Na preparação da próxima viagem – além do certificado digital de vacinação contra a Covid-19, da vacina contra a febre amarela, dos comprimidos para proteger da malária, dos antidiarreicos e do repelente de mosquitos – certifique-se de que não leva o selfie stick na bagagem. Ou se o levar, pondere bem se e como o vai usar. Talvez um penhasco com uma vista espetacular não mereça assim tanta atenção. Exercite antes a memória e fixe uma bela recordação.
Um estudo da Fundação iO, especializada em Medicina Tropical e do Viajante, revela que entre janeiro de 2008 e julho de 2020, um período de 12 anos, pelo menos 379 pessoas morreram no mundo a tirar uma selfie, o que dá em média uma morte a cada 13 dias. Uma tendência crescente, pois apesar de a pandemia ter provocado um interregno mundial nas viagens de lazer e turismo, nos primeiros sete meses de 2021, já ocorreram 31 acidentes fatais – um por semana.
“É um problema emergente que, pelas dimensões que adquiriu, já pode ser considerado de saúde pública. O estudo ajudou-nos a dimensioná-lo e é o primeiro passo para tomar medidas para o enfrentar ”, afirma Manuel Linares Rufo, presidente da Fundação iO e investigador principal do estudo, o maior realizado até à data, ao jornal El País.
Entre os mortos, 141 eram turistas e 238 população local, o que mostra que a propensão para o risco é muito maior entre os turistas, tendo em conta que apenas uma pequena fração da população mundial viaja num determinado dia.
Os países que registam mais mortes são: Índia (100), EUA (39), Rússia (33), Paquistão (21), Brasil (17), Austrália (15), Espanha (15), Indonésia (12), México (10), Bolívia (7), Reino Unido (7), Portugal (2).
No nosso País há registo, em 2014, de um casal polaco que caiu numa ravina com 80 metros no Cabo da Roca, em Sintra, depois de passar uma barreira de segurança para tirar uma selfie com os dois filhos menores que sobreviveram; em 2018, de um casal australiano que caiu da falésia na Praia dos Pescadores, na Ericeira.
Do texto, que em breve será publicado no Journal of Travel Medicine, não fazem parte os lugares onde aconteceram mais mortes por selfie associadas, mas os autores do estudos identificaram-nos: Cataratas do Niágara (fronteira EUA e Canadá), Glen Canyon (EUA), Charco del Burro (Colômbia), Praia da Penha (Brasil), Cachoeira Mlango (Quénia), Montes Urais (Rússia), Taj Mahal e Vale Doodhpathri (Índia), Ilha Nusa Lembongan (Indonésia) e Arquipélago Langkawi (Malásia).
Com 216 casos, as quedas em locais como cascatas, falésias e telhados são a principal causa que na maioria das vezes transforma a tão esperada fotografia numa tragédia. Seguem-se acidentes relacionados com um meio de transporte (123), afogamento (66), arma de fogo (24), eletrocussão (24) e ferimentos sofridos ao fotografar animais selvagens (17). É entre os adolescentes até aos 19 anos (41%) e na faixa dos 20 anos (37%) que mais acidentes mortais acontecem, com a idade média do falecido nos 24,4 anos, sendo mais homens do que mulheres, numa proporção de três para dois.
Sempre que as vítimas são pessoas conhecidas nas redes sociais, o impacto e o mediatismo aumentam. Como o caso de Sofia Cheung, 32 anos, influencer com mais de seis mil seguidores no Instagram, conhecida por praticar desportos radicais e ao ar livre, como canoagem e escalada e por publicar fotografias em situação de risco. Morreu em julho quando escorregou e caiu numa queda de água em Hong Kong. Ou há dois anos, o caso da alpinista taiwanesa Gigi Wu que gostava de escalar montanhas de biquíni e fotografar-se nos picos nevados em poses e composições impressionantes. Caiu de um barranco, mas foi a hipotermia a causa da morte.
“A ideia de fazer o estudo surgiu ao ver o impacto impressionante das notícias sobre essas mortes e a escassa perceção do problema na literatura científica e nas recomendações da medicina do viajante”, explica Manuel Linares Rufo. “Até certo ponto, o trabalho é herdeiro da pandemia. Com ele, foram desenvolvidas muitas ferramentas que agora podemos usar para fenómenos como este e ajudar a enfrentá-los. Uma opção seria identificar os locais mais perigosos e alertar os visitantes, algo em que os fabricantes de telefones, programadores de aplicações e administradores também deveriam estar envolvidos. A nível local, devem ser realizadas ações de formação”, acrescenta o investigador.
Para Liliana Arroyo Moliner, socióloga e autora do livro Tu no eres tu selfi (Tu não és a tua selfie, em tradução livre), salienta que essas fotografias, assim como as redes sociais “converteram-se numa forma de relação e de comunicar, mas, como é óbvio, na grande maioria dos casos são uma forma saudável de se expressar que pode ser muito criativa e uma forma de partilhar preocupações e hobbies.”
Para se compreender como essa forma inofensiva de relacionamento pode levar a comportamentos de risco, Liliana Arroyo aponta alguns fatores: “As redes sociais recompensam os conteúdos mais extremos, porque funcionam com dinâmicas em que são esses que conseguem atrair mais atenção. O prémio de se tirar uma selfie muito arriscada é a valorização social e isso dá uma sensação de adrenalina a quem a faz por cada ‘gosto’ que recebe. Isso, por sua vez, leva algumas pessoas que precisam mais dessa validação social a ir por novos caminhos em busca de limites e novas recompensas, e aí entra a capacidade de cada um para avaliar se esse prémio vale o risco ou não.”