Um leitor incauto e apressado julgará estar perante um sermão da arqueologia católica. Situemo-nos, então. É verdade que o texto, intitulado Notificação concernente às mulheres que vestem roupas de homem, tem 58 anos. Foi escrito em 1960 pelo cardeal Giuseppe Siri, à época arcebispo de Génova. Mas a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, sociedade de vida apostólica da Igreja Católica, considerou-o de absoluta atualidade. Tanto assim que preencheu na íntegra com o sermão do cardeal Siri a última edição do boletim que distribui aos fiéis, chamado O Farol. Ponto de partida: “A roupa masculina muda a psicologia da mulher.”
A preleção agarra-se às calças num corpo feminino, como exemplo paradigmático da “imodéstia”. Consequências do “uso de vestes masculinas por parte das mulheres”? Além da mencionada “mudança da psicologia feminina própria da mulher”, afeta-a também “como esposa do seu marido, por tender a viciar a relação entre os sexos”. E ainda “como mãe das suas crianças, ferindo a sua dignidade ante os seus olhos”. O sermão apenas visa o “decoro” da mulher, dando passos em volta para chegar sempre à prédica de partida, sublinhando que o importante “é preservar a modéstia, e o eterno sentido de feminilidade, aquela feminilidade que, mais do que qualquer outra coisa, todas as crianças continuarão a associar à face da sua mãe”.
Depois, torna-se feroz. Assim: “(…) Fazemos bem em recordar as demandas severas que as crianças instintivamente fazem à sua mãe, e as profundas e até terríveis reações que nelas se afloram pela observação dos seus maus comportamentos.” Para logo acrescentar, ainda mais ferino, que “a criança pode não saber a definição de exposição [de partes do corpo], de frivolidade ou infidelidade, mas possui um sentido instintivo que reconhece quando essas coisas acontecem, sofre com elas, e é amargamente ferida por elas (…)”. A conclusão encontra-se a meio da prédica: “(…) Quando uma mulher veste roupas de homem”, isso “deve ser considerado um fator, a longo prazo, da desintegração da ordem humana”.
A VISÃO abordou o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), padre Manuel Barbosa, para um comentário sobre este texto, distribuído a fiéis católicos. Mas a resposta chegou seca, por email. “Não faço comentários sobre o conteúdo do jornal da Fraternidade S. Pio X, é a eles que devem ser pedidos esclarecimentos”, escreveu o porta-voz da CEP. O padre Manuel Barbosa lembra que a Fraternidade “não está em comunhão com a Igreja Católica”. Reconhece, porém, que “nos últimos anos o Santo Padre concedeu, nalguns casos e de forma excecional, a celebração de alguns ritos (confissão, matrimónio) para bem dos fiéis” pertencentes à Fraternidade. O porta-voz da CEP esqueceu-se dos batizados, que também estão autorizados.
CAIXA DE SUPERMERCADO OU MÃE?
Em janeiro passado, numa reportagem de capa, a VISÃO revelou os bastidores da “igreja que desafia o Papa”, com o regresso das missas em latim, dos padres de costas para os fiéis, ou das mulheres com véus. É a dinâmica de um movimento ultraconservador que, como escreveram os repórteres Catarina Guerreiro e Rui Antunes, “está a crescer no País”, atraindo “jovens fiéis e sacerdotes que aprendem o ritual em segredo”. Em destaque surge a Fraternidade S. Pio X (criada em 1970 pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre), que planeava passar, em Lisboa, de um apertado oratório em Chelas para uma nova igreja em Marvila, com 200 lugares. Quatro meses depois, a juntar à capela em Fátima que já utiliza, a congregação trabalha para também abrir templos no Funchal e no Porto.
Em declarações que agora prestou à VISÃO, o padre francês Samuel Bon, que lidera em Portugal a Fraternidade, coloriu as “sábias considerações de um Príncipe da Igreja”, como escreveu na nota introdutória ao sermão do cardeal Siri. “A felicidade do homem e da mulher é a possibilidade de cumprir na plenitude a sua natureza, de acordo com o plano de Deus”, alega. E “a questão das calças, no sentido em que as roupas também têm uma função social, foi o primeiro passo do que vemos hoje”. O que observamos, então? Samuel Bon responde com uma pergunta retórica: “É mais nobre educar filhos ou estar na caixa de um supermercado a passar produtos o dia todo?” O responsável da Fraternidade diz que “as mulheres são muito capazes para exercer qualquer profissão, mas, se têm filhos, há uma escolha a fazer” – ponderar “se sacrificar a função de mãe de família vale mesmo a pena”. Nem quando se invocam necessidades financeiras o padre desiste. “Há estudos económicos a comprovar que mais de metade do salário das mulheres é gasto em consumos que não fariam se estivessem em casa.” Já “se não tiver um certo recato”, a mulher “vai ser objeto de tentações por parte dos homens”, e ninguém pode “levar o outro a pecar”. O padre ilustra com o trânsito: “É como parar num sinal vermelho.” De resto, castidade rigorosa antes do casamento e, depois, sexo só para procriar.
Sob anonimato, pais crentes, mas avessos ao radicalismo, contam à VISÃO que as respetivas famílias passaram num ápice “de normais a disfuncionais”, quando filhos rapazes, com 16, 17 anos, fizeram das missas, dos terços, da leitura de Bíblias antigas e da catequese da Fraternidade o epicentro das suas vidas. “A intolerância é total: deixaram de sair com as mães, porque estas insistem em vestir calças e maquilhar-se”, ouvimos. “Pelo ‘conteúdo pecaminoso’, a mera leitura de um livro policial é criticada e as discussões sucedem-se. Na escola, são marginalizados ou automarginalizam-se. Amigos, só os da Fraternidade. Até já se afastam da prática desportiva, por causa da exposição do corpo.”
Na sociedade atual, “a proposta de comportamentos que o boletim sugere contribuirá para um afastamento total dos jovens da Fraternidade em relação aos seus pares”, analisa o psiquiatra Daniel Sampaio. O especialista nota que hoje “a adolescência é cada vez mais caracterizada por numerosos contactos, quer em presença quer virtuais”, e que a maioria desses jovens “não subscreve a ideia de um corpo escondido nem se limita às relações sexuais apenas com vista à procriação”. Já na família, “os comportamentos dos jovens da Fraternidade configuram uma inversão da hierarquia, em que os filhos mandam nos pais e impõem o seu modo de vestir e de pensar, conduzindo a conflitos”. Daniel Sampaio aconselha estes pais a “pedirem ajuda nos centros de saúde e nos serviços de saúde mental”. Chegará?
Importa-se de repetir?
Excertos das “sábias considerações”, como se lê na nota introdutória, do sermão que preenche na íntegra a última edição do boletim da Fraternidade S. Pio X, de abril de 2018
“Quando vemos uma mulher de calças, deveríamos pensar não tanto nela, mas em toda a humanidade, de como será quando todas as mulheres se masculinizarem. Ninguém ganhará [com] uma futura época de imprecisão, ambiguidade, imperfeição e, numa palavra, monstruosidades.”
“Se o sentido de vergonha é impedido de colocar os freios, as relações entre homem e mulher afundam-se em degradação e puro sensualismo, separadas de todo o respeito mútuo ou estima.”
“O que estas mulheres serão capazes de dar às suas crianças, tendo usado calças durante tanto tempo, e com a autoestima determinada mais pela competição com os homens do que pelo seu papel como mulheres?”