“Não preciso de nada. Tudo o que importa guardo no coração.” Ou “Não sei se estou pronto para enfrentar o monstro”, em resposta a “Não nos salvamos a fugir do monstro, só a combatê-lo.” E a rematar: “O meu lugar é aqui. É onde eu quiser estar.” São frases que fazem parte do guião desta história sobre o momento em que o famoso navegador português insiste que não tem medo e vai entrar mar adentro, para chegar ao outro lado do mundo, e desafia a tripulação. Mas são também desabafos e confissões tiradas lá do fundo do coração daquele grupo de rapazes e raparigas entre os 14 e os 19 anos, a viver temporariamente no Centro Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa, por ordem de um tribunal.
Estamos na biblioteca daquele espaço fechado ao mundo, e eles em volta de uma mesa, a imaginar as vidas dos marinheiros que, há mais de 500 anos, se preparavam para ir até mar alto. Os papéis com todas as falas estão espalhados em cima da mesa, mas aquele subtexto há de ficar ali a pairar durante o resto do ensaio – e a explicação é muito simples: todos eles sabem bem o que alguém quer dizer com a confissão “às vezes o medo é maior do que eu”. Tal como também entendem muito bem que “às vezes é preciso ter medo, porque isso nos traz regulação”, mas que “não podemos deixar-nos vencer por ele.”
E depois ainda há espaço, por entre tantas linhas, para um “Oh Captain, my Captain”, a estrofe mais conhecida de um poema do seculo XIX, numa alusão à morte de um presidente dos EUA, mas que representa também a solidariedade a um líder – e que um filme com 30 anos (Clube dos Poetas Mortos, 1989) cristalizou na cultura popular, por entre outras ideias tão singulares como “Aproveitem o dia, rapazes, façam das vossas vidas algo extraordinário”.
Afinal, esta é também a história da travessia que aqueles rapazes e raparigas fazem agora e da intenção assumida de lhes mostrar que a ideia de dar uma volta ao mundo pode bem abrir horizontes e ajudá-los a dar uma volta à sua vida. Algo que quem vive com a liberdade restringida bem precisa, como nos contam Catarina Aidos e João Custódio, da Cusca – Cultura e Comunidade, uma associação cultural comprometida com o desenvolvimento comunitário e coesão social que aceitou o desafio da Aporvela – Associação Portuguesa de Treino de Vela para dar corpo a este Mare Liberum, projeto delineado em especial para jovens internados em Centros Educativos.
A arte para a inclusão social
“Monstro em mim” é então o primeiro espetáculo do projeto que, ao longo de oito meses, proporcionou a este grupo uma formação em escrita criativa e técnicas teatrais, além de noções básicas de navegação – afinal, houve já uma primeira apresentação pública da peça, no convés do navio Vera Cruz, uma caravela a sério, réplica exata das embarcações usadas pelos portugueses nos séculos XV e XVI, atracada na Doca de Alcântara, em Lisboa.
Aquelas haveriam de revelar-se as ferramentas certas para conduzir a bom porto um espetáculo sobre demónios interiores, medo e, sobretudo, superação. Ou, como se lê no folheto de divulgação da peça que, este domingo, 26, há subir ao palco na Fundação Calouste Gulbenkian, sobre a coragem de olharmos para quem somos e quem sonhamos ser.
Foi há 500 anos que Fernão de Magalhães nos mostrou que é possível irmos mais longe do que imaginámos – e essa é a ideia inspiradora deste Mare Liberum que, em parceria com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, e financiado pelo programa PARTIS ( Práticas Artísticas para a Inclusão Social) da Fundação Calouste Gulbenkian, se propõe, durante três anos, a desafiar miúdos de três Centros Educativos da Grande Lisboa (Navarro de Paiva, Bela Vista e Padre António Vieira), para um trabalho artístico centrado na escrita criativa, no teatro e no mar. Para lhes falar também do mar interior e do que há para lá do horizonte, ou seja, que podemos ser muito mais do que aquilo que os olhos alcançam.
Juntos no mesmo barco
Assim, não se julgue que a peça se destina apenas a quem se sentar nas cadeiras do auditório da Gulbenkian, este fim de semana – porque afinal o grande impacto será na vida dos rapazes e raparigas que constam do elenco, chamem-se João ou Maria ou outro nome qualquer.
São eles que, já sem olhar o texto, e com as falas na cabeça, hão de repetir tudo outra vez, de pé, no meio da biblioteca, como se estivessem na tal embarcação que os vai levar numa volta ao mundo. “Não, no mar as mãos nunca estão nos bolsos”, interrompe Rui Santos, da Aporvela, a lembrar-lhes que, pelo contrário, estão sempre prontas para o que for preciso, seja para içar velas, lançar cordas ou se agarrarem – e que também lhes há de sublinhar que “uma ordem num navio tem de ser dada com garra, sem hesitações”.
Fotos: Márcia Lessa/FCGulbenkian
Já lá vão uns minutos longos desde que o ensaio começou. Os rostos estão menos tensos, vislumbram-se alguns sorrisos e eis que surgem algumas confissões inusitadas. “Encaixo-me perfeitamente no personagem, aquilo sou eu”, diz-nos a miúda que dá corpo à voz de comando. Ou “Aqui aprendi a ganhar confiança”, como confessa um dos rapazes, “e também a lutar contra os medos”, acrescenta, ele que está quase no fim da medida e, daqui a um mês, há de estar de volta à vida lá fora.
“Então, estamos juntos neste barco ou não?”. O ensaio continua e as falas ambíguas também: “Vai fazer o quê? Resignar-te enquanto os outros avançam?”. Mas também se ouvem respostas mais ásperas; “Tu nem te atrevas a falar da minha vida!”. Há ainda questões que ficam no ar (“Quem é que vos roubou a capacidade de olhar daqui para fora?”) e explicações simples (“Quando abandonamos o outro é como se nos abandonássemos a nós próprios”).
E isto tudo sabendo que nem tudo corre como desejável. Por exemplo, já há menos um elemento nos ensaios – que não há de ir à Gulbenkian – porque passou das marcas e ficou de castigo. Mas também há outro alguém muito triste porque queria subir ao palco para a mãe sentir orgulho, mas já lhe constou que não a verá na plateia.
Sem monstros nem medos
“Todas as estradas têm engulhos”, anui Nuno Rodrigues, o coordenador do Centro, a sublinhar a dificuldade acrescida que isso significa quando se trata de jovens a desafiar um monstro chamado preconceito e que, demasiadas vezes na sua pequena vida, não se permitiram alguma vez sonhar outras coisas.
Aquele que é o primeiro dos três centros educativos envolvidos no projeto também não passou incólume perante este “Monstro em mim” – por exemplo, durante muito tempo, as participações em projetos exteriores reproduziam até a organização quase medieval do centro (como ter rapazes para um lado e raparigas para o outro, sem se misturarem) – e agora isso não acontece. “É muito importante que estes momentos ofereçam um olhar limpo das formatações que são esperadas deles”, remata aquele responsável.
Para lhes mostrar que é preciso almejar mais do que aquilo a que nos confinam, foi também preciso não esmorecer face à resistência silenciosa inicial de cada um deles – e esperar que, de tanto repetirem todas aquelas palavras, algo lhes fique na cabeça e no coração. Os indícios de que tudo pode estar no bom caminho acumulam-se sempre que uns e outros já não escondem o sorriso e projetam a voz, alto e bom som, não deixando ninguém indiferente quando questionam: “Quem está comigo? Quem não tem medo de destruir o monstro?”. E também sempre que repetem: “Precisamos de quem nos comande, de quem nos indique o Norte, de quem saiba para onde ir”.