O grito da criança divertida a brincar na água. Uma travagem no momento em que se avista um animal a alguns metros do carro, numa pequena localidade. O cheiro a queimado no quintal do vizinho do lado, que está a fazer um churrasco. Estímulos inócuos, mas não para quem sofre de PSPT, ou Perturbação de Stress Pós-Traumático. A condição é incapacitante e frequentemente vivida em silêncio, o que agrava ainda mais o risco de sofrimento.
Ansiedade extrema, pânico, memórias perturbadoras, pesadelos, angústia profunda, comportamentos de evitamento e irritabilidade: alguns dos sintomas da PSPT
É difícil, senão impossível, ficar indiferente aos tormentos de quem se encontra refém do papel de sentinela e tem reações exageradas face a situações quotidianas e às “chatices normais” que fazem parte da vida. Aos estados de ansiedade extrema e de pânico, juntam-se problemas de sono, pesadelos, memórias perturbadoras, “mania da perseguição”, angústia profunda e comportamentos de evitamento.
Na ficção e na vida real, quem passa por este “filme” foi exposto a um acontecimento traumático – ser vítima de uma catástrofe natural, de um cenário de guerra, de violência ou abuso, ficar sem terra ou sem casa – e os estilhaços perduram no tempo: uma vez “encapsulada” nos circuitos neuronais, a experiência é revivida sem que a pessoa tenha a capacidade de controlar o processo, bastando um estímulo aparentemente inócuo para detonar a resposta ao trauma. Como se estivesse, de novo, no “filme aterrador”, revivendo, no presente, as sensações, emoções, pensamentos e crenças negativas de então.
O impacto do trauma
Com uma prevalência de 8% a nível mundial, “a PSPT é uma experiência de stress extremo causada pela exposição a um trauma” e a realidade pandémica pode estar a contribuir para fazer subir esse valor. Quem o afirma é o psicólogo Tiago A.G. Fonseca, um dos autores de um estudo realizado pela equipa de investigação da clínica Psinove durante o mês de abril, e de que já se conhecem os resultados preliminares, confirma o que mostraram outras pesquisas semelhantes durante a quarentena: mais de um quarto dos participantes (26,6%) apresentaram sintomas severos de Stress Pós-traumático e 42,5% reportaram sintomas moderados, ou seja, uma em cada três pessoas da amostra (constituída por 264 adultos e com uma média de idades de 38 anos). Como interpretar estes dados?

“São números muito elevados, sobretudo se admitirmos que um em cada 12 portugueses sofre desta perturbação, segundo as autoridades de saúde nacionais, e que 1% a 14% da população tem este problema ao longo da vida.” A meta da investigação é estudar as consequências psicológicas da Covid-19 durante e após a pandemia. A recolha de dados foi feita online e avaliou sintomas psicopatológicos, a capacidade de ter atenção plena (mindfulness), regulação das necessidades psicológicas e o Stress Pós-Traumático.
Os resultados iniciais apontam para um cenário sombrio: “Antecipamos que os sintomas de PSPT se agravem em função das consequências da pandemia desde o desconfinamento, sejam financeiras, sociais ou individuais.” Na prática, “o aumento provável dos níveis de ansiedade pode levar a que futuros acontecimentos com grande impacto emocional sejam vividos como traumáticos, já que as pessoas estão mais vulneráveis.”
O stress que “mata”
Cunhado nos anos 1930 pelo médico endocrinologista Hans Seyle, o termo stress referia-se à resposta fisiológica e adaptativa do organismo a um estímulo percecionado como ameaçador e face ao qual a pessoa visada sente ter menos recursos do que os que seriam precisos para responder às exigências da situação, com prejuízos sérios ao seu equilíbrio e bem-estar.
Os estudos sobre a resposta de stress permitiram apurar que o processo se desenrola em três fases. Na de alarme, a reação é lutar ou fugir. No plano fisiológico, a resposta de ataque-ou-fuga manifesta-se em suores frios, alterações dos batimentos cardíacos, do metabolismo e da respiração, a par de mudanças de humor e do comportamento. Segue-se um período de adaptação, em que os sintomas agudos podem dar lugar à resistência ao stress. Se o organismo ficar preso na situação e ela perdurar ao longo do tempo sem se conseguirá ultrapassar, tal pode conduzir ao aparecimento de doenças (as chamadas doenças da civilização) e, no limite, ao colapso. É a fase da exaustão.
O aumento provável dos níveis de ansiedade pode levar a que futuros acontecimentos com grande impacto emocional sejam vividos como traumáticos, já que as pessoas estão mais vulneráveis
Tiago A. G. Fonseca, psicólogo clínico
A exposição a um ou mais acontecimentos stressantes – e o grau de intensidade em que ocorre – pode levar ao desenvolvimento da PSPT, que só no final do século passado passou a constar na Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde. Na quinta edição da “bíblia” das perturbações mentais, o DSM-V, feito pela Associação Americana de Psiquiatria, esta condição passou a incluir, nos critérios de diagnóstico, os sintomas dissociativos (despersonalização e desrealização) e deixou de estar no grupo das perturbações da ansiedade para constar no dos traumas e perturbações relacionados com o stress (não apenas o de guerra, portanto).
Voltando ao estudo da equipa de investigadores da Psinove, de que Tiago A. G. Fonseca faz parte, importa apurar se estes dados preliminares já têm eco no consultório. “Há mais casos de ansiedade exacerbada”, esclarece. O afetar mais uns do que outros prende-se com vários motivos, a começar na personalidade. Face a um estímulo que uma criança vê como ameaçador, por exemplo, o modelo dos pais é determinante: “Tive uma paciente cuja filha tinha medo de cães, mas a sobrinha não; acontece que a criança se punha atrás da mãe enquanto a sobrinha, ao ver a irmã da paciente fazer festas ao animal, aprendeu a encarar a situação como segura.” É um medo pela reação do adulto e não devido ao estímulo propriamente dito, mas potencia a experiência extrema de medo e a possibilidade de processar a situação como traumática.
O desafio dos dias seguintes
Desconfinar é preciso. A mensagem que acompanhou o fim do do Estado de Emergência teve um efeito estimulante, mas a tão falada segunda vaga da pandemia constitui um sério fator de risco no que respeita ao aumento do stress e contribuir para gerar o temido trauma, com o qual nem sempre se con seguirá lidar, pelo menos numa primeira fase. “Pessoas que vinham à consulta ainda não se atrevem, depois do confinamento, a voltar ao registo presencial, apesar de terem todas as medidas de segurança.” Uma evidência que se estende a outras áreas da vida. Com mais ou menos intensidade, as marcas estão lá e vão-se revelando aos poucos.
O tema não estava previsto mas, tendo em conta o ano que estamos a viver, entendemos que se impunha falar do Stress Pós-Traumático
Ana Pinto Coelho, diretora e curadora do festival mental
A boa notícia é que, hoje mais do que antes, existem estratégias eficazes para lidar com isso. Há mais estudos no campo da dessensibilização a traumas e mais opções de tratamento, das farmacológicas às psicoterapêuticas. Contudo, o estigma ainda persiste. Foi a pensar nisso que, na quarta edição do Festival Mental, de cinema, artes e informação, a decorrer entre 30 de setembro e 9 de outubro, a PSPT foi integrada nas três conversas temáticas, as M Talks (onde Tiago A. G. Fonseca participa), após as quais é projetado um filme ligado ao assunto.
“O tema não estava previsto mas, tendo em conta o ano que estamos a viver, entendemos que se impunha falar do Stress Pós-Traumático e alteramos o programa”, afirma Ana Pinto Coelho, diretora e curadora do evento, que conta com o Programa Nacional de Saúde Mental e a Ordem dos Psicólogos como parceiros.