De cada vez que se mexia na cadeira do escritório e a ouvia ranger sentia que não era ali que devia estar. Não que estivesse insatisfeito com o seu emprego enquanto engenheiro de telecomunicações, mas, quase a chegar aos 40, aquilo sabia-lhe a pouco. E o mundo inteiro lá fora chamava por ele, muito mais alto do que o chiar da cadeira. Um belo dia, falou com a administração, pediu um tempo, como se pede em algumas relações mais longas, e partiu, de mochila às costas, ou melhor, com 10 quilos no lombo.
O ano de 2020 começara bem para Rui Peres, 38 anos. Estava finalmente a dar lastro ao projeto para o qual amealhava todas as suas poupanças e era hora de seguir o sol por esse mundo fora. Primeira paragem: Argentina, que por estar no hemisfério sul, vivia em pleno verão. Aí, já se ouvia falar de um tal de coronavírus, que vinha da China, lá longe. Mas ainda seguiu viagem para a Antártida, onde viveu dos melhores dias da sua vida. Pisou uma das zona do mundo mais confinada, sem saber que o mundo inteiro iria estar mais ou menos assim dentro de pouco tempo.
Na tal mochila-casa guardava uma máquina fotográfica, outra de filmar e um drone para que nada lhe escapasse e porque a sua ideia era produzir um documentário, o mais genuíno possível, no final da aventura. Antes que isso tudo possa acontecer, dá para segui-lo no seu site e na página do instagram. Sim, porque conta voltar à estrada lá para setembro, quando as fronteiras já não se fecharem à sua frente, e retomando a rota no ponto em que a abandonou, sempre atrás do sol.
Foi no Chile que fez stop, ou pausa, no seu projeto pessoal, que batizou de Mal Parado. Primeiro entrou em negação, mas quando começou a ver que ia mesmo perder países e que a sua regra de ouro se encontrava em perigo – estar sempre a uma distância confortável da família e dos amigos – meteu na cabeça que teria de rumar a Portugal. Não foi fácil, teve de envolver embaixadas e lidar com voos cancelados +a última da hora, mas lá conseguiu aterrar em Lisboa, depois de passar pela Argentina e pelo Brasil.
Uma versão mais simples
“Experimentei o confinamento citadino e senti-me numa cárcere doméstica, pois não tinha qualquer espaço exterior na minha casa lisboeta”, conta. Depois de estar em quarentena e fazer o teste ao Coronavírus, pegou outra vez numa mala e fez-se ao caminho, com destino ao aconchego parental, em Picote, uma aldeia em Miranda do Douro. É lá que tem estado, desde há um mês e meio, para gáudio dos seus pais, que não o viam por aquelas paragens desde o Natal e nunca por um período tão longo.
“Criei uma versão mais simples deste novo mundo. Aqui as mãos lavam-se porque estão sujas da terra e do pó. Vivo num modelo menos desgastante. Já que me pintaram o mapa mundo a cinzento, arranjei esta forma de o colorir”, resume, ao telefone desde Trás-os-Montes.
Na aldeia, criou uma rotina sem ser rotineiro, dividindo-se entre a agricultura, o trabalho com os animais – “apanho os ovos quando eles ainda estão quentes” -, o desporto na natureza e tempo com a família. Numa frase. goza a sua liberdade.
Não regressou ao trabalho, porque isso sim seria um retrocesso, mas antes prolongou a sua licença para conseguir tocar em 36 países, como era a sua intenção inicial. “Quero chegar a pessoas e lugares incríveis”, garante, no sossego daquela região do País, sem se deixar abalar pelas contrariedades.