Tenho à minha frente uma buganvília fúcsia a explodir ao sol que finalmente amadurece as primeiras nêsperas do ano. É fácil distrair-me neste jardim. Há meia hora, nem tanto, um melro atravessou-o com um grito de alarme e lembrei-me doutros melros num relvado mais a norte no mapa. Estou no Estoril, numa casa onde os meus bisavós quiseram um caramanchão e uma videira, como se ainda vivessem na Murtosa, e vou mudar de poiso, porque as abelhas descobriram as flores do pitósporo atrás de mim.
Durante essa manobra de diversão, dou por uns cães que ladram algures e pelas vozes de crianças para lá do vale. Será que berram palavras à toa só para o eco as trazer de volta, tal como eu e as minhas irmãs fazíamos em pequenas?
Um dia estávamos nessa brincadeira e marcámos encontro com um vizinho desconhecido; éramos adolescentes, ele era loiro, já não me lembro como acabou a história. O que interessa é que conseguimos falar ao longe sem fios nem ondas de qualquer espécie, coisa hoje se calhar tão surreal para um millennial como é para qualquer pessoa imaginar os carmelitas descalços a comunicarem entre si através dos sinos das ermidas e do Convento de Santa Cruz do Buçaco.
Os frades tinham feito um voto de silêncio e no seu Deserto, onde a partir do século XVII viveram como os eremitas do cristianismo primitivo, nem as pegas podiam falar.
Rezam as crónicas que um tal frei António de Cristo, prior do convento, “porque Deus lho revelasse”, deu com um certo ermitão a criar na sua cela uma pega, “ave que a Natureza dotou de língua capaz de tomar a humana e cuja espécie abundava o sítio de indivíduos”. Para ensiná-la a falar, o frade “fazia-o com ela”, embora “com o respeitoso recato, não sendo ouvido pelos outros ermitões”. Foi o suficiente para o prior invetivar o “maravilhoso pássaro”, ordenando-lhe que nunca mais tornasse a entrar naquele “lugar santo”, ao que o bicho terá baixado a cabeça, batido as asas e voado para sempre da clausura.
A lenda da pega é recordada num artigo publicado na Ilustração Portugueza, a 25 de novembro de 1907, e continua a ser contada aos visitantes da Mata Nacional do Buçaco. Tive a sorte de a ouvir pela primeira vez no alto do terracinho da Ermida do Santo Sepulcro, o local perfeito para Elodie Madeira, uma das guias, explicar a razão por que hoje é raro verem-se pegas entre os muros que rodeiam os 105 hectares de floresta.
Agora, a 200 e picos quilómetros de distância, fecho os olhos e estou outra vez nessa ermida construída entre rochedos a que chegámos depois de deixar o carro junto à Cruz Alta e de descer umas dezenas de degraus de pedra entre pequenas árvores de ramos tortuosos. Por momentos, é como se dominássemos um imenso mar verde que aos nossos olhos rapidamente revela ter diferentes tons, mesclados aqui e ali com o amarelo das mimosas e ao centro, junto ao Palace Hotel, com o lilás das glicínias que por estes dias cobrem a pérgula.
Quem me dera ser onda, penso invejando os frades que aqui viviam (mesmo aqueles que tinham ido em penitência). Devemos-lhes esta mata que um dia decidiram criar para melhor servirem Deus. Não é por acaso que hoje somos surpreendidos por várias sequoias gigantes – quanto mais altas fossem as árvores, mais os carmelitas chegariam perto do Senhor.
Elodie, novamente ela, faz uma semicircunferência com o dedo indicador direito esticado a tocar num muro imaginário que realmente existe lá em baixo. “Dá para saber onde termina a mata, porque à sua volta só vemos eucaliptos e terra queimada.” Há dois anos, o fogo passou a escassos 250 metros da Porta da Rainha, uma das suas dez entradas, um susto que horas antes, à frente de uma travessa de leitão assado no Rocha, na Mealhada, concluímos ter servido de aviso a António Gravato.
Assumidamente supersticioso, o presidente da fundação que gere o património florestal, histórico, cultural, religioso e militar da Mata do Buçaco é avesso a cantar de galo, mas acaba a explicar direitinho o “milagre” (a expressão é nossa) de ela parecer imune ao fogo.
Estratégia de sobrevivência
Uma e outra vez dirá que tem sido determinante o seu entendimento com o presidente da Câmara da Mealhada, Rui Marqueiro, mas há mais. A começar, claro, pelas condições edafoclimáticas (um palavrão relativo ao solo e ao clima) que fazem do Buçaco um microclima, e pelos povoamentos florestais muito antigos, alguns com quase 400 anos, responsáveis pela criação de uma zona húmida de sub-bosque que dificulta a combustão.
A ameaça está fora da mata, percebeu rapidamente este silvicultor, mas se precisava de um sinal, ele chegou a 14 de outubro do ano passado. Nessa noite, as chamas vieram da vizinha serra da Lousã, “e a sorte foi que a latitude do incêndio estava acima do paralelo do Buçaco”, conta Gravato, que esteve até de madrugada com os presidentes da câmara e da Proteção Civil e as equipas de prevenção no chamado Posto de Comando de Wellington, o ponto mais alto da serra.
Nos momentos críticos, o destino dos operacionais é invariavelmente o posto de onde o general duque de Wellington comandou o exército anglo-luso durante a Batalha do Buçaco, em 1810, ou a Cruz Alta, a 547 metros de altitude, porque dali se vê uma massa contínua de floresta (e ao longe o mar e a serra da Boa Viagem). Mas não basta estar de prevenção no terreno, diz Gravato. “É essencial fazer um esforço para minimizar os riscos, porque nunca estamos descansados.”
Foi por isso que ao assumir a direção da fundação, há cerca de três anos, quis sentar-se rapidamente com o autarca da Mealhada para delinearem juntos uma estratégia. Começaram por reunir na sede da fundação, uma das casas cor de rosa junto ao palácio onde, por coincidência, costumava passar férias quando o seu pai era diretor-geral das florestas. E uma das primeiras decisões que tomaram foi avançar com a criação de um Plano de Gestão Florestal que deu origem a um Plano Especial de Intervenção Florestal, instrumento de salvaguarda dos incêndios.
Se não houvesse esse trabalho de casa feito, não teria sido criada uma brigada de sapadores florestais que vai operar na serra do Buçaco, fora da mata, graças ao protocolo assinado a 23 de março, com o secretário de Estado das Florestas, o Instituto de Conservação da Natureza e os presidentes das câmaras de Mortágua, Penacova e Mealhada. Nem para o seu interior estariam previstos para breve a videovigilância e, nos períodos de maior risco, o patrulhamento 24 horas por dia.
Recentemente, foi também com base nos dois planos que a fundação assinou com o Executivo um contrato-programa que lhe garantiu 210 mil euros para investir em caminhos, limpeza e processamento de biomassa. A verba arrecadada pelas portagens pagas por carro e pelos visitantes à entrada representa uma ínfima parte daquilo que é necessário, garante Gravato. “Sabe quantas edificações temos na mata? 140! Só para limpar à volta delas…”
Foram décadas sem se investir numa mata que nos últimos anos escapou aos incêndios, mas teve a sua quota de desastres naturais. Em janeiro de 2013, o ciclone Gong afetou 40% da sua área; em fevereiro do ano seguinte, a tempestade tropical Stéphanie provocou estragos na Fonte do Carregal, numas das portas de acesso e em vários caminhos; e, no início de 2016, um temporal arrastou taludes, destruiu trilhos turísticos e derrubou cerca de 30 árvores de grande porte, muitas delas seculares.
Dois anos depois, é impossível esquecer a inesperada clareira provocada pela queda de um enorme cedro do Buçaco que fez cair em dominó uma série de outras árvores. Ou o triste fim de um aderno-de-folha-larga, uma morte com direito a adjetivo porque sabemos que os carmelitas não tocaram nos 15 hectares de adernal, logo abaixo da Cruz Alta. A mancha representava o Monte das Oliveiras e, como os frades queriam simular Jerusalém foram deixando estes arbustos crescer até alcançarem um porte arbóreo.
Pode ser sugestão, talvez seja por termos acabado de vir da Ermida do Sepulcro, mas olhamos pela primeira vez com atenção para os adernos e as suas folhas parecem-nos de oliveira. O tronco, tortuoso, é que não podia ser mais diferente, nota Sofia Ferreira, a nossa guia que é bióloga de formação.
“Vê-se bem como aqui os vários ramos de arbustos se uniram para fazer um principal”, aponta, e ficamos tentados a descobrir qual foi naquele caso o ramo dominante. E consta que não somos os únicos a espantar-nos – o adernal é visitado por gente de países tão longínquos como a Austrália ou a Nova Zelândia por ser o único do mundo anterior à existência do Homem.
“O melhor é perder-nos nela”
Estamos na chamada Floresta Relíquia, um habitat que na verdade são três sub-habitats – além do adernal, há um louriçal e um carvalhal. Passamos por um carvalho-negral que estende alguns ramos numa curva do caminho de escadas de pedra e não resistimos a tocar nas suas folhas aveludadas. E mesmo à luz crua do início da tarde, semifiltrada pelas copas das árvores, havemos de teimar que a gilbardeira imita na perfeição o azevinho. A verdade é que não tínhamos reparado nela em visitas anteriores; na memória guardávamos sobretudo a habitual neblina da manhã que empresta um ar misterioso à floresta.
É uma mata encantada, esta, óbvia matéria de romance e poesia. Contava Eça de Queirós que Antero de Quental “marchava léguas [supostamente desde Coimbra], em rijas caminhadas que se alongavam até à mata do Buçaco”, onde “desaparecia, se embrenhava sozinho”. E José Saramago chegou a confessar-se incapaz de descrevê-la.
“O melhor é perder-nos nela”, avisou na sua obra Viagem a Portugal, mas ainda assim tentou: “O viajante passeia, entregando-se sem condições, e não sabe exprimir mais do que um silencioso pasmo diante da explosão de troncos, folhas várias, hastes, musgos esponjosos, que se agarram às pedras ou sobem pelos troncos acima e quando os segue com os olhos dá com o emaranhado das ramagens altas tão densas que é difícil saber onde acaba esta e começa aquela. A mata do Buçaco requer as palavras todas e estando ditas elas, mostra como ficou tudo por dizer.”
Já o Papa dizia
Tem graça perder-nos nela, mas desta vez seguimos os passos de Elodie e de Sofia, que começam por nos levar a ver a Fonte Fria e, logo depois, o Vale dos Fetos arbóreos e o grande lago rodeado de camélias.
Resistimos a subir os 144 degraus da fonte-postal-da-mata, uma vez que é grande o apelo dos fetos gigantes, “fósseis vivos” dizem as guias, porque em tempos foram alimento de dinossauros herbívoros. E no lago gostamos de ficar a saber que muitas das japoneiras (nome dado às cameleiras no Norte) foram um presente antigo do conde Villar d’Allen (1785-1848), cuja quinta do Porto é famosa pela sua coleção de flores.
Antes de regressarmos à Cruz Alta, ainda haveríamos de percorrer mais um pouco do Trilho da Via-Sacra, que normalmente se faz a partir do convento (que foi quase todo demolido para se construir o Palace Hotel, entre 1888 e 1907). Já sabíamos ser uma via-sacra à escala da de Jerusalém (tem que ver com a distância dos passos), mas decidimos guardá-la para outra visita, quando as obras de recuperação das capelinhas estiverem terminadas. E esperavam-nos as Portas de Coimbra, mais o seu miradouro.
É na antiga entrada no Deserto de Santa Cruz do Buçaco, onde ficava a cela do padre porteiro, que está uma bula papal de 1643, acabando por ser uma mensagem inédita de âmbito de conservação da Natureza. Vinte anos antes, o Papa Gregório XV tinha interditado a entrada de mulheres nos conventos carmelitas e, portanto, também no de Santa Cruz do Buçaco. Caberia ao Papa Urbano VIII proibir a destruição de árvores e a apanha de madeira, sob o risco de excomunhão deste paraíso – e este, sim, apetece aplaudir de pé.