O caso veio agitar o meio literário e jornalístico português. É a primeira denúncia em Portugal de assédio sexual contra uma figura pública revelada em “on” e com um nome, escalando assim o movimento #metoo nacional que tem vindo a crescer nas últimas semanas.
A jornalista e escritora Joana Emídio Marques acusou ontem publicamente o reputado editor, tradutor e poeta Manuel Alberto Valente de a ter assediado em 2012. Manuel Alberto Valente, 75 anos, é uma figura de referência da literatura em Portugal, cujo mercado ajudou a redesenhar nas últimas quatro décadas, foi diretor editorial da Porto Editora entre 2008 e 2020, de onde saiu reformado, colaborou com diversos meios de comunicação social (atualmente escreve no Expresso) e é casado com a também conhecida editora Maria do Rosário Pedreira.
“Gostava que os jornais falassem ( também) dos casos de assédio que se passam dentro das redações, nos meios onde, supostamente, reina a liberdade e o humanismo como o meio literário e, se querem imitar as americanas, digam os nomes desses homens, porque a coragem é cousa que não tem limites”, começa a jornalista que trabalhou no Diário de Notícias e colabora com o Observador, onde escreve sobretudo sobre literatura.
“No meio literário, por exemplo, toda a gente sabe que Manoel de Oliveira assediava e perseguia as suas jovens colaboradoras. Que Saramago, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues assediavam mulheres e não sabemos sobre quantas usaram o seu poder para obter favores sexuais. Uma questão geracional? Não. Uma questão de percepção da mulher como objecto e não como gente. Deixem-me contar uma história, houve outras, mas esta é particularmente ilustrativa, porque muitas mulheres partilharam comigo ter sofrido situações idênticas com a mesma pessoa, mas não só estão caladas como me vão repudiar por estar a contar esta história. Lamento. Lamento-as”, prossegue.
O alegado assédio, tal como o descreve num longo post de Facebook, que títula como “mais um dia normal”, conta-o com todos os detalhes. Revela uma investida imprópria que sentiu como uma “humilhação”, num jantar de trabalho no âmbito de uma história que estava a investigar, depois de uma série de mensagens “pseudo-sexutoras” trocadas no Facebook.
«No ano de 2012 começou a correr a notícia de que a Porto editora ia comprar a mais importante chancela de poesia a Assírio e Alvim, cujo catálogo tinha nomes como Herberto Helder. Para quem está fora do meio literário isto pode não significar nada. Para quem trabalha no meio era uma cacha (um furo jornalístico) e eu queria-o para mim. Era “amiga”, no facebook, do editor e homem forte da Porto Editora, que já então me enviava mensagens pseudo-sexutoras (não é erro, inventei esta palavra). Aceitei jantar com ele para falarmos da compra da Assírio. Não por acaso ele marcou o jantar num fim de semana em que a sua mulher estava num festival literário no México. Mas esta ligação eu só fiz muito depois. Fomos a um restaurante (caro) ali ao fundo da rua do Alecrim, um que serve sushi. Ele, cavalheiro-me a ajudar-me a despir o casaco, a puxar a cadeira para eu me sentar. Estava eu a ficar bem impressionada, quando ele tira do bolso uma caixinha de comprimidos que espalhou na palma da mão e aproximou do meu rosto e lançou: estás a ver? Não tenho aqui nenhum comprido azul. Eu, que acabara de conhecer o homem e não queria parecer burra, forcei o meu cérebro a tentar entender a “piada” mas não consegui. “Oh, soltou ele ” não te faças de sonsa”. Assim, logo a tratar-me por tu e a insultar-me de forma velada. Nesse momento eu entendi ( se nasces mulher aprendes cedo a descodificar alusões sexuais): o homem estava a mostrar-me, a dizer-me que não tomava Viagra. E aquilo que era para mim um jantar de trabalho tornou-se logo ali uma humilhação. Não me lembro do que falamos, para além de coisas como as dívidas e a falência iminente da Assírio, entre piadinhas aqui e ali ainda ouvi “pensava que fosses uma mulher totalmente frivola, mas és esperta”. Mesmo assim, nada de concreto consegui saber sobre o negócio da Porto Editora e a única coisa que eu realmente trouxe deste encontro foi um “diz que disse”. Nada consistente para a minha notícia. Perks of the job. Por essa altura já tinham sido medidas as forças. Ele já tinha percebido que não me ia levar para a cama e eu já tinha percebido que sem isso não havia estória. Só história. Como fazia sempre, tinha deixado o meu carro estacionado na Rodrigues Sampaio, junto à porta do DN. Ele ofereceu-se para me dar boleia até lá. Aceitei. Erro meu. Quando parou o carro e ia dar-lhe os tradicionais 2 beijos de despedida, o Manuel Alberto Valente ainda achou por bem começar a tentar beijar-me na boca, com uma descontração que mostrava que ele deve ter feito isto centenas de vezes. Eu afastei-me e sai do carro. Em silêncio chamei-o de velho porco, em silêncio humilhado chorei até Setubal.»
Após diversas tentativas de contacto, Manuel Alberto Valente não esteve disponível para comentar esta denúncia.
Joana Emídio Marques diz que apenas contou a história a alguns amigos e ao assessor de imprensa da Porto Editora, mas nunca chegou a apresentar queixa.
“Se fores mulher, ser tratada sem vergonha nem respeito, é apenas mais um dia normal na tua vida. O Manuel Alberto Valente acabou no final do ano passado, por ser afastado da Porto Editora. Hoje em dia é cronista do Expresso. Colega do Henrique Raposo que veio a público pedir às mulheres que digam nomes. Aqui está um nome, caro Henrique. E tenho mais. Mas talvez não dê jeito ouvir”, conclui Joana no post que leva já milhares de “gostos”, muitas mensagens de apoio e muitas centenas de partilhas.
Será o primeiro de vários outros nomes denunciados, será esperar para ver.