Francisco Pereira é um operário do setor têxtil, de 32 anos, de barba e barriga saliente. Ganha pouco mais de 600 euros. Repugnam-no centros comerciais, onde só entra para ir às livrarias. Rejeita marcas e compra roupa usada. Divide os dias entre o local de trabalho (Guimarães), as atuações da banda filarmónica de Ferreiros (Cinfães) e a casa dos pais, onde vive, em Vila Nova do Campo (Santo Tirso), cenário do atentado da rede bombista de extrema-direita que vitimou Rosinda Teixeira em 1976.
Num anexo do quintal montou o seu santuário de militância e devoção. Aí acumulou, desde adolescente, retratos e medalhas de Salazar, autocolantes e calendários do “generalíssimo” Franco, um busto de Mussolini, cartazes de touradas e da Semana Santa de Sevilha, artefactos religiosos e ampla biblioteca nacionalista, do nazismo ao pensamento do seu ídolo: José Antonio Primo de Rivera, fascista espanhol fundador da Falange. Esquiva e fugidia, a gata de mancha à Zorro a cobrir o olhar assanhado não escapa a este imaginário: dá pelo nome de Mica Rivera.
“Honrar a Pátria através da minha conduta, ser leal para com os meus camaradas, ser um exemplo de coragem, retidão e valor no trabalho, na família e na comunidade” lê-se no verso do cartão de filiado do PNR, guardado e trancado num pequeno cofre. “Para ser fiel a estes valores, tenho de recusar o uso da violência. O maior erro do partido foi ligar-se ao Mário Machado [líder da Nova Ordem Social]”, reconhece Francisco Pereira. Desiludido com a “direita envergonhada” do CDS, onde militou cinco anos, será cabeça de lista do PNR por Braga nas legislativas de outubro. “A base de crescimento está nos estudantes, nas forças de segurança e nos trabalhadores que sofrem com a entrada massiva de imigrantes”, crê, antecipando o programa. “A ideia do País dos Descobrimentos é muito bonita, mas nada diz ao homem de rua que precisa de segurança laboral para manter a família. Sei do que falo, também sou operário”, assume.
Na campanha, dará também atenção ao setor da pirotecnia, “afetado por exagerada fiscalização”. Mas, depois do fraco resultado do PNR nas “Europeias”, o cenário não está para deitar foguetes. Há quatro anos, em Braga, o partido não chegou aos dois mil votos, abaixo da média nacional. “Os nacionalistas ainda não compreenderam as reais condições de vida das pessoas. É preciso ir para o terreno”, atalha. Antes de melhorar a situação, o candidato terá, pelo menos, de tentar votar em si próprio, tarefa que se afigura difícil, pois a freguesia onde reside pertence ao distrito do Porto.
Na segunda, 10 de Junho, uma outra fação nacionalista, marginal e reacionária, foi ao Largo D. João III,perto do Museu de Serralves, na Invicta, saudar a estátua do militar Afonso de Albuquerque. Dúzia e meia de pessoas convocadas via Facebook pelo Movimento Social Nacionalista (MSN) juntaram-se para comemorar “o dia da raça e da pátria que já foi”. Fizeram a saudação de braço estendido, um minuto de silêncio pela “memória dos caídos” e deixaram um ramo de flores. O discurso de circunstância coube a António Soares, 59 anos, veterano das lides desde o Movimento de Ação Nacional (MAN). Nas últimas décadas do século passado, o MAN esteve associado a atos de grande violência, dos quais resultaria, por exemplo, a morte do militante do PSR, José Carvalho, em 1989. O MSN não gosta de espalhafato. Atua no Porto e em Ovar. Os seus membros são “oriundos da classe trabalhadora e da pequena burguesia”, mas recusam ser fotografados de frente. Uniram-se às manifestações dos Coletes Amarelos, distribuem comida aos desfavorecidos e deixam panfletos nas caixas do correio contra a ideologia de género, as drogas, a corrupção e os “promotores e aproveitadores” da imigração. “Não me revejo nas teses do racismo europeu. Em África seria nacionalista e defendo a causa palestiniana”, explica António Soares, sem destapar o capuz do blusão. “Os nacionalistas andam metidos em demasiadas querelas de campanário, mas deviam perceber que a crise europeia é a nossa galinha dos ovos de ouro”, desafia.
Direita radical 3.0
Quem depressa entendeu isso foi outra geração, cujas influências importadas estão a gerar uma reconfiguração da direita nacionalista. São filhos da internet, embriagaram-se de ideologia no auge da blogosfera e agora inspiram-se nos neofascistas italianos da Casa Pound, na ala jovem do movimento radical francês Les Identitaires, já ramificado noutros países, na Alt-Right norte-americana, na Rassemblement National, de Marine Le Pen, na extrema-direita da Alternativa para a Alemanha (AFD), e até, em alguns casos, no partido neonazi Aurora Dourada, terceira força política da Grécia.
Seguem, atentos, as posições de cunho anti-imigração de Matteo Salvini, da Liga Norte (Itália), do Presidente húngaro Viktor Orbán ou do holandês Geert Wilders, do Partido para a Liberdade. Trump (EUA) e Bolsonaro (Brasil) são também importantes, não pelo perfil ideológico, mas por personificarem, segundo dizem, o confronto direto com as conspirações do “marxismo cultural” e as forças progressistas.
Por cá, são “netos” do pensamento de Jaime Nogueira Pinto, o intelectual da direita nacionalista mais influente nesta geração. De resto, citam amiúde os doutrinadores do pensamento extremista e identitário europeu, de Dominique Venner (que se suicidou em 2013 na catedral de Notre-Dame) a Guillaume Faye, sem esquecer Renaud Camus, o austríaco Markus Willinger ou até mesmo o neonazi espanhol Ernesto Milá. Estes autores consideram estar em curso “a grande substituição” da matriz étnica e cultural dos povos do “continente branco”, culpa da “invasão cultural” imigrante. Para eles, a diversidade planetária deve ser preservada, mas longe, cada um no seu território.
Grupúsculos e movimentos portugueses são vistos na noite, em apoio aos sem-abrigo ou organizam recolhas de brinquedos para crianças do IPO ou famílias sem posses. Estudantes pedem informação sobre as suas atividades e eles arregimentam membros para as suas causas, identitárias ou outras, e fazem-no “de uma forma relativamente autónoma em relação à velha guarda. Nem sequer procuram uma estrutura partidária para funcionar”, retrata o investigador Riccardo Marchi, do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa.
Em Lisboa, parte dos representantes dessa geração, divorciados ou distantes do PNR ou da Nova Ordem Social, de Mário Machado, também saiu à rua para comemorar o 10 de Junho. Começaram o dia em Belém e acabaram na Praça da Alegria, na Marcha da Identidade. Na maioria, eram jovens na casa dos vinte anos e pertencem ao Escudo Identitário. O símbolo do movimento “metapolítico” é um lince, “ameaçado de extinção, tal como o povo português”, alegam.
Fundado em 2017 na sequência dos protestos da direita pelo cancelamento da conferência de Jaime Nogueira Pinto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, de alegado caráter colonialista, racista e xenófobo, o “Escudo” foi notícia em novembro quando, segundo o Público, colou mil cartazes contra “a ideologia de género” junto de 300 escolas de Lisboa, Porto, Faro, Montijo, Almada, Cascais, Oeiras, Loures, Sintra e Gaia. Há semanas, rechearam muros e paredes com uma nova resma de 4 mil cartazes a denunciar “a ditadura sexual duma minoria” e estenderam a propaganda a Beja, Carcavelos, Parede, Torres Vedras, Coimbra, Porto, Matosinhos e Braga, cidade onde, em breve, abrirá um núcleo deste movimento. “Agora até dizem que há 150 géneros, já parecem os Pokémon. Há dez anos, isto era considerado uma insanidade”, ilustrou, descontraído, Nuno Afonso, 24 anos, líder do “Escudo”, no canal populista de direita Conversas Opressoras, no YouTube. Trata-se de um espaço mediático transmitido em roda livre, sem filtros, e onde Miguel Macedo, seu criador, se sente à vontade para, entre palavrões, mandar um gay “trabalhar para as obras, a ver se se faz homem”.
O destempero e a alarvidade não são, contudo, a marca da nova vaga desta direita. Pelo contrário. “Motas, drogas e armas, sobretudo depois da operação junto dos Hammerskins. Esta é uma juventude mais instruída, bem-pensante e de estratos sociais mais elevados que, apesar de ainda pouco numerosa, dinamiza ações e ganhou força nos últimos anos”, explica fonte oficial da Unidade Nacional Contraterrorismo da Polícia Judiciária (PJ), que segue estas organizações. “No fundo, apresentam-se como guardiões da identidade étnica e cultural portuguesa, protagonizam um novo extremismo de direita sem violência física, e onde as ideologias de matriz fascista e nazi estão lá, mas foram alvo de operação cosmética”, retratam.
Para o investigador Riccardo Marchi, “esta geração renovou o imaginário da militância de extrema-direita, em termos teóricos, gráficos e estéticos. Querem conquistar adeptos em campo aberto, por isso recusam microcosmos fechados, quase repulsivos para o mainstream. Para estes novos movimentos, o conceito de Europa como casa de todos não é solução e envolvem-se em causas e temas locais, muito sentidos pelas populações”, atalha o maior estudioso das direitas radicais portuguesas.
Em dezembro, a Associação Portugueses Primeiro, P1 para os apaniguados, entregou no Parlamento uma petição com 75 assinaturas em defesa dos bairros históricos, residentes de longa duração e lojas tradicionais e familiares. Os signatários propõem a redução do valor das rendas de habitação social a portugueses, “com majoração do benefício em 0,3% por cada filho do casal” e “maior rigor e controlo sobre as lojas étnicas”, que “invadem o centro das grandes cidades”, destroem o pequeno comércio e são maioritariamente “de fachada”, pois servem “para lavagem de dinheiro e incentivo à imigração ilegal”. Em breve, a P1 atribuirá duas bolsas de estudo no total de 2100 euros a jovens estudantes do Ensino Superior que se debrucem sobre pressão migratória, explosão demográfica dos continentes africano e asiático e temas similares. O regulamento tem um detalhe: “Serão automaticamente excluídas todas as candidaturas de candidatos naturalizados e/ou descendentes de não portugueses.”
Os meios e os fins
Outrora conhecido pela subcultura skinhead, botas Doc Martens, bastões e soqueiras, o ativismo que está a refundar este espaço ideológico quer distância dos métodos. E até as causas e o estilo mudaram. Rui Amiguinho, 40 anos, casado, professor do Ensino Básico e Secundário, é presidente da P1. Saiu do PNR em janeiro de 2013, mas ajudou a elaborar o programa das europeias de maio e integrou a lista como independente. “Sou um dissidente inconformado deste regime, de direita radical, mas não estou fora dele. Não quero a ditadura de Bruxelas e dos bancos e defendo o mínimo de respeito pela identidade e soberania. A luta, hoje, é entre globalistas e localistas. Por isso, mais depressa votaria num João Ferreira, do PCP, do que na Assunção Cristas”, esclarece, sem pestanejar. “Tenho uma biblioteca de fazer inveja a qualquer comunista e sigo os ensinamentos do filósofo marxista Gramsci: a cultura precede sempre a política. Só assim se pode influenciar a opinião pública e o poder”, assume.
A conversa decorre na loja de um degradado centro comercial de Santo António dos Cavaleiros, em Loures, onde a Contra-Corrente, editora nacionalista dirigida por Rui Amiguinho a partir da associação ecológica Motus Verdis, mantém o minúsculo armazém. As encomendas são feitas online, os exemplares numerados. Adquiri-los “significa contribuir ativamente para a formação e o financiamento de uma área político-cultural Não-Conforme”, lê-se em cada um dos 37 títulos publicados e distribuídos. “O projeto é legal, mas, mesmo assim, trabalhamos em semiclandestinidade”, queixa-se Rui Amiguinho. “As livrarias e as distribuidoras não querem os nossos livros, têm medo. Mas como gosto de ir contra tudo aquilo que é proibido, cá estamos.”
No catálogo, há obras do nacionalismo clássico e do fascismo italiano, antologias de ex-combatentes do Ultramar, ensaios sobre o “terramoto do 25 de Abril”, perfis de Salazar ou testemunhos sobre a “tragédia da globalização”, que inclui um artigo do falecido líder do MRPP, Arnaldo Matos. Não faltam também memórias de oficiais fascistas, a “tradução fiel” do Mein Kampf, de Hitler ou coletâneas de Mussolini. Para breve, a Contra-Corrente publicará Goebbels e os princípios da propaganda, da autoria do próprio ministro da Alemanha nazi, Joseph Goebbels.
Outras obras são textos de combate e aconselhamento ativista. É o caso de Manual para um Rebelde, escrito por Gustavo Morales, ligado a falangistas espanhóis e comentador de assuntos militares da BBC e do canal estatal Rússia Today. Em tempos de fake news, o autor sugere a utilização do rumor como arma legítima de confronto, tendo em vista completar “o ciclo de intoxicação” do universo mediático, gerando agitação, perguntas e pedidos de explicação em massa sobre a suposta veracidade do mesmo. “O importante do boato é que, com uma economia de meios absoluta, pode chegar a ter consequências insuspeitas e ajuda a deslegitimar os valores, instituições e pessoas do Sistema. O boato é sempre uma bomba-relógio colocada nos pilares do Regime”, sugere Gustavo Morales.
O tema é retomado no mais recente número da única revista da área nacionalista com periodicidade regular, a Plus Ultra, editada pela Contra-Corrente. Pseudónimo de um articulista que esconde a identidade por receio de represálias, Leonardo Silvestre defende a utilização de campanhas de trolling nas redes sociais para desestabilizar ou inflamar discussões a favor das causas identitárias e da direita radical. “Vai existir uma massa de jovens adultos capazes de falar com as normas de um esquerdalho, mas por dentro estará um fervoroso etnonacionalista”, escreve na edição de fevereiro, onde, noutras páginas, Rui Amiguinho se detém a teorizar sobre os valores nacionalistas – “Identidade, Ordem e Autoridade” – supostamente representados nas séries de animação infantis A Patrulha Pata e Thomas e os seus Amigos.
João Martins, crime e causas
“O Fascismo do Terceiro Milénio” e o relato de quatro dias vividos por dentro da organização italiana Casa Pound, “portadora do archote de um Fascismo adaptado ao presente século”, constituem o destaque de capa dessa edição da Plus Ultra.
O autor do artigo e diretor da publicação é João Martins, velho conhecido da área nacionalista. Foi um dos condenados pelo homicídio de Alcindo Monteiro, português de origem cabo-verdiana, falecido na sequência de uma onda de agressões racistas cometidas por skinheads no Bairro Alto. “A pose arrogante e os gestos obscenos com que os arguidos enfrentaram os primeiros dias de julgamento não os favoreceram. As caras não eram simpáticas e os seus tiques militaristas ajudavam ao retrato de um bando violento. Só um destoava. João Martins, um rapaz esguio, com óculos de aros finos, “à Francisco Louçã”, como se diz no processo. A Judiciária traçou-lhe o perfil: ‘Pose altiva, extremamente vaidoso. O elemento detonador’”, escreveu Sofia Pinto Coelho no Expresso, a 7 de junho de 1997.
Sentenciado a 17 anos de prisão, João Martins cumpriu nove e quatro meses. Na cadeia, licenciou-se em História. Quando saiu, constituiu família, abriu um negócio, lançou uma marca de vestuário nacionalista – Pró-Pátria – e não pretende alongar-se sobre o tema mais do que isto: “Miúdos como eu pensavam que a violência era o caminho, mas fomos apenas caricaturas de nós próprios. Assumo essa culpa e carrego uma espécie de crime que não prescreve. A causa estava certa, mas os métodos eram os errados. O Mário Machado é um dos que foram escorraçados da área nacionalista por causa do seu papel pernicioso e tóxico, pois houve uma geração que viu o América Proibida e achava que ser nazi era aquilo. Pela minha parte, fiz um corte total com a delinquência e a criminalidade”, explica à VISÃO.
João Martins, 44 anos, não tem estado parado. “Tenho uma visão distinta da vida, mas mantenho uma atividade política ligada ao nacionalismo.” Fiel à causa identitária, não recusa o rótulo de extremista de direita. “É um termo usado pelos nossos detratores, mas que fazer? Já nos habituámos. O problema é que este é um País de brandos costumes e isso assusta.” Em 2015, empenhou-se na vinda do italiano Francesco Fontana a Portugal, ligado a organizações ultranacionalistas e paramilitares de direita, que conferenciou num quartel de bombeiros em Paço de Arcos. “O Francesco tinha estado na linha da frente do nacionalismo ucraniano, na guerra civil, e eu e alguns camaradas declarámos apoio a essa causa, criando uma página de apoio nas redes sociais. A vinda dele cá não teve nada de violento e a sugestão de que a Misanthtropic Divison é uma coisa séria no nosso país é delirante”, reage.
Em julho do ano passado, assistiu também ao II Encontro Nacionalista, organizado pelo grupo Lisboa Nossa. Segundo a reportagem do semanário O Diabo, com fiéis leitores e colunistas nesta área ideológica, o convidado especial foi Gianluca Iannone, dirigente máximo da Casa Pound. Os debates decorreram no Palácio da Independência e neles participaram, entre outros, Nuno Afonso, do Escudo Identitário, e Rui Amiguinho, da P1. O evento incluiu concertos de grupos musicais de inclinação neofascista, além da exibição de desportos de combate, relatou o jornal.
Estas e outras aparições recentes, além dos contactos internacionais, valem a João Martins presença constante no radar das forças de segurança. O DN sustenta que estaremos perante o “novo líder” dos movimentos identitários. “É anedótico, uma fábula!”, reage o visado. “Ando numa vida costumeira, sou respeitado e conhecido na comunidade, onde brancos, pretos, amarelos ou marcianos sabem do meu passado. Edito uma revista, escrevo uns artigos, apoio a P1, ajudo o PNR e não faço nada ilegal nem perigoso, mas fico satisfeito que monitorizem os meus movimentos. Assim não me preocupo com guarda-costas”, ironiza.
E a extrema-direita, move-se? “Há uma parte do eleitorado que já não se revê no jogo parlamentar e eleitoral”, sustenta. “É nos miúdos desamparados, nos jovens em idade escolar e universitários, que está a base de recrutamento dos movimentos identitários. O setor operário, desprotegido ante a imigração, é outro alvo. O setor militar, até pelo seu patriotismo, olha com simpatia para as nossas ideias, tal como as forças policiais. Mas, para já, o PNR ainda é o portador fundamental das bandeiras do nacionalismo e o seu projeto político está longe do esgotamento”, assegura João Martins que, como dizia o outro, vai continuar a andar por aí, musculado, de óculos escuros e com uma tatuagem no braço esquerdo de reminiscências nazis: “Und morgen die ganze Welt”. Que é como quem diz, “E amanhã o mundo inteiro”.
O dia seguinte
O Escudo Identitário, apesar de algumas ideias e ações em comum no passado recente, quer a filosofia de João Martins longe. Em relação a Mário Machado, “figura televisiva dos programas da manhã no papel de neonazista à Hollywood”, a distância é higiénica. Sentado numa esplanada do Mercado do Bom Sucesso, no Porto, Manuel Rezende, 29 anos (profissional de turismo, colunista de O Diabo, monárquico, “anarcorreacionário” e dirigente nortenho daquele movimento), mastiga dois rissóis para iludir a hora de almoço, mas não se engasga: “O problema não é haver pessoas a rezar viradas para Meca. É existir gente a viver em condições desumanas nos bairros de Lisboa e Porto e ninguém se preocupar com as populações em volta. Como imagina, pretos ou muçulmanos no Martim Moniz é uma coisa que me afeta imenso, até parece que tropeço em alcorões à saída de casa…”, ironiza.
Nos seus escritos, Manuel Rezende tem-se dedicado a alguns dos temas da agenda do Escudo Identitário: “A especulação imobiliária grotesca, o aumento das rendas que afeta muitos dos nossos colegas nas faculdades, a denúncia da ideologia de género, do liberalismo cultural do Bloco de Esquerda que quer fazer à sociedade o que a direita faz na Economia: esfrangalhar, destruir, acabar com a diferença e construir um mundo de pessoas cinzentas”, resume. Ele sempre gostou do termo “revolução conservadora” e rejeita carimbos. “Não sou extremista. Quero fazer política para o meu povo, preocupar-me com o tipo de Bragança que anda quilómetros para ir ao correio ou ao multibanco. Não vou perder energias a chocar o burguês, a fazer escarcéu, a segurar numas caçadeiras ou a rebentar portas e janelas. Ninguém me leva a sério se o fizer.” Manuel Rezende rejeita aristocracias, “formas palonças” de olhar o Portugal de outrora. “Até parece que fomos para as colónias fazer festinhas às pretinhas ou às índias. Fomos construir impérios, teve de se bater e bater a sério! E muitas vezes fomos injustos. A Humanidade é isto, não vivemos na Lua”, argumenta.
O Escudo é, para ele, “a Direita revolucionária” que veio “terraplanar diversos conceitos”, defender “o nosso património genético”. Em síntese, “somos os filhos prediletos da ação”, diz este admirador de Miguel Portas que anda a congeminar a próxima conferência para agitar as águas. Tema? “Álvaro Cunhal visto pela direita”.
Fixos, disponíveis para tudo e a todo o momento, os “escudistas” serão “uns cem”.
Mas 200 ou 300 eventuais, na casa dos 22 anos, com curso universitário, ajudam a dinamizar ações ou aparecem em conferências. “Há socialistas, nacionalistas e gente que nunca votou”, explica o líder, Nuno Afonso, licenciado em Economia e filho de pais que votam nos partidos do bloco central. “Na universidade, há grandes cérebros ao lado das nossas ideias, mas preferem manter o recato, pois sentem que ainda não podem exprimir livremente as suas ideias.”
O último debate promovido pelo Escudo Identitário foi a 4 de maio, num hotel de Lisboa. Fórum Prisma Atual, chamou-se, e teve dois convidados especiais. Da Ucrânia, veio Olena Semenyaka, secretária internacional do National Corps, partido de extrema-direita ligado a circuitos neofascistas europeus e norte-americanos defensores da “supremacia branca”. Do lado português, falou o tenente-coronel Brandão Ferreira. Em ambos os casos, a geopolítica e o papel de Portugal como garante estratégico numa Europa à deriva foram o mote. “Nada do que chegou ao meu conhecimento sobre o fórum me feriu a consciência”, explicou à VISÃO este oficial piloto-aviador, na reforma. Da reconfiguração da direita nacionalista nada sabe, extremismos dispensa-os, mas “se por ‘radical’ entendermos aquele que aprofunda ou vai às raízes dos problemas, já me parecia uma lufada de ar fresco”.
O Escudo Identitário, porém, não tem pressa. “Nas duas próximas eleições, não faremos nada”, assegura Nuno Afonso. O movimento está mais preocupado em recrutar “mulheres e homens politicamente órfãos, cheios de ódio e rancor, perdidos na vida, universitários que querem alternativas ao que ouvem na escola e discordam de professores que falam do passado opressor da Europa”, refere Manuel Rezende. Antes de construir, “vai ser preciso partir alguns vasos”.
Daqui, para já, não virá mal ao mundo, crê a Unidade de Contraterrorismo da PJ. “Neste momento, só Portugal, Malta, Luxemburgo e Irlanda não têm um problema de extrema-direita. Mas se houver alterações radicais das circunstâncias económico-sociais ou de matriz étnico-cultural, as coisas podem agravar-se.” A isso juntam-se outras preocupações, segundo a mesma fonte oficial: “Há setores nas universidades, professores e alunos de boas famílias, a simpatizar com estes movimentos identitários. Nos meios policiais e militares, também. Não é que sejam pessoas de extrema-direita, mas consideram a degradação do regime insustentável por causa da corrupção política e financeira e, num momento de crise, podem pensar que o caminho é por ali.”
Para Riccardo Marchi, a irrelevância do populismo de direita ou de extrema-direita não sofrerá sobressaltos nos tempos mais próximos, até pelo fracasso das novas coligações e partidos, com o Chega à cabeça. “Mas há indicadores de que existe grande margem de manobra para crescer, e a abstenção nas eleições europeias é prova disso”, explica o investigador do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa. “Ora, se aparecer um empreendedor político endinheirado, capaz de mobilizar esse descontentamento, aí sim, talvez seja o momento de ficarmos preocupados.”