Ainda nem Cristo sonhava pisar a Terra e já havia pão cozido para alimentar a Humanidade. Começara seis mil anos antes, na região da Mesopotâmia, mas foi com os egípcios que se percebeu como ele melhorava se entrasse num forno a lenha e se lhe juntassem fermento. Deste povo, o saber passou para os gregos e ainda para os romanos. Desde então, o pão – resultado de uma mistura de farinha, água, sal e fermento, que vai variando consoante as receitas – passou a fazer parte da cultura de diversos povos e ganhou um significado importante em muitas religiões. Na Bíblia, por exemplo, representa a comida essencial que é providenciada por Deus. Realmente, este alimento tem ajudado a mitigar a fome em horas de maior aperto.
Até ao final do século XX, em quase todas as casas havia alguém, normalmente a mulher da família, que se dedicava a cozê-lo em forno de lenha e em quantidade suficiente para uma semana, sem que para isso fosse preciso acrescentar-lhe aditivos. Com a chegada das máquinas e da panificação industrial, habituámo-nos a ir às padarias e passámos a ser indiferentes à má qualidade dos exemplares que comíamos. Daí até o pão se tornar um alimento maldito – por culpa das dietas de emagrecimento e, mais recentemente, por medo ao glúten – foi um pulo. Hoje, a realidade é outra, e voltámos a reconciliar-nos com o alimento primordial. A preocupação com uma alimentação mais cuidada, a atenção aos ingredientes e o gosto por saborear pães verdadeiros levaram ao aparecimento de novos produtos, num regresso nostálgico ao antigamente.
“Onde está o papo-seco?”
O mestre Mário Rolando, 51 anos, deixou a Padaria da Esquina, que criou de raiz há três anos, e está a fazer uma pausa, aproveitando o confinamento para descansar dos horários loucos a que se obriga um padeiro. Pelo meio, vai atendendo telefonemas de potenciais colegas, “muitos”, segundo as suas contas empíricas. A todos os interessados em entrar no mundo da panificação fará a mesma pergunta que deixou no ar, enquanto conversávamos: “O que é feito do papo-seco?” Mário, o mais considerado deste universo, lembra como já ninguém se dedica a fazer os pequenos pães que exigem muita mão de obra: alongar, vincar, rolar e dobrar para fazer as “maminhas”.
Este padeiro-mor tende a ficar feliz com a profusão de padarias que se dedicam à fermentação lenta e a cuidar de uma massa mãe que faz as vezes do fermento industrial, com todas as vantagens inerentes a essa troca. No entanto, queixa-se da falta de um curso específico para formar padeiros, que inclua cadeiras de Microbiologia e Química, por exemplo. “Os da velha guarda já quase não existem, pois muitas das padarias antigas foram parar às mãos de multinacionais. Além disso, a matéria-prima também foi piorando, e a ela juntou-se uma série de E [aditivos alimentares para conservar e aumentar a durabilidade, por exemplo]. Até nas terras pequenas o pão é mau.”
Em 2002, a Tartine Bakery, em São Francisco, nos EUA, inicia o movimento de regresso ao pão de antigamente, que se tem espalhado pelo mundo ocidental. A Portugal chegou, devagarinho, em 2008, como resposta à grave crise que se iniciava e que deixou muitas pessoas sem emprego. Com a desventura atual, as padarias continuam a aparecer – o negócio do pão coaduna-se com os constrangimentos da crise sanitária. Faltam agora, na opinião de Mário, os exemplares tradicionais que tenham identidade, sejam acessíveis e não sigam apenas os métodos à la Tartine.
Escuro, mas nem tanto
As palavras de Mário ecoam nas de Luís Gonçalves, 39 anos, presidente da Associação do Comércio e da Indústria de Panificação, Pastelaria e Similares (ACIP). Neste organismo, que reúne cerca de 300 padarias, já se percebeu que as pessoas estão a procurar as receitas mais tradicionais, com um toque rústico. Luís também gere um negócio em Coimbra e sente que os clientes se têm desviado do tal papo-seco para outros tipos de pão, com cereais mais ancestrais que estavam em desuso, como o trigo-sarraceno ou a espelta. “Ficam mais caros, porque são mais raros, mas também trazem outros benefícios à saúde. No entanto, haverá sempre clientes para o pão de forma.”
Entretanto, a ACIP tem vindo a trabalhar, desde há alguns anos, com a Direção-Geral da Saúde para diminuir o teor de sal no pão, pois até sair a Portaria nº 52/2015 não existia qualquer controlo e abusava-se bastante deste ingrediente, o que era algo preocupante num País em que mais de um terço da população sofre de hipertensão. A regulamentação obriga agora a que o sal não ultrapasse 1% da composição, valor suficiente para cumprir a sua função de dar cor e algum brilho à côdea.
O pão, que antes estava sempre longe de uma dieta de emagrecimento, é hoje reconhecido como um alimento completo e saciante que pode integrar um regime de perda de peso, desde que se escolha bem. “Não deve ter açúcar, nem gordura nem outros ingredientes com nomes que nem reconhecemos, como a dextrose”, alerta a nutricionista Ana Góis. A lista deve ser reduzida e baseada em farinha, água e sal; depois haverá variações consoante o tipo de pão. Se tiver frutos secos, por exemplo, aumenta o teor de gordura; se levar passas, já terá mais açúcar. E, claro, há que ter atenção ao que se põe lá dentro. Ana Góis recomenda os queijos magros ou frescos, ovo mexido, azeite ou pastas de frutos oleaginosos, como a de amendoim, em detrimento da manteiga, dos cremes de chocolate ou dos enchidos e carnes frias.
Os pães escuros têm sempre mais fibra, vitaminas e sais minerais, mas também são mais densos e pesados – tornam-se perfeitos numa conjuntura nutricional, mas algo perigosos no contexto de perda de peso. E atenção que “escuro” nem sempre quer dizer de melhor qualidade. Por exemplo, um pão de alfarroba vendido numa grande superfície pode ter apenas 4% dessa farinha e o restante ser um preparado que leva açúcar, óleo de girassol, melaço (mais açúcar) e antiaglomerantes. Em todas as receitas, há que ler o rótulo, quando ele existe. Caso contrário, será seguro ir pelas marcas reconhecidas.
Mafra há de ser uma marca
O pão de Mafra, antes conhecido como o pão saloio que era enviado para a cidade, já chega a todo o País, por exemplo. Para garantir que não compramos uma fraude – e há muitas por aí –, a câmara da região está a trabalhar com a associação de comércio local para conseguir a certificação Indicação Geográfica Protegida (selo IGP) junto da União Europeia. Existem várias receitas em Mafra, mas todas terão de resultar em pães húmidos, porque levam muita água. Enquanto esta forma de fazer de pão precisa de horas para fermentar, um exemplar industrial despacha-se em 20 minutos, à custa de fermentos químicos, por oposição à massa velha, massa mãe ou isco.
Cláudio e Bruno Luz são os irmãos que tomam conta da Pão Real, nascida nos anos 1970 das mãos do avô e que hoje faz parte da meia dúzia de padarias tradicionais que resiste. Continuam a recorrer aos mesmos dois moleiros (que desfazem os cereais em mó de pedra), apesar de já terem introduzido novas tecnologias na padaria – pudera, dali saem 10 mil a 15 mil unidades por dia. “Somos artesãos, mas produzimos numa escala grande. Ainda assim, fomos contra a corrente da industrialização. O nosso pão é 100% natural, não leva melhorantes”, esclarece Cláudio.
A qualidade da farinha faz toda a diferença na digestibilidade do pão e na satisfação que ele nos dá. Quando se mói a frio e de forma ancestral, a maior parte do grão do cereal é preservada, especialmente o gérmen, a parte mais importante e que guarda as principais características nutricionais, como proteínas, gorduras essenciais e fibras. As modalidades industriais não têm nenhum desses componentes, perdem em durabilidade e ainda são ricas em açúcares.
Pão é vida
Paulo Horta, 43 anos, das farinhas Paulino Horta, foi treinado para ser moleiro, uma profissão típica da zona do Oeste, conhecida como saloia, que chegou a ser mesmo importante. “Íamos à cidade para deixar os lisboetas mais felizes. Pão era vida, e o moleiro era o impulsionador dessa vida”, lembra. Agarrando-se a estas histórias, conseguiu não deixar cair o negócio do pai, como viu acontecer à maior parte dos vizinhos, com a industrialização do País e das farinhas, com técnicas mais agressivas, aditivos e valores nutricionais baixos. “Essas fazem pães fofos e banais”, nota.
Ele e o irmão modernizaram-se, mas a essência mantém-se, sem atalhos tecnológicos – as máquinas compradas limitam-se a reproduzir o que o pai fazia no moinho que agora é museu. Os blends, que chegam a todo o País numa razão de 500 toneladas mensais, são maioritariamente de cereais autóctones, mas muitas vezes eles têm de ir comprá-los lá fora. “Os nossos produtos têm alta digestibilidade, dão mais energia, boa saúde à flora intestinal e até o cérebro fica mais ativo”, remata.
Nuno Pontes, 29 anos, faz parte da nova geração de padeiros, e as suas farinhas são todas Paulino Horta. Criou há um ano a empresa Filho do Padeiro que funciona, e bem, no mundo virtual, agarrado à memória de infância do pão de isco que a avó cozia em Alcobaça. No primeiro confinamento chegou a fazer 60 unidades nos quatro dias em que entregava na zona de Lisboa, quando o seu habitual era vender uns 15, nos dois dias em que aceitava encomendas. Atualmente, o negócio está mais calmo, mas, sim, beneficia do facto de estarmos todos em casa e já sem paciência para nos dedicarmos à panificação caseira. O Filho do Padeiro guarda uma massa mãe desde 2015, que vai alimentando para usar nos pães, mas nada tem contra o fermento industrial. “O problema é que ele tem muita força, e abusa-se dessa propriedade para se assegurar que o cliente tem o pão à hora que quer. O ideal é usar-se cerca de 2%, mas já vi carregarem até aos 5% ou 6%, especialmente em dias frios”, conta, enquanto molda uma das suas baguetes especiais, tratadas com carinho e vagar, que há de chegar a casa de um confinado sedento de bom pão.
História
O pão é o alimento mais ancestral, mas foi com os romanos que ele se tornou indispensável.
6000 a.C.
Os primeiros registos de um alimento com base em cereais, ainda não moídos, aparecem na Mesopotâmia. São os primórdios do pão, mas pouco tinham que ver com o que se come hoje.
3000 a.C.
Os egípcios descobrem, por acaso, ao deixarem um pedaço de massa ao ar, o poder do fermento natural e também iniciam a cozedura em fornos de barro.
Século VIII a.C.
Os romanos democratizam a produção e tornam o pão um alimento essencial. Só na Roma Antiga, 100 anos antes de Cristo, há 258 padeiros e é lá que nasce a primeira associação de panificadores.
Século I
Na Bíblia, o pão transforma–se em alimento sagrado, símbolo do corpo de Cristo, escolhido por ele na Última Ceia. Jesus também multiplica os pães para acabar com a fome dos fiéis.
Século XII
O pão branco, chamado de “farinha flor”, aparece no período da Idade Média. A sua origem encontra-se nos conventos, mas depressa chega às famílias mais ricas. Só muito mais tarde haverá de ser presença assídua em todas as casas.
Século XX
A industrialização toma conta das padarias. A qualidade do pão, e também dos cereais, decai brutalmente.
Como escolher um pão saudável?
Na sua lista de ingredientes não deve haver muito mais do que farinha, água, sal e fermento. Fuja de pães em que o rótulo seja mais extenso do que isto e contenha elementos estranhos, como açúcar.
Farinha
Convém que a que exista em maior quantidade seja integral, independentemente do cereal escolhido. Acontece, muitas vezes, um pão apregoar-se como integral e, na realidade, a sua maior percentagem ser de farinha refinada.
Aditivos
Não é assim tão raro encontrar conservantes para aumentar o tempo de prateleira. Às vezes, também se detetam emulsionantes, melhorantes e agentes de tratamento de farinha (os E que aparecem na lista de ingredientes).
Gordura
Um pão que se diz pão não deve conter gordura, mas, algumas vezes, esta é acrescentada para dar textura. Nos pães de forma, por exemplo, acontece frequentemente a adição de óleo de girassol.
Açúcar
O açúcar usa-se para dar crocância à crosta – além dos pães de forma, os de padaria, como o de alfarroba ou o de beterraba, também podem esconder este ingrediente, para aumentar a sua palatabilidade.
Sal
Nem sempre os rótulos especificam a quantidade de sal. Mas, hoje, a regulamentação já não permite que os pães levem mais do que um grama por cada 100 gramas de pão. E há incentivos para as padarias, certificando-as com um selo de excelência.