Dia 23 de abril de 1971, porto de Nacala, na província ultramarina portuguesa de Moçambique, cerca das 17 e 30. O navio da marinha mercante Angoche, propriedade da Companhia Moçambicana de Navegação (subsidiária da Companhia Nacional de Navegação), levantou ferro para mais um rotineiro serviço de cabotagem. Aquele navio fazia viagens costeiras regulares entre Lourenço Marques (atual Maputo) e os portos do território (Beira, Quelimane, António Enes, Ilha de Moçambique, Nacala e Porto Amélia), transportando carga mista – víveres, combustíveis e equipamento militar.
Quando, pelas cinco e meia da tarde daquele dia 23 de abril, saiu do porto de Nacala, o Angoche, além de farinha, açúcar e gasóleo, ia carregado com material de guerra, desde 100 bombas de 50 kg e cargas inertes para bombas napalm a caixas de material aeronáutico e a máquinas de engenharia militar. A tripulação era constituída por nove civis portugueses (boa parte dos quais originários da Ericeira) e 14 moçambicanos. Nesta viagem, aos 23 tripulantes juntou-se um funcionário português de meia-idade dos Caminhos de Ferro de Moçambique, que acabara de ser transferido de Nacala para Porto Amélia (atual Pemba), destino um pouco a Norte para o qual o Angoche se dirigia. O único passageiro a bordo tinha pedido uma “boleia” (com o seu carro incluído) que o comandante do navio, Adolfo Bernardino, autorizara.
Os tripulantes do petroleiro “Esso Port Dickson” só encontraram a bordo do “Angoche” um cão e um gato, vivos – eram as mascotes do navio
Em Porto Amélia, o material de guerra transportado pelo Angoche era suposto ser desembarcado para seguir, por terra, até Mueda, na zona de Cabo Delgado, onde ocorriam os combates mais violentos entre as forças portuguesas e os guerrilheiros da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). O navio devia ter chegado ao destino às cinco da manhã do dia seguinte. Mas nunca chegou. E nesse momento, faz agora 50 anos, começou o último e trágico enigma do Império colonial português. O Angoche foi alvo de uma sabotagem à bomba e os 23 tripulantes e único passageiro desapareceram sem deixar rasto – até hoje.
Pelas sete e 30 da manhã de 24 de abril, o Angoche seria avistado com fogo a bordo e à deriva pelo petroleiro Esso Port Dickson, de bandeira panamiana. O navio de cabotagem estava a 30 milhas da costa moçambicana, entre Quelimane e a Beira, muito para Sul da sua rota. Como determina a lei internacional marítima, o comandante do Esso Port Dickson tomou de imediato posse do Angoche, uma vez que se encontrava abandonado em alto mar.
À medida que apagava o incêndio, a tripulação do petroleiro viu manchas de sangue no navio mercante português, e encontrou, vivos, um cão e um gato (que se soube depois serem as mascotes do Angoche). Mas não havia ninguém a bordo – apenas roupas, sapatos, coletes de salvação, relógios de pulso e tabaco espalhados pelo convés.

Certidões de óbito sem corpos
Sem vestígios dos 23 tripulantes e do único passageiro do Angoche, nem do material de guerra que a embarcação transportava, o qual desapareceu por completo, a PIDE/DGS, polícia política do Estado Novo, escrutinou, em Lourenço Marques, o salvado do navio. E, no princípio de maio, Lisboa recebeu a informação de que tinham sido encontradas evidências de duas explosões no Angoche, desencadeadas por cargas presumivelmente colocadas em Nacala, antes da partida, e acionadas por relógio.
Segundo as informações transmitidas pela direção da PIDE/DGS em Lourenço Marques, uma das explosões tinha sido provocada por cargas reforçadas com granadas de fosfato colocadas junto à chaminé de estibordo, por cima da ponte de comando, que ficou completamente destruída, incluindo os sistemas de comunicações do navio. A segunda carga, continuava o relatório, explodiu dentro do ventilador das máquinas.
De seguida, a comunicação da polícia política estabelecia uma divisão de consequências das explosões que viria a sustentar depois as diversas versões que apresentou quanto aos responsáveis pelo ataque. Dizia que, ao contrário das instalações destinadas aos tripulantes brancos, na ré do navio, que foram “completamente pulverizadas”, o compartimento dos 14 tripulantes negros dava sinais de ter sido precipitadamente abandonado. Hoje sabe-se, porém, que a colocação das cargas explosivas naqueles locais teve outros objetivos e revela a superior preparação técnica e profissional de quem executou a sabotagem. Já lá iremos.
A 15 de junho de 1971, o presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, apresentou ao País, pela RTP, a versão oficial sobre o caso do Angoche. Disse que alguns tripulantes teriam morrido vítimas das explosões. E que os sobreviventes ter-se-iam atirado ao mar, para escapar ao incêndio, sendo depois comidos por tubarões. Marcelo Caetano omitiu que uma das duas baleeiras salva-vidas do Angoche não estava no navio, quando o Esso Port Dickson o encontrou. Hoje, aquela comunicação de Marcelo Caetano é sobretudo entendida pela necessidade de apressar a passagem das certidões de óbito dos 23 tripulantes e do único passageiro do Angoche, face à inexistência de corpos para as justificar.
Tsunami de versões
A PIDE/DGS desdobrou-se ao longo do tempo em diversas teses sobre os responsáveis pela sabotagem do navio mercante. Uma das primeiras versões referia um ataque de retaliação de forças da Tanzânia, transportadas em lanchas, após ações de unidades de operações especiais militares sul-africanas, que em Lindi, perto da fronteira daquele país com Moçambique, investiram sobre bases da Frelimo. O cenário batia certo com a chamada “estratégia total” do regime do apartheid de Pretória, que definia como inimigos todos os movimentos de libertação, de forma a controlar a África Austral e a manter a guerra afastada das suas fronteiras. Mas os informadores da PIDE/DGS na capital tanzaniana, Dar-es-Salaam, nunca confirmaram aquela versão.
Os mandantes do ataque ao ‘Angoche’ podem ter sido a chefia militar portuguesa ou sul-africana
Carlos Matos Gomes, coronel do exército e escritor
Depois, surgiu uma tese segundo a qual o Angoche teria sido abordado, após as explosões, por um submarino soviético, que recolheu o armamento e capturou os tripulantes, entregando-os a seguir à Frelimo. De acordo com esta versão, os tripulantes portugueses foram mantidos em cativeiro durante anos na principal base da guerrilha moçambicana na Tanzânia, a de Nachingwea, um pouco a Norte de Lindi, e por fim assassinados.
Aqui já nada bate certo. Desde 11 de novembro de 1965, quando Ian Smith declarou unilateralmente a independência branca da Rodésia, o Reino Unido estabeleceu um bloqueio naval no canal de Moçambique, com fragatas apoiadas pela Royal Air Force, por forma a impedir a chegada de petróleo ao regime rebelde e racista de Salisbúria. E a Armada britânica tinha ainda bases na África do Sul e no Quénia. Por tudo isto, a presença de um submarino soviético no Índico, ao largo de Moçambique, sem que fosse detetado, entra na categoria do inverosímil.
Por fim, a PIDE/DGS agarrou-se à versão de que a sabotagem do Angoche tinha sido executada por militares portugueses colocados na base de Nacala e militantes da ARA (Ação Revolucionária Armada), ligada ao Partido Comunista Português. A prova estaria no facto de os explosivos usados no ataque ao navio mercante serem do mesmo tipo dos que foram utilizados pela ARA numa ação de sabotagem na base aérea de Tancos, na madrugada de 8 de março de 1971, que destruiu helicópteros e aviões de treino. Mas as acirradas investigações da polícia política sobre os militares suspeitos nunca deram resultado algum. E a alegada semelhança dos explosivos, como indício único, ficou muito longe de explicar a tragédia do Angoche.
Houve ainda um acontecimento, na Beira, que momentaneamente captou a atenção da PIDE/DGS. Uma mulher portuguesa, que ali trabalhava em bares de alterne, faleceu após cair do 5.º andar que habitava no prédio conhecido como “miramortos”, por se situar nas traseiras do cemitério da cidade. Correram rumores de que a mulher conhecia segredos comprometedores sobre o caso do Angoche, por ser amante de um oficial da marinha de guerra portuguesa que estaria envolvido no ataque, ou que pelo menos teria sabido dos preparativos da sabotagem. A pista, porém, depressa seria abandonada. Nem sequer se chegou à conclusão clínica sobre se a mulher se suicidara ou fora assassinada.
Guerra suja?
Depois do 25 de Abril de 1974, o caso do Angoche foi alvo de mais uma averiguação. A 18 de junho de 1975, um despacho da Presidência do Conselho de Ministros criava uma comissão de investigação constituída pelo primeiro-tenente Luís Paiva de Andrade (em nome da Armada), comandante Manuel Forbes Beça (representante da Marinha Mercante), e Francisco Grainha do Vale (do Ministério dos Negócios Estrangeiros). Juntou-se-lhes Jorge Gomes Rodrigues, representante dos familiares das vítimas portuguesas – Adolfo Bernardino, comandante, João Silva Tavares, imediato, José Estrela, contramestre, António Sardo, 1.º maquinista, João Pascoal, 2.º maquinista, Floriano Matias, 3.º maquinista, Raúl Tormenta da Silva, telegrafista, José Coelho, eletricista, e Carlos Soares, padeiro.
O relatório dos trabalhos daquela comissão seria inconclusivo. Os seus membros confrontaram-se com a falta do dossiê Angoche elaborado pela PIDE/DGS, que se suspeita ter muito mais informações sobre o caso do que aquelas que são conhecidas. Os documentos estavam na sede da polícia política, em Lisboa, e também eles desapareceram sem deixar rasto.
Quem pôs as duas bombas no “Angoche” sabia bem o que fazia. As explosões, acionadas por relógio, cortaram as comunicações do navio e eliminaram a capacidade de o conduzir
Agora, passados 50 anos, o trágico mistério do navio mercante voltará à baila com a publicação, em breve, do 13.º romance de Carlos Vale Ferraz (pseudónimo literário de Carlos Matos Gomes, coronel reformado do Exército), intitulado Angoche – Os Fantasmas do Império (ed. Porto Editora). A obra tem um intróito, com o título Pressentimentos do que Aconteceu, em que o autor explica que partiu de factos comprovados para a ficção, e que, com essa conjugação, relata o que julga que poderia ter sucedido.
“Fantasmas do Império” porquê? “São as operações secretas que os Estados realizam para atingirem os seus objetivos”, responde à VISÃO Carlos Matos Gomes. “A guerra tem sempre uma componente subterrânea, muito mais suja”, acrescenta.
Matos Gomes, que combateu como oficial dos Comandos nos três teatros da Guerra Colonial (Moçambique, Angola e Guiné), diz que quem colocou os explosivos no Angoche pô-los nos sítios fulcrais do navio. “Por um lado, cortou as comunicações do navio e, por outro, eliminou a capacidade de condução da embarcação, uma vez que deixou de haver ligação entre a ponte de comando e a casa das máquinas e o leme”, explica.
Foi, pois, trabalho de profissionais altamente treinados. Mas isso pode querer dizer o quê, colocando a hipótese da “guerra suja” no caso do Angoche? “Do meu ponto de vista, para se encontrar responsáveis tem de se procurar saber quem é que lucrava com o ataque ou que objetivos podiam estar por detrás de uma operação deste género”, diz Matos Gomes. “Havendo um ataque da Tanzânia a um navio mercante de Portugal em águas territoriais portuguesas, isso justificava uma intervenção das nossas forças no interior tanzaniano”, exemplifica.
O chamado “direito de perseguição” foi sempre uma tensa questão com que Portugal se defrontou durante a Guerra Colonial, nota o militar. “Houve com frequência comandantes-chefes segundo os quais, dentro da lógica do pensamento militar, se éramos atacados de determinado ponto, devíamos perseguir os inimigos até às suas bases, mesmo no estrangeiro, de onde partiam as investidas”, acrescenta. Existe, depois, a visão dos governantes, aos quais cabe medir as consequências políticas desse tipo de ações militares. E que têm de ser pressionados “a tomar determinadas atitudes”.
Resumindo para encurtar razões: “Os mandantes do ataque ao ‘Angoche’ podem ter sido a chefia militar portuguesa ou sul-africana”, diz Matos Gomes. Esta última “porque a fronteira da guerra da África do Sul era a fronteira Norte de Moçambique”. Da mesma forma, “a fronteira Norte da África do Sul do lado do Atlântico era a fronteira de Angola”. Como atrás já se escreveu, ao regime do apartheid interessava ter a fronteira do conflito o mais afastada possível do seu território.
Esta é uma das opções que Carlos Vale Ferraz (ou Carlos Matos Gomes) explana no seu novo romance, ficando ao critério do leitor a escolha da “mais lógica e passível de ter acontecido” na tragédia do Angoche.
Para concluir, só falta dizer que o salvado do navio foi vendido, em março de 1972, a sucateiros de Lourenço Marques. Acabou demolido.