Naquele domingo de novembro de 2018, C. bebia um café na varanda da casa dos pais, em Marvila, Lisboa, após o almoço, quando viu um indivíduo a assaltar-lhe o carro no parque de estacionamento, onde o arrumou. De supetão, passou pela cozinha, agarrou numa faca e saiu a correr do apartamento, para impedir o furto. Funcionário autárquico e bombeiro, C. aufere o salário mínimo e anda por empréstimo com o carro da irmã. Se o automóvel desaparecesse, não teria meios de a ressarcir.
O incidente acabou da pior forma, com a morte do assaltante, J., toxicodependente com cadastro por furtos. Quando foi presente a uma juíza de instrução criminal, depois de detido por suspeita de homicídio, C. tinha as calças com vomitado seco, resultado do transtorno que o acometeu logo que a sua experiência de bombeiro lhe indicou que J. estava morto. E o depoimento que prestou à magistrada seria entrecortado por mais vómitos. Do que se lembrava, declarou que levava uma faca na mão esquerda, pegada ao contrário, com a lâmina escondida pelo braço. Quando chegou ao carro, perguntou a J., que se encontrava dentro do automóvel, o que estava a fazer. Sentiu-se dividido entre deixar o assaltante no interior do carro, até à chegada da PSP, que os seus familiares já tinham chamado, e o medo de que o indivíduo arrancasse com o veículo e o atropelasse.
Decidiu-se por tirar J. para fora do carro, momento em que o assaltante lhe apontou uma chave de fendas (com a qual, soube-se depois, entrou no automóvel). Envolveram-se numa luta, e C. garantiu à juíza que atirou para longe a faca que detinha assim que se apercebeu de que J. tinha ficado sem a chave de fendas. Mas ainda receava que o assaltante “tivesse uma pistola”. É por isso que C., antigo praticante de artes marciais, diz ter aplicado um “mata-leão” ao adversário, um golpe prolongado de aperto do pescoço que “vai tirando a respiração, para que perdesse a força, de maneira a imobilizá-lo”. No entanto, contou à juíza, “o indivíduo caiu instantaneamente”. O óbito de J. foi declarado no local pelo INEM. Se a causa de morte é, ou não, o “mata-leão”, só a autópsia o dirá (de resultado ainda desconhecido quando estas linhas eram escritas).
J. tinha um autorrádio no bolso, fruto de um assalto anterior, e era um aparelho desses, apurou-se depois, que se preparava para furtar do carro de C., que o havia comprado por 15 euros.
NA PRÁTICA, A TEORIA É OUTRA
No seu artigo 32º, o Código Penal estipula aquilo que é uma causa de exclusão de ilicitude: “Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.”
O funil é apertado, mas Túlio Araújo, advogado de C., diz que vai alegar legítima defesa do seu constituinte, a que soma a demora da chegada ao local do incidente, após terem sido chamados, da PSP (50 minutos) e do INEM (20 minutos). Também sublinhará “o estado de choque” em que ficou o funcionário autárquico e bombeiro (obrigado a apresentações semanais às autoridades), que de forma obsessiva e repetitiva relatava a colegas de trabalho a sua versão dos factos – a ponto de um psiquiatra lhe passar uma baixa médica com o diagnóstico de “stresse pós-traumático”.
A família de J. tem outro veredicto: o que aconteceu “foi um assassínio”. Túlio Araújo, aliás, já antecipa que o seu constituinte seja acusado de homicídio simples, punido com prisão de oito a 16 anos. Segue-se uma incógnita. “Na legítima defesa julgamos intenções que não são visíveis, donde a importância de indícios objetivos que existam – a forma como o agente atuou, a zona que atingiu, a possibilidade que tinha de atingir outras áreas do corpo não letais, os meios que utilizou”, diz o desembargador Pedro Cunha Lopes.
Os juízes aferem assim se houve, da parte do “agente”, intenção de matar, de ferir, ou apenas de se defender. “É uma conclusão fundamental”, afirma o magistrado, que destaca outro aspeto: “A doutrina e a jurisprudência têm entendido que, havendo dúvidas em termos probatórios sobre se alguém agiu em legítima defesa, o princípio in dubio pro reo determina que o juiz tenha de dar como provado que agiu em legítima defesa, com a intenção de repelir uma agressão, pelo que não é punido.” O que é raro suceder, como esclareceram vários advogados contactados pela VISÃO.
Regra geral, o Ministério Público (MP) deduz acusação, por mais que o arguido alegue e tente comprovar a legítima defesa. “Nada obriga a que assim seja, mas na prática é o que vai acontecendo”, comenta aquele desembargador. No entanto, compreende que o MP “chute” para os juízes a clarificação (ou não…) dos processos de suposta legítima defesa. “Muitas vezes estes casos ficam para julgamento porque é necessário o contraditório pleno, o averiguar de todas as provas”, diz.
EM RISCO DE VIDA E ACUSADA
Ler o despacho em que o MP acusa M. de homicídio do companheiro, B., com quem viveu durante cerca de 18 anos em união de facto, é um exercício esdrúxulo. Relata o procurador que “ao longo dos anos, por diversas vezes, a arguida foi vítima de agressões por parte de B.”, na sequência das quais abandonou, pelo menos em duas ocasiões, a residência do casal, ambos funcionários de segurança, em Lisboa. M., porém, voltaria à relação, crente de que B. “mudaria e porque este lhe dizia que caso saísse de casa saberia onde a encontrar”.
Num dia em que os dois estavam de folga, 29 de setembro de 2008, depois de acordar pelas oito da manhã, o homem começou mais um dos seus habituais ataques de ciúmes. Provocou a companheira, acusou-a de ter uma relação extraconjugal e exigiu que lhe entregasse o telemóvel, para o inspecionar. Ela acedeu. E M. disse-lhe que tinha “um amigo a quem confidenciava a tristeza que sentia”. De imediato, B. ligou a esse homem “a insultá-lo e a ameaçá-lo de morte caso voltasse a falar com a arguida”, descreve o despacho.
À uma da tarde, B. “disse à arguida: ‘Olha que vou começar a beber’, o que sempre fazia antes de a agredir”. Depois, trancou a porta de casa e guardou consigo as chaves. A tensão aumentava, o homem “foi ficando cada vez mais nervoso e exaltado”. Até que empurrou M. para o quarto, “retirou uma navalha de uma gaveta da cómoda, encostou-a várias vezes à barriga e ao pescoço da arguida, simulando o gesto de corte, e disse: ‘Estás a ver, é tão fácil, é só fazer assim.’” Ato contínuo, “desferiu um forte estalo” na cara de M., “seguido de pontapés e murros” em todo o corpo da mulher. Foi então que pegou na pistola, carregada, que tinham em casa. Apontou-a à companheira, dizendo-lhe que “não a iria matar, mas apenas fazer uns ‘furinhos’ (…)”. Mudaria de ideias. Pousou a pistola na cómoda e “muniu-se de um cinto”, que “enrolou à volta do pescoço da arguida, apertando-o”. M. conseguiu afastá-lo, empurrando-o para cima da cama. B. levantou-se e tentou outra vez asfixiar a mulher – que arranjou forma de chegar à pistola que estava em cima da cómoda e descarregou três tiros no peito do agressor, matando-o.
Parece legítima defesa pura. No entanto, é por completo desconsiderada no despacho de acusação. Segundo o procurador, “a arguida, ao disparar três tiros a tão curta distância, fê-lo sabendo ser tal idóneo a provocar a morte” do companheiro, “o que quis e logrou”. Escreve ainda que M. agiu “de forma livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.
A arguida, que ficou em liberdade provisória, seria absolvida em julgamento por um coletivo de três juízes – mais de quatro anos após os factos. “Dúvidas não subsistem quanto à verificação dos pressupostos da legítima defesa”, considerou o coletivo. M. “atuou (…) com intenção de se defender das agressões” de B., “de modo a impedir” que ele “a asfixiasse com o cinto”, reconhece-se na sentença, da qual o MP não recorreu.
O ERRO…
Numa situação amorosamente idílica estava P., agente da PSP. Os ponteiros do relógio aproximavam-se das duas horas de uma madrugada do verão de 2008 quando estacionou o seu Opel Corsa perto de um café de praia, no concelho de Marinha Grande. Acompanhava-o H., a sua namorada. O local já estava sem qualquer iluminação, o céu mostrava-se nublado e a noite era um breu.
De repente, do nada, surgiu um homem, como se descreve na sentença de um coletivo de juízes do tribunal da Marinha Grande. Primeiro, encostou a cara ao para-brisas, do lado do condutor, para ver o que se passava no interior do Corsa. F., soube-se depois, era um “espreita” conhecido na zona.
Assustada, H. gritou para o homem, ao mesmo tempo que batia no vidro do carro: “Sai daqui!” Só neste momento P. reparou no vulto que se aproximara. Vendo-se surpreendido, F. pôs-se aos berros, dirigindo-se a P.: “Vou-te matar, vou-te dar um tiro, vou-te foder.” O agente da PSP, que pensou logo numa possível retaliação por causa do desmantelamento, em que participara, de um gangue de traficantes de droga, que na altura estava a ser julgado no tribunal de Leiria, tentou sair dali para fora, mas o Corsa não pegou. Sempre aos gritos, F. contornou o carro pela traseira e colocou-se do lado direito do automóvel, em frente da porta do lugar onde estava H., aterrorizada.
Foi então que P., dada a falha de ignição do Corsa, resolveu sair do carro, municiando a pistola de serviço. Ele e F. ficaram cara a cara, com o carro de permeio. Em voz alta, P. disse-lhe: “Sou polícia, vai-te embora.” Mas o homem manteve-se onde estava e a proferir as mesmas expressões agressivas. Até que o agente da PSP, que saíra do trabalho duas horas antes, viu F. a levantar os ombros, sempre numa atitude ameaçadora. Achou, no momento, que o homem tinha uma arma e que se preparava para disparar. P. antecipou-se e disparou três tiros: os dois primeiros para o ar e o terceiro para um ombro de F., “órgão não vital”. O homem, porém, aguentou-se de pé e disse-lhe: “Deste-me um tiro.”
Ainda convencido de que o intruso tinha uma arma e que podia dispará-la contra si ou contra a namorada, P. entrou no Corsa, que desta vez respondeu à ignição, deu a volta ao parque de estacionamento e posicionou o carro de forma a que os faróis incidissem sobre o local onde F. se encontrava. Mas na altura em que esta manobra era feita, P. e H. sentiram um impacto forte no lado direito do carro, o que reforçou a convicção do polícia de que o indivíduo estava armado e tinha disparado. Voltou a sair do Corsa, de pistola em punho, “temendo pela sua vida e pela vida da sua acompanhante”, e dirigiu-se ao sítio onde F. devia estar. Mas não estava. Encontrou-o, depois, caído no estrado do café de praia, a esvair-se em sangue. O tiro, afinal, acertou-lhe no pescoço. P. providenciou socorro imediato – em vão. F., que não estava armado, soçobrou aos ferimentos.
O MP acusou o agente da PSP de homicídio qualificado, punido com cadeia de 12 a 25 anos. No entanto, na sentença do julgamento, proferida em junho de 2010, o coletivo de juízes do tribunal da Marinha Grande modificou o quadro jurídico-penal dos factos, condenando P. (que mostrou “sincero arrependimento”) a dois anos e seis meses de prisão, com pena suspensa, por homicídio negligente. O acórdão censura a falha do arguido no “dever de cuidado”, embora o coloque na chamada “legítima defesa putativa”. Explica que “objetivamente, não se dão no caso os elementos justificadores exigidos [para a legítima defesa], mas subjetivamente o agente supõe erroneamente que eles se verificam”. Atua, pois, “sem culpa dolosa”. Inconformado, o MP recorreu para a Relação de Coimbra – sem êxito. Os desembargadores confirmaram os fundamentos e a sentença da 1ª instância.
… E O EXCESSO
Uma inimizade figadal, devida a uma sucessão de conflitos, já é outro assunto – ainda para mais numa pequena freguesia rural, no concelho de Resende, no caso. Estava-se a 25 de setembro de 2005, à noite, pelas 20h30. O reformado X. encontrava-se na casa de uma familiar, e da rua ecoou uma voz que conhecia bem, a de I., agricultor, seu inimigo jurado. “Ele está a ouvir-me”, disse o homem da lavoura a quem o acompanhava. “Hei de matá-lo como se mata um cão. Ninguém se mete com os M…”
Por causa das ameaças recorrentes, X. passou a andar armado com uma pistola. Naquele momento, porém, optou por sair de casa da familiar e dirigir-se para a sua residência, ali perto. Fez um caminho diferente do habitual, para evitar encontrar-se com I., a irmã deste, e o cunhado.
O agricultor e os seus dois acompanhantes também saíram do local e, por coincidência ou não, fizeram o mesmo percurso que X. tinha tomado. Este achou que estava a ser alvo de uma perseguição, para o agredirem. Além do mais, o cunhado de I. levava uma vara de madeira na mão (explicaria mais tarde que a usava sempre para se “apoiar”). A dado momento, X. voltou-se para o inimigo e avisou-o: “Para aí, para aí.” Mas quando ambos se encontravam a apenas dois metros um do outro, o reformado empunhou a pistola e, apontando ao baixo-ventre de I., atingiu-o com quatro tiros seguidos, que o feriram nas duas coxas, na região inguinal e na mão esquerda. O agressor entregou-se à GNR local, e duas intervenções cirúrgicas salvariam a vida ao agricultor.
O MP acusou X. de homicídio tentado. Um coletivo de juízes do tribunal de Resende, no entanto, amenizou a condenação do reformado para quatro anos de prisão, com pena suspensa, por ofensa à integridade física grave. No acórdão, os magistrados aceitam que a atuação de X. se enquadrou no “denominado excesso asténico, devido a medo, susto e perturbação”, e que “tais causas motivadoras” não lhe eram “censuráveis”. Foi um incentivo para o reformado recorrer para a Relação do Porto, insistindo na legítima defesa.
Mas os desembargadores chumbaram, ao mesmo tempo, a sentença da 1ª instância e o recurso do arguido. Na sua decisão, aludem à “irracionalidade, imoderação” e “falta de temperança nos meios empregues na defesa”. Escrevem que “não ocorrendo os pressupostos da legítima defesa, que leva em consequência à não existência desta, é óbvio que também não pode verificar-se o excesso de legítima defesa”. E concluem que “não se justifica a atenuação especial da pena” de que o arguido beneficiou na 1ª instância. A sorte de X. foi que, estranhamente, o MP não recorreu, o que conduziu à “proibição da reformatio in pejus”, medida que, nestas circunstâncias, impede que o arguido seja punido com sanções mais graves pelo tribunal superior. Livrou-se de boa o reformado.
ABSOLVIÇÃO INESPERADA
Continuamos com a inimizade letal, agora numa pequena aldeia do concelho de Almodôvar. L. e A. tinham discussões violentas. O segundo protestava que as cabras do primeiro saíam da cerca e danificavam a sua horta. Exigia a L. que o indemnizasse dos prejuízos causados pelos animais – o que este recusava liminarmente. Até que, num anoitecer de novembro de 2007, o conflito terminou em sangue. Encoberto pela escuridão, A. avançou para a propriedade de L., surpreendeu-o pelas costas e atirou-o ao chão. Depois, começou a bater com uma pedra bicuda na cabeça do dono das cabras. Em resposta, L. conseguiu sacar de uma navalha que tinha no bolso e esfaqueou o agressor no peito. A. morreu ali mesmo.
João Viana, advogado do “pastor”, recorda à VISÃO que encarou o processo com “apreensão”. Antecipava, claro, que o MP acusasse o seu constituinte de homicídio simples. Mas como defendê-lo em tribunal, quando a única testemunha era a escuridão da noite? O dono das cabras e o seu advogado, porém, seriam “abençoados” pela presidente do coletivo de magistrados que julgou o caso no tribunal de Almodôvar. “Tivemos a sorte de nos calhar uma juíza que quis mesmo saber o que se havia passado e perceber tudo”, diz João Viana. A magistrada até promoveu a reconstituição da luta entre A. e L., protagonizada por dois militares da GNR. Resultado: absolvição do “pastor” por legítima defesa pura.
O MP apenas fez um recurso cível, para tentar obter uma indemnização de 50 mil euros para a família de A., que seria recusada pelos desembargadores da Relação de Évora.
EXCEÇÕES À REGRA
Faça-se a justiça de referir que o MP também iliba e arquiva – embora excecionalmente. Veja-se o exemplo de T., proprietário de uma ourivesaria em Santa Maria da Feira. Entre 2003 e 2006, o seu estabelecimento foi três vezes assaltado à mão armada. Foram sempre situações de extrema violência, com o empresário, ameaçado por caçadeiras que lhe eram apontadas, obrigado a entregar aos assaltantes gavetas repletas de objetos de ouro.
O quarto assalto fê-lo acordar estremunhado. T. morava por cima da ourivesaria e, pelas quatro horas da madrugada de 23 de março de 2007, ouviu o barulho do levantamento das grades de proteção da loja, e o do vidro da montra a ser partido. Não teve dúvidas de que era mais um assalto. Agora, já desceu ao rés do chão de pistola em punho. Mal abriu a porta do prédio, deparou-se com dois assaltantes encapuzados, no interior da ourivesaria, a despejarem peças de ouro para dentro de um saco de desporto. Cá fora estava o Seat em que se faziam transportar (era furtado, soube-se depois).
O empresário declarou que os indivíduos, logo que se aperceberam da sua presença, viraram-se para ele, e que um dos assaltantes exibiu o que lhe pareceu ser “uma arma de fogo”. Nesse instante, a porta de entrada do prédio fechou-se. Em pânico, T. correu em direção à porta de casa, ao mesmo tempo que disparava a sua pistola para a “zona abaixo da cintura” dos assaltantes. Mas um deles, R., seria atingido no abdómen. Ainda conseguiu entrar no Seat e percorrer cerca de 50 metros com o carro – até não resistir aos ferimentos e morrer. O outro assaltante, não identificado, fugiu a pé, sem deixar rasto.
A procuradora do processo considerou que o ourives atuou com excesso de legítima defesa, mas que essa conduta se deveu “a medo não censurável”. E, não existindo “culpa”, determinou o arquivamento dos autos.
Descemos até ao concelho de Palmela, somamos nove anos ao tempo e temos outro cenário dramático. Pelas cinco e meia da tarde de 21 de março de 2016, o reformado S. ouviu a campainha da sua moradia soar. Foi ao portão e deparou-se com quatro desconhecidos. Reparou que um quinto homem estava dentro de um carro, estacionado junto à casa. Um dos indivíduos disse-lhe que procurava uma pessoa da zona a quem tinha vendido um “Mercedes vermelho”, que já não se lembrava do nome do comprador nem da sua morada, e pediu-lhe se podia ajudá-lo a encontrá-lo.
S. respondeu-lhe que nunca tinha visto por ali tal automóvel. Depois, o indivíduo pediu-lhe um copo de água. O reformado entrou em casa, mas nem teve tempo de chegar ao armário dos copos. De rompante, o homem com quem estivera a falar, F., invadiu-lhe a casa, agarrou-o por trás e arrastou-o para o quarto do casal. Seguiram-se cerca de 30 minutos infernais. S. ouvia a sua mulher a ser violentamente agredida pelos outros assaltantes, que empunhavam facas, e os gritos de pânico das duas netas, com 9 e 5 anos, que em má hora estavam com os avós. No quarto, F. remexia em armários e gavetas, e aos berros perguntava ao reformado, na altura com 74 anos, onde estavam “o ouro e o dinheiro”. Um pesadelo.
Até que S. olhou para o lado e viu a caçadeira que guardava atrás da porta. Ao fazer o gesto para pegar na arma, o assaltante arrancou a porta de um armário e levantou-a para agredir o reformado. Não teve tempo. S. disparou antes e o homem caiu morto sobre a cama do casal. Logo que ouviram o tiro, os outros assaltantes puseram-se em fuga (só um seria apanhado e condenado a prisão efetiva).
O MP arquivou o inquérito – a “ação” de S. “consubstancia a legítima defesa”, lê-se no despacho. Recentemente, o reformado confidenciou à VISÃO que se lembrou depois de que a última vez que tinha municiado a caçadeira fora “há 30 anos”. Apesar de tudo, a roda da sorte esteve do seu lado.
O “Projeto Desarmar”
Por iniciativa do Governo, cerca de 500 mil armas legais podem ser inutilizadas
O Governo submeteu ao Parlamento uma proposta de alteração da “lei das armas”, com um ponto especialmente polémico: a eliminação da licença de detenção no domicílio. Se a vontade do Executivo vingar, afetará centenas de milhares de pessoas proprietárias de cerca de 500 mil armas ao abrigo daquela disposição legal, as quais serão desativadas pela PSP.
Pela voz da secretária de Estado da Administração Interna, Isabel Oneto, o Governo diz que as armas em causa “não têm qualquer utilidade”, uma vez que a lei já determina que, “em caso algum”, a sua detenção “pode ser acompanhada de munições para as mesmas”. E que, estando na posse de “cidadãos em número excessivo”, é grande o risco do seu uso em crimes, após “furtos e assaltos a residências”. Um responsável da PSP, superintendente Pedro Moura, acrescenta um terceiro argumento – o “risco de acidente” que, de forma indireta, remete para o incumprimento da proibição de munições…
No passado dia 3, a Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias criou um grupo de trabalho para escrutinar “artigo a artigo” a proposta do Executivo, de maneira a chegar a um diploma que recolha o maior consenso possível na votação final global. Mas a controvérsia da iniciativa do Governo fica patente nas três dezenas de audições, de entidades e especialistas, a que aquele grupo irá proceder.
João Santos, do Movimento Cidadãos Armados de Portugal, considera a eliminação da figura de detenção no domicílio uma “espoliação de património”. Argumenta que “se a arma foi adquirida no circuito legal e registada, não há motivo nenhum para essa propriedade ser retirada ao cidadão”. Diz que algumas destas armas “têm um valor patrimonial elevado”, caso das que provêm do tempo da monarquia. “Uma arma histórica sem capacidade de disparar é como um quadro de Picasso rasgado”, compara. Quanto ao perigo de roubo, afirma que “nunca houve capacidade do Ministério da Administração Interna para negociar melhores condições de segurança obrigatórias em cofres” domiciliários. E alerta para a “importância dissuasora” destas armas nos meios rurais, onde “são uma forma de as pessoas se protegerem a si e aos seus bens”. Diz que “ao bandido faz-lhe ‘comichão’ saber que a vítima, que estudou, tem uma arma em casa”.
A proposta do Governo não mexe no uso e porte de arma para defesa pessoal – cerca de nove mil pessoas têm esta licença. As regras, aqui, são já apertadas. Exemplo:
“Quando exista perigo iminente de morte ou de ofensa grave à integridade física”, e a defesa “não possa ser garantida por agentes da autoridade do Estado”, o disparo tem de “ser precedido de advertência verbal ou de disparo de advertência” e, “em caso algum”, pode “visar zona letal do corpo humano”. Imagine-se a ser asfixiado e a ter de pensar nas apertadas restrições impostas pela chamada “lei das armas”…
Instruções de bolso
As várias formas da legítima defesa analisadas à luz do que diz o código penal:
Legítima defesa pura
Conduz à absolvição do arguido (com frequência in dubio pro reo), porque o tribunal considera que o indivíduo atuou com meio proporcional face às circunstâncias do ato ilícito (agressão ou roubo) que sofreu, ou que viu um terceiro ser vítima.
Legítima defesa putativa
São casos em que os juízes concluem que o arguido considerou, erroneamente, que se encontrava numa situação de legítima defesa. Não há, por isso, culpa dolosa, mas apenas negligência. Dá lugar a uma pena especialmente atenuada, suspensa na sua execução.
Excesso de legítima defesa
É assim classificada quando o tribunal verifica a desproporção do meio utilizado pelo arguido para repelir a agressão de que foi vítima. Em regra, é aplicada uma pena especialmente atenuada e suspensa. Mas pode também dar lugar à absolvição, se o referido excesso resultar de “perturbação, medo ou susto, não censuráveis”.
Direito de necessidade
É um conceito usado como causa de exclusão de ilicitude, quando o arguido agiu para afastar uma circunstância de perigo que o ameaçava, a si ou a um terceiro. No entanto, têm de existir dois pressupostos fundamentais: essa situação de perigo não pode ter sido voluntariamente criada pelo arguido; e a “superioridade” do “interesse a salvaguardar”, face ao “interesse sacrificado”, tem de se revelar “sensível” e “razoável”.
Estado de necessidade desculpante
Exclui a culpa e a condenação se o ato ilícito cometido pelo arguido se mostrar a única forma existente, no momento, para afastar um perigo que ameaçava a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do próprio ou de um terceiro. E se os “interesses jurídicos” ameaçados forem outros que não os referidos, e “não for razoável exigir ao arguido comportamento diferente”, a pena pode ser especialmente atenuada ou mesmo dispensada.
Cuidado com o cão!
A jurisprudência sobre danos causados por cães de guarda baliza-se entre dois acordãos – um de condenação e outro de absolvição dos donos dos animais
Na manhã de 20 de maio de 2000, o estucador A., residente em Olhão, dirigiu-se a uma oficina de automóveis. Precisava que o seu carro fosse reparado. Mas era demasiado cedo (cerca das sete e meia) e encontrou o estabelecimento ainda fechado. Aproximou-se do portão, para ver o horário da oficina, e, num ápice, por entre as grades, um pit bull (cão de raça potencialmente perigosa) enfiou o focinho e mordeu–lhe o nariz, arrancando–lhe a cartilagem – um ferimento gravíssimo, com sequelas para a vida.
No processo cível que a vítima lhe moveu, o dono do animal, B., alegou que tinha o cão porque a oficina sofrera assaltos sucessivos. Perdeu a causa, porém, em 1.ª instância e na Relação de Évora.
Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça – de onde saiu outra vez derrotado, em 2007. Nos factos apurados, verificou-se que o pit bull andava solto no interior da oficina e que, à entrada do estabelecimento, faltava a placa de alerta para a existência do cão. Num argumento final, B. referiu uma chapa de proteção colocada na parte inferior do gradeamento do portão. Mas os juízes-conselheiros responderam-lhe com provas de que tal proteção foi instalada após o incidente…
Condenaram-no a pagar uma indemnização de perto de 40 mil euros à vítima e deixaram escrito no acórdão que “a responsabilidade pode coexistir quer fundada no risco ou na culpa”.
Decisão judicial diversa teve um incidente com um rotweiller (raça também potencialmente perigosa), que a vítima, sempre inconformada com as perdas de causa, arrastou durante cerca de 11 anos, entre instâncias penais e cíveis. Tudo começou numa manhã de domingo, de setembro de 2005, em Santa Maria da Feira. A queixosa, H., dirigiu-se a uma loja de telemóveis – estava sem carregador para o seu aparelho. Como o estabelecimento se encontrava fechado, tocou à campainha da casa ao lado, onde vivia C., o gerente da loja. Da varanda da moradia, F., namorada do gerente, pediu à cliente que aguardasse, enquanto ia abrir a entrada que dava acesso direto ao estabelecimento. Mas H., em vez de esperar junto ao portão, onde havia uma placa que alertava para a existência do cão, abriu-o, acedeu ao pátio e foi atacada e mordida pelo rotweiller.
A decisão final sobre o caso, desfavorável à queixosa, seria tomada, em 2016, por desembargadores da Relação do Porto. Lê-se no acórdão que a “circunstância” do incidente foi “provocada pela própria vítima, a quem era exigida e a quem era possível uma atuação diversa, que teria prevenido a ocorrência dos danos”.