Perdoem-me, mas é inevitável: o relato que se segue, escrito com o coração, tem um tom piegas e umas pingas refrescantes de Moscow Mule.
É que já passaram 19 meses, mas ainda recordo os pormenores da última vez que saí à noite para dançar numa discoteca, rodeada de gente desconhecida, sem que isso representasse algum problema. Foi antes da pandemia, claro, no fim de semana anterior a tudo fechar, no início de março de 2020. Na altura, a Primorosa, em Alvalade, estava cheia e, embora já se falasse de Covid, a liberdade com que dancei não fazia adivinhar o que iria acontecer durante mais de um ano e meio. A minha memória há ser idêntica a todos os que gostam de sair à noite e de dançar com casas a abarrotar.
Durante esse longo espaço de tempo, houve um setor que definhou e que só agora teve autorização para reabrir portas. Contas feitas, entre mortos e feridos cá estamos para brindar a esse momento, ainda que com um piquinho a azedo. A verdade é que sair à noite, para alguém como eu, é igual a andar de bicicleta – uma vez na pista de dança, com todos entregues em comunhão à música, e sobretudo sem máscara, nem parece que o comboio da pandemia passou por nós.
Antes de sair de casa para esta reportagem, volto a ler as regras que iam entrar em vigor dentro em pouco: “De acordo com as normas da DGS e legislação em vigor, é obrigatória a apresentação à entrada do Certificado Digital Covid-19 da União Europeia: de vacinação completa, de recuperação ou de teste negativo. Não serão admitidos auto-testes.” É o preço a pagar para voltar a esta normalidade. E viva a Ciência.
Façamos a purga
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Foto: Álvaro Isidoro
Leonor, Teresa, Marta, Matilde e Joana têm todas 25 anos e uma amizade que vem dos tempos da escola. Acabaram de chegar ao Village, algumas ainda de cerveja na mão, outras com restos da animação do jantar que tiveram nas redondezas. “Hoje vamos divertir-nos”, garante Leonor, ao mesmo tempo que se mostra preocupada com o trabalho na área do marketing digital, que começa logo de manhã cedo. Matilde até traz na mochila um pesado computador, que há de deixar ao cuidado do barman da esplanada.
Apesar de, durante este longo tempo, terem sempre arranjado alternativas à noite, fora de Lisboa e em casa de amigos (com testes para fugirem de contágios), estas cinco amigas não quiseram perder a Festa da Purga, anunciada nas redes sociais do Village Underground, para quando passasse um minuto da meia-noite e caíssem as restrições pandémicas.
Logo a seguir, saem de um TVDE três amigos brasileiros, há seis meses a viver em Portugal, “fugidos do bolsonarismo”. Anita, Luoi e Luca têm 30 anos e um desejo de aproveitar a energia positiva que constatam na cidade, em que se sentem sempre de férias, apesar de já terem todos ocupação nas suas áreas profissionais. Nem sabem bem ao que vêm, até porque na nova zona Ribeirinha, junto ao Terreiro do Paço, onde estiveram até agora, já parecia que era dia 1 de outubro, o dia da Libertação.
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Foto: Álvaro Isidoro
E pela primeira vez nesta noite, falam-me do Lux. Não há de ser a última. Todos querem ir a esta discoteca em Santa Apolónia, mas isso terá de ficar para daqui a 24 horas, se a multidão o permitir. Já faltou mais,
Os grupos vão crescendo à porta do Village. Bebe-se pelo gargalo da garrafa de vinho ou de cerveja, espera-se que chegue mais um amigo também, enquanto começa a formar-se a fila para mostrarmos o certificado e o cartão de cidadão. Só há uma pessoa a controlar isto tudo e é manifestamente pouco.
Selfies, como não poderia deixar de ser
Já passei no controlo. E dirijo-me para a Sala, onde é preciso pagar 10 euros para entrar, com direito a consumíveis. Outra fila. É aqui que vejo a atriz Inês Castelo Branco a tirar selfies com umas fãs, preocupando-se em esconder o copo de vinho tinto. “A Inês é muito gira.”
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Aconteceu. Já entrei. Já entrámos todos, com a máscara guardada para as ocasiões (que nesta noite e nas próximas só será obrigatória no transporte para casa). Durante as mais de duas horas que se seguiram, só vi duas pessoas a taparem o rosto com este acessório que se tornou tão comum entre nós. Bom, vi esses dois e mais uns quantos – todos os empregados da casa,
José Galvão, 45 anos, acaba de se cruzar violentamente com um desconhecido e sorri: “Que saudades tinha de levar um encontrão.” Saudades disso e de muito mais, pois há coisas que só acontecem nestes ambientes, bem sabemos ele e eu. “Sempre preferi a noite ao dia, mas não é a dança que me move. É a maior genuinidade das pessoas, poder estar com os meus amigos e beber uns copos”, nota. É por isso que fez questão de estar aqui, no dia zero do regresso à vida noturna. “Hoje e amanhã devem ser dos piores dias para sair, mas não quis perdê-los por serem datas históricas.” José é mais um que revela ter planos para ir ao Lux no dia 1, mesmo suspeitando que estará a rebentar pelas costuras.
Música com sorrisos
A esta hora quase nórdica a Sala ainda está a meio gás, embora o DJ Gustavo Rodrigues, 42 anos, já esteja de sorriso na cara a dar música eletrónica a quem correspondeu ao seu apelo. Além de uma carreira de duas décadas junto à mesa de mistura, Gustavo gere este espaço do Village, que esteve fechado desde março de 2020. “Sou um filho do SNS, acredito na Ciência e na segurança de estarmos todos aqui, já era hora. Fiz questão de ser eu pôr música esta noite. Depois, a Sala prosseguirá com a sua programação”, revela. “Já não estava era habituado a este calor que as pessoas libertam”, segreda bem alto para se fazer ouvir, antes de regressar aos pratos.
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A esplanada está bem composta e é neste espaço ao ar livre que os notívagos – essencialmente jovens na casa dos vintes, claro está – aproveitam para pôr a conversa em dia, abraçar encontros inesperados, flirtar com o vizinho do lado, fumar mais um cigarro.
Percebi, em conversa com este e com aquele, que não há aqui clientes habitais. A maioria é estreante, mas ouviu falar da Festa da Purga, a primeira oficial sem máscara, e acorreu ao chamamento. Quando decido sair, não por que me apetecesse ir embora, mas por que tinha este artigo para escrever, noto o novo fluxo de pessoas a entrar, talvez empurradas dos bares que ainda fecharam às duas da manhã. Ao portão, que dá para a Avenida da Índia, o porteiro (que esta noite se estreou enquanto controlador de certificados) estava a mandar formar uma fila. “Neste momento, o espaço está lotado. Têm de esperar.” O que importa isso, quando a tão aguardada libertação está a dois passos dali?
Já depois de chamar o táxi, que tardou bastante a chegar, ouvi a frase que roubei para o título deste relato emotivo e nada parcial: “Este é um regresso à normalidade com a máscara no bolso”, resume João Moreira, copy de uma agência de publicidade há apenas quatro meses, precisamente antes de entrar para o TVDE, ao lado do que resta do grupo das cinco amigas que vinham para se divertir. Pelo que pude observar, diria que o objetivo delas foi cumprido. E o meu também – mesmo a trabalhar, deu para desenferrujar as pernas e o espírito também.