Há mais de uma década que, no meio da investigação farmacológica, vem sendo testado o uso da cetamina, em doses baixas e por via intravenosa, para obter um efeito antidepressivo rápido. Enquanto que os fármacos convencionais requerem semanas ou meses de adaptação até fazerem efeito, os estudos em curso permitiram perceber que, em apenas duas horas, era possível obter melhoras em pacientes com diagnóstico de depressão grave e resistente aos medicamentos disponíveis no mercado. No ano passado, em San Diego, no Estado americano da Califórnia, o laboratório Janssen já tinha testado a segurança e eficácia da substância em doentes depressivos com pensamentos suicidas, tendo obtido resultados superiores aos do placebo no grupo a quem tinha sido administrada a dosagem mais baixa de S-cetamina (uma das componente da cetamina). Entretanto, foi divulgada a formulação intranasal na fase II do ensaio clínico, envolvendo 67 pacientes com idade média de 45 anos. Foram feitos estudos duplamente cegos – nem os médicos nem os doentes sabiam qual o tratamento que estava a ser administrado – e após oito dias de toma sob a forma de spray nasal (duas vezes por semana e durante quatro semanas) foi registada uma redução significativa dos sintomas dos participantes que tinham tomado o químico, comparativamente aos que tinham sido submetidos ao placebo. As melhorias mantiveram-se nos dois meses seguintes.
Inovação, mas com senão
Os resultados do estudo, agora divulgados no American Journal of Psychology, parecem promissores, embora ainda seja preciso passar pela terceira fase de ensaios clínicos, com uma amostra mais vasta, até que venha a ser aprovado. Mesmo assim, a agência america do medicamento, a US Food and Drug Administration, admite que esta pode ser uma terapia inovadora e melhorar a qualidade de vida a quem tem diagnóstico de depressão grave e resistente aos tratamentos farmacológicos disponíveis.
Enquanto se aguarda pela fase III dos ensaios clínicos (nenhum a decorrer em Portugal) começa a ser evidente para os cientistas que este e outros moduladores dos receptores de glutamato baixam significativamente os pensamentos suicidas. Porém, os efeitos adversos não devem ser ignorados e que levaram três dos pacientes tratados com S-cetamina a abandonar o ensaio clínico, tendo sido registadas náuseas, dores de cabeça, aumento da pressão arterial e do ritmo cardíaco durante a administração do químico, após a inalação do spray, bem como alguns estados dissociativos.
Aprovada em 2014 pelo INFARMED, comercializada pelo nome de Ketalar e disponível como medicamento genérico, a cetamina induz um estado de transe, alívio da dor e perda de memória, com efeito analgésico de duração variável (25 minutos, em média). O seu potencial terapêutico é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde e o uso sujeito a legislação médica na União Europeia.
Félix Carvalho, professor catedrático de toxicologia da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, admite que “a utilização off label da cetamina, ou seja, noutra área para além da que está atualmente indicada, pode ser interessante, desde que rodeada de muitas cautelas”. A este respeito, o investigador refere um estudo realizado pela Faculdade de Farmácia, em conjunto com outras instituições de saúde portuguesas, e de que foi co-autor, publicado em 2010 na Forensic Science International. Aí se apresenta a análise da morte de um homem com 29 anos, por suicídio induzido pelo uso recreativo da substância, combinado com álcool. Ou seja, o oposto do que se pretende com o uso medicinal: “A prevenção da ideação suicida é um assunto que vale a pena estudar e prevenir, desde que haja garantias de eficácia e segurança”, sintetiza.
Velha droga, novos usos
O estudo da aplicação do químico para alívio da dor crónica e obtenção de efeitos antidepressivos de ação rápida não é de agora. Desenvolvida no início dos anos 1960 e aprovada uma década mais tarde para uso humano, chegou a ser usada pelas tropas americanas na guerra do Vietname para alívio da dor dos soldados feridos no campo de batalha.
Também conhecida pelo seu uso veterinário – vulgarmente designada por “calmante para cavalos” – não foi preciso muito para, nos anos 1980 e 1990, entrar em voga na cena noturna, com fins recreativos, justamente por proporcionar estados alterados de consciência. O preço a pagar pelo abuso da “droga emergente”, descrita por “droga de violação” (‘date rape drug’), foi a ocorrência de surtos psicóticos e mortes prematuras, que levaram a que fosse declarada ilegal pelas autoridades de saúde americanas na viragem do milénio.
Interdita pela Drug Enforcement Administration DEA, a cetamina volta agora à ribalta e a despertar um renovado interesse na comunidade científica e clínica, tendo em conta os seus resultados promissores, desta vez no tratamento de uma doença tão séria como a depressão, nas suas variantes mais resistentes.