicial, uma experiência de anos de alguém que mandasse em nós, de cumprir conforme nos iam determinando. Enquanto o Ministério Público tem autonomia, os juízes têm independência. Isso, ao fim e ao cabo, é que me fascinava, que me motivava. Mas, ao mesmo tempo, mais me responsabilizava.
Os juízes são, até, “irresponsáveis”…
Mas temos de ter uma consciência muito profunda e estruturada sobre o que é a responsabilidade do cargo que exercemos. Porque a determinada altura somos confrontados com o nosso estatuto e outras coisas, que de facto definem os juízes como “irresponsáveis”. O grande desafio é compreender isto: a pessoa ser irresponsável nas decisões que toma, mas ser profundamente responsável pelo cargo que exerce.
Lembra-se do primeiro caso que julgou?
Lembro-me. Foi, claro, na minha primeira comarca, a de Almeida, no distrito da Guarda, a que cheguei, em 1993, com 38 anos. Julguei, em tribunal singular, o caso de um roubo por um jovem, que entrou na casa de uma idosa, pelo telhado ou por uma janela, já não me recordo bem, para lhe tirar um fio de ouro, e que lhe arrancou com grande violência, ao ponto de a senhora ficar ferida no pescoço. Fugiu e foi apanhado pela GNR.
Que sentença lhe aplicou?
Condenei-o a uma pena de prisão suspensa, na condição de ter um acompanhamento de reinserção social. Era um rapaz que estava à deriva. A família era desestruturada, e ele mostrava sinais de grande debilidade emocional. Foi a decisão que tomei na altura.
Para quem vivia em Lisboa, foi colocado longe…
Levava cinco horas de comboio em cada viagem de ida e volta Almeida-Lisboa, quando vinha ver a família. Na altura, comprei a prestações um computador portátil. Já havia o Intercidades, eu ligava o computador a uma ficha que o comboio tinha – as baterias ainda eram de pouca duração – e conseguia trabalhar durante aquelas viagens.
Qual foi a pior comarca que apanhou?
A de Matosinhos. Quando lá cheguei, em 1996, ano em que houve uma reforma profunda do Código de Processo Civil, tinha pendentes cerca de cinco mil processos cíveis. E ainda tinha uma herança de uns 400 processos que estavam num armário, para proferir sentenças de julgamentos já feitos. Tive de desenvolver um trabalho muitíssimo intenso. Foi uma altura difícil.
Como terminou esse pesadelo?
Estive lá durante um ano, a pendência baixou para metade, mas tive a ajuda de um colega que foi nomeado como auxiliar.
Ficou com a fama de procurar dispor bem os seus colegas juízes, logo de manhã, mal chegava ao tribunal…
O tribunal já é um sítio muito pesado – e eu utilizava a minha forma de estar que, diria, é de uma alegria permanente. E, depois, tinha um certo à-vontade com eles: conhecia muitos dos colegas que tive, nos vários tribunais por que passei, desde os meus tempos de funcionário no CEJ.
E viu resultados nos seus colegas, nessa tarefa de contrariar o peso do cargo?
Senti que alguns colegas, com o decorrer do tempo, iam-se alterando, tornaram-se mais dóceis, mais comunicativos, mais humanos, até. Tive, por exemplo, um colega no tribunal de Loures que apelidava de “maldisposto militante”. Fosse pelo que fosse, aquele homem estava todos os dias maldisposto. Às vezes até por coisas que nem ele próprio sabia quais fossem. Era um hábito. E eu, todos os dias, quando entrava no tribunal de manhã, ia cumprimentá-lo. Tinha ali dois dedos de conversa com ele. Estivemos os dois a trabalhar naquele tribunal durante cerca de seis anos e notei que ele, pelo menos para mim, e creio que para os outros colegas também, se tornou uma pessoa muito mais calma, comunicativa, até alegre. Passe a imodéstia, acho que isso se deveu à rotina que tinha com ele. Por sinal, criámos uma forte amizade.
Qual foi o caso mais difícil que julgou?
Os casos de abuso sexual de crianças são os mais difíceis de julgar. Pela matéria, pela prova, por tudo… Essencialmente pela parte humana envolvida. São muito difíceis.
Passou pela instrução criminal, fase processual hoje tão mediatizada?
Passei. Fui durante quatro anos juiz de instrução criminal no tribunal de Santarém. Foi uma experiência muito rica. Mas também é uma fase muito perigosa, quando lidamos com factos muito recentes, em cima do acontecimento, às vezes com escassos indícios da prática de um crime ou de crimes. No entanto, se a experiência foi enriquecedora, senti igualmente nesse período o peso e a responsabilidade de decidir o retirar da liberdade de um cidadão. Quando se diz a um arguido, olhos nos olhos, “o senhor vai ficar em prisão preventiva”, esse é um ato terrível em termos humanos. Se tem de ser, não há outra forma de dizer isto. Mas, nestes casos, sente-se, na verdade, o peso do poder de decisão que o juiz tem. E, para mim, foi dos atos mais difíceis que tive de praticar.
Mudando de tom: qual foi o caso mais caricato que julgou?
Talvez tenha sido o de um indivíduo, jovem, que julguei e condenei várias vezes por condução sem carta. E um dia, depois de mais uma vez o ter condenado pelo crime do costume – ou porque ele se demorou mais um bocado ou porque eu saí logo a seguir ao julgamento -, vejo-o cá fora a sentar-se ao volante de um carro que estava estacionado no parque do tribunal. E arrancou. Tinha acabado de ser de novo condenado e foi outra vez conduzir…
E, depois, voltou a apanhar esse jovem em tribunal?
Sim. Quando voltou a ser julgado, sempre por condução sem carta, já não houve contemplações. Foi condenado a uma pena de prisão efetiva, a ver se ele se consciencializava, passe a expressão, da completa falta de consciência de tudo que tinha.
Como lidou com a celeridade processual, hoje tão exigida?
É evidente que não conseguimos hoje aceitar, por exemplo, que um processo ande em tribunal durante dez, 15 anos, por causa de expedientes dilatórios, para se decidir uma indemnização a uma pessoa que teve um acidente de viação e que ficou estropiada. E, de facto, os juízes têm de estar preparados para a pressão de celeridade que atualmente existe. Mas o toque, aqui, é sempre o mesmo: bom senso e equilíbrio. E o cidadão não pode ser prejudicado pela exigência da celeridade, quando é pedida além do exigível. Ou seja: o juiz não pode ir para um julgamento e passar por cima de determinado tipo de procedimentos, ou acelerar as coisas de forma a que a pessoa não tenha a possibilidade de se defender, de apresentar os seus argumentos e as suas testemunhas. É muito comum reagir-se mal a um processo que tenha dezenas de testemunhas. Mas há que ver se elas servem para alguma coisa, há que ouvi-las. Com isso o julgamento fica mais demorado? Pois que fique. Até considero essa uma questão de direitos humanos.
Está a falar do chamado “tempo da Justiça”…
A Justiça tem, de facto, o seu tempo. O julgador tem de ter o seu tempo – aquele que seja o estritamente necessário para formar a sua convicção em consciência. Este é o ponto base. É preciso tempo para estudar, ver, ponderar. E é também preciso ter muito bom senso em relação aos factos e às pessoas envolvidas. Ao fim e ao cabo, julgamos os factos que as pessoas praticaram. E isso é uma construção interior que vamos fazendo. Em sentido figurado, um dia cai uma pedra e no dia seguinte temos de a levantar e saber onde a vamos colocar. Às vezes também acontece ser necessário reformular o raciocínio já feito. O comportamento humano apresenta muitas facetas e nós temos de ver todos os aspetos que são importantes – e ocasionalmente perdemo-nos um bocado com aqueles que não o são, gastando tempo que não devíamos gastar. Mas hoje a celeridade processual, no contexto geral, é muito maior do que há uns anos.
Jubilou-se ao fim de 30 anos como juiz, mas na 1.ª instância, o que há de ser muito raro. Porque não se candidatou à 2.ª instância, ao Tribunal da Relação?
Nunca calculei essa possibilidade de ir à 2.ª instância. Como já entrei tarde nisto, fiz as contas e concluí que não chegaria lá.
Essa circunstância deixa-lhe um sabor amargo de frustração?
Não, não. Como disse, nunca foi um objetivo profissional que tivesse traçado.