“O que é que Marilyn Monroe, Janis Joplin e Amy Winehouse tinham em comum?” A pergunta é o pontapé de saída para o livro Reféns das Próprias Emoções – Um Retrato Íntimo das Pessoas com Personalidade Borderline (Bertrand Editora), disponível nas livrarias no início deste mês.
“Os pacientes com Perturbação Borderline da Personalidade (PBP) são pessoas incompreendidas, como incompreendida é a doença que as faz sofrer”, afirma o autor. João Carlos Melo, médico no Hospital Fernando da Fonseca, onde coordena o Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria, na Amadora, sentiu-se motivado a escrever sobre o assunto com a meta de humanizar a doença de que sofrem alguns dos pacientes que acompanha e comuns às figuras públicas citadas no início da obra. «Eram excessivas, intensas, as relações que estabeleciam eram dramáticas e tumultuosas e tinham atitudes autodestrutivas”, faz saber.
Estima-se que esta condição misteriosa, retratada em filmes como “Vida Interrompida”, “Guia Para Um Final Feliz” e “Diamante Bruto”, afete 1,4 % da população. Segundo a National Alliance on Mental Illness (NAMI), as causas são ainda desconhecidas, embora se admita que a genética, a química cerebral e as situações traumáticas na infância tenham papel decisivo no aparecimento dos sintomas. O estigma social é a principal razão que leva a que resistam a procurar ajuda, ainda que possam ter uma vida dita normal (Ver caixa sobre os famosos com esse diagnóstico).
Sentir-se invisível
Catarina Veiga tem 30 anos, um filho com quatro e uma vida cheia de mudanças. Natural do Rio de Janeiro, no Brasil, foi lá que conheceu o agora ex-companheiro. Antes disso, teve uma vida atribulada, fosse pela sensibilidade excessiva a situações comuns ou devido às dificuldades no relacionamento com os mais próximos, o que a levava a sentir-se profundamente só e a refugiar-se na leitura e num mundo só seu.
“Desde os 14 anos e até aos 22, andei em muitos médicos que me disseram que tinha ansiedade, depressão e, até, autismo”, conta. Alternava entre estados apáticos e de euforia, recorreu a estupefacientes e ao álcool, que só agravavam os sentimentos negativos. Para sair do fundo, seguiu as prescrições médicas, foi submetida a estimulação magnética transcraniana, fez psicanálise durante oito anos e ainda tentou os tratamentos alternativos. “Ninguém me via, tudo falhou”, lamenta.
Procurou apoio numa comunidade de permacultura, na Bahia, e acabou por viver lá durante algum tempo: “Os retiros de meditação permitiram que me conhecesse melhor”. Há quatro anos foi mãe e, em 2019, o casal decide viver em Portugal. Nesse inverno, foi-se abaixo novamente. “Bastava um comentário mais rude ou sinais de que ele não estava presente para eu ter reações desproporcionais e sentir-me incapaz de ter mão em mim, a relação com a comida era um caos e cheguei a cortar-me.”
Sintomas mais comuns da doença
- Ataques intensos de depressão ou ansiedade
- Medo incontrolável de abandono por amigos, familiares e pessoas próximas
- Auto-imagem distorcida
- Graves alterações de humor, irritabilidade e acessos de raiva
- Comportamento destrutivo (abuso de substâncias, gastos excessivos, condutas de risco)
- Ideias suicidas e tentativas de suicídio
Profundamente abalada na sua autoestima, acabou por encontrar um psiquiatra que lhe fez o diagnóstico: transtorno borderline complexo, que tinha a ansiedade e a depressão como fatores associados. O início deste ano representou um ponto de viragem. “Fiquei muito emocionada e grata quando me acolheram no grupo terapêutico em que pacientes e psicoterapeutas falavam a mesma língua que eu”, recorda.
Reduziram-lhe a medicação e passou a tomar estabilizadores do humor. Outro fator decisivo para a sua melhoria foram as consultas que envolveram o seu companheiro, “para que pudesse lidar melhor com os gatilhos que levam ao descontrolo”. E a terapia individual que continua a fazer. Agora consegue sentir-se mais plena como pessoa e no seu papel de mãe, mas já lá voltamos.
Gente da “fronteira”
João Carlos Melo tem 60 anos e uma vida ao serviço da saúde mental. Está familiarizado com estes casos e usa uma abordagem analítica, com o modelo da terapia familiar. O psiquiatra começa por dizer que “esta doença não devia ser encarada como uma perturbação da personalidade, pelo estigma associado”. Mais grave do que as neuroses e menos do que as psicoses, situa-se numa zona de fronteira entre ambas (daí a designação “border” ou limite, cunhada nos anos 1930). Foi apelidada, por certos autores, de ‘caixote do lixo das doenças mentais’, por permanecer numa categoria indefinida, sem um diagnóstico claro. “Enquanto que numa depressão existe alteração do humor, aqui não há um problema de base mas várias dimensões afetadas”, explica o também psicoterapeuta e grupanalista.
A doença costuma manifestar-se na juventude e em função do grau avassalador e denso da experiência. “No passado este quadro clínico era atribuído a traumas de infância, mas os estudos epidemiológicos mostram que é um temperamento que nasce com a pessoa.”
O especialista recorre à metáfora do “termostato avariado”. A impossibilidade de controlo deve-se a alterações químicas no cérebro, mais concretamente, “existe uma desregulação da amígdala, situada no sistema límbico, e o córtex pré-frontal, a sede da razão e da lógica”. Na prática, quem vive com este problema de saúde mental tem “um sofrimento insuportável com o qual lida como sabe, na tentativa de adaptar-se, pela raiva, acessos de agressividade e comportamentos de automutilação”. Não raras vezes, entregam-se a condutas de risco e abuso de substâncias.
Embora estes sintomas sejam associados pelos outros a questões de caráter – “é tudo birras ou mau feitio” – eles traduzem “a dificuldade em lidar com estímulos, sobretudo interpessoais”, que se manifestam através de “impulsividade, emoções desreguladas e uma reação exacerbada a situações sentidas como injustas e de rejeição ou abandono”.
Ser acompanhado na luta
Nem todos a conseguem travar. Nos casos em que não o conseguem, o desfecho é dramático. “Comparo o sofrimento que sentem ao dos soldados que levavam cápsulas de cianeto para o campo de batalha, porque se fossem apanhados, a tortura não era uma opção.” Quando estes pacientes se cortam, o médico vê nesse comportamento autolesivo “uma forma de aliviar a dor psíquica com a física.
O comportamento agressivo com os demais tem também uma legenda: “Se são agressivos e exigentes com os outros, que os acusam de chantagem, fazem-no por se sentirem muito magoados.” Como uma chamada de atenção do tipo “se não me agarram, só capaz de matar-me”. Curiosamente, depois de internadas, não “acabam a fita”, reformula, “o que acontece é sentirem-se amparadas para conseguirem regular-se”.
A solução passa pelo “acompanhamento individual e de grupo, com intervenções inspiradas na terapia comportamental dialética e tem uma duração média de três meses”, havendo ainda lugar a sessões dirigidas aos pais também frequentam, “para poderem ajudar os filhos a superar as suas dificuldades”. O tratamento farmacológico faz parte, mas não basta para melhorar a qualidade de vida e facultar estratégias eficazes na hora de lidar com situações de crise.
Numa entrevista à VISÃO, o psicanalista Carlos Amaral Dias referia-se a uma doença incompreendida (em 2004 publicou um livro sobre o tema, Costurando as Linhas da Psicopatologia Borderland (Estados-Limite), editora Climepsi): “As personalidades limite, ou borderline, eram consideradas histerias no tempo de Freud. Os borderline e com esquizofrenia não se reconhecem naquilo que se mantém constante neles. Não têm personalidade, têm outra coisa. E têm raiva narcísica, tentativas de exercer um poder que é vazio.”
Dito isto, impõe-se a questão: o que fazer se for próximo de alguém que sofre desta condição, marcada pelo vazio interior, angústia e questões de identidade? “Sempre que possível, é uma grande ajuda olhar para além do comportamento indesejado e validar o que a pessoa sente.”
Tudo o que importa
Depois da odisseia que só ela pode avaliar, Catarina Veiga já consegue mudar o registo no pico das suas crises: “Lembrei-me do que aprendi no grupo terapêutico, a aceitação radical do que acontece em vez de bater o pé ou gritar e virar costas se for preciso e não perder a cabeça.” Parece fácil, mas para ela é uma vitória suada.
Entretanto, ela e o ex (separaram-se no passado mês de dezembro) decidiram trocar Cascais para Aljezur, um local que já conheciam e onde o filho tinha feito amigos. “Terminamos o relacionamento de uma forma e começamos de outra”, afirma Catarina, que aprecia “a distância saudável” entre ambos e chegam a fazer passeios na praia com a criança.
Filha de pais separados desde os 17 anos, ela lembra-se bem de, mesmo antes disso, não se sentir suficiente para a vida nem entender porque é que os outros não tinham de passar por aquelas provações e negativismo. “Tive uma infância tranquila e não vivi traumas familiares”, esclarece, para logo acrescentar: “Traumático foi o relacionamento amoroso no início da minha adolescência, que durou até aos 23 anos.”
Pessoa de poucas amizades, está preparada para um novo ciclo. Começou a trabalhar num hostel e considera-se uma mulher diferente, mais segura e afortunada, por ter encontrado quem a visse e ajudasse. Entendeu partilhar o seu testemunho (sem imagem) para combater o estigma: “Dizer que somos malucos, irrecuperáveis ou com uma falha eterna não é o caminho; normalizar esta condição e falar dela, sim.”
Voltando ao médico e autor do livro sobre o tema, ele deixa uma nota: “Abordar o sofrimento destas pessoas de forma construtiva e positiva permite estabelecer uma aliança que dá sentido à vida e, correndo o risco de ser lamecha, ser uma cura pelo amor.”
Famosos com Perturbação Borderline (ou Limite) da Personalidade (PBP)
Pete Davidson – Humorista do Saturday Night Live, tem vindo a desmistificar tabus sobre a sua condição, como a de que não se pode ser feliz nos namoros ou estar num relacionamento
Brandon Marshall – Jogador de futebol americano da National Football League que falou publicamente da doença e fundou uma instituição de caridade para a causa
Marsha M. Linehan – Diagnosticada com esquizofrenia em criança, estudou psiquiatria e criou a terapia comportamental dialética, que tem sido usada com sucesso
Vincent van Gogh – Especula-se que sofria de doença bipolar, epilepsia e, até, de intoxicação por metais pesados, mas à luz da ciência atual, seria diagnosticado com PPL
João César Monteiro – No livro de Maníacos de Qualidade, de Joana Amaral Dias (Esfera dos Livros, 2010), o excêntrico cineasta português foi apresentado como sofrendo da doença
Amy Winehouse – A cantora com uma voz prodígio lutou publicamente contra o abuso de álcool e a depressão. Após a sua morte, os médicos colocaram a hipótese de ela ter a condição
Marilyn Monroe – Se fosse viva, a icónica atriz teria o diagnóstico de PBP, pela “personalidade “volátil, instável e impulsiva”, que “ansiava por amor e estabilidade, atacando quem gostava”, segundo a jornalista científica Claudia Kalb, autora de obra sobre famosos com doença mental