“Às vezes sinto que fui lançada por um foguetão para a estratosfera e voltei sem nenhuma cadeira que me sirva de assento.” O desabafo bem- humorado da rapariga que voltou ao primeiro ano da faculdade como sobrevivente de uma experiência-limite. As suas prioridades estão nos antípodas das dos seus pares, mas, como eles, transporta na bagagem uma mão-cheia de sonhos, o desejo de concretizá-los e a vontade de desafiar os limites da gravidade.
O ano sabático de Marta, iniciado há dois anos, em Londres, afigurava-se estimulante e promissor, embora tenha ficado marcado na memória desta estudante de publicidade e marketing como horribilis. Uma gripe vulgar contraída no verão que afinal, não era, tão vulgar. Já lhe bastava ser uma das vítimas da Gripe A mas, para sua surpresa e dos familiares, foi apanhada pelos danos colaterais da estirpe viral. Para trás, ficou o trabalho como au pair em casa da família londrina – bem como uma mão-cheia de projetos e expectativas. De regresso a Lisboa, seguiram-se dias, semanas, meses de angústia, sem saber o que tinha e a braços com “o problema”, confinada a uma cama de hospital. Costuma dizer-se que cada problema traz consigo a solução.
Marta d’Orey decidiu retomar o curso dos acontecimentos e ir além-fronteiras. Desta vez não foi por avião ou outro transporte público, antes a partir da cama do hospital. Sem vergonhas nem embaraços, ela agarrou-se aos recursos que tinha à mão: escreveu, documentou e partilhou, em tempo real, a aventura dramática em que era a protagonista. E foi assim que a sua crónica no site da VISÃO, há um ano, se tornou, também ela, “viral”. E assim se ficou a saber que existe uma doença rara que intimida. Bronquiolite obliterante pós-infecciosa.

O “problema”, ou melhor, a sequela da pneumonia resultante da Gripe A, gera um cansaço indescritível e compromete gravemente a função respiratória. No caso de Marta, ela chegou a ficar abaixo dos 15 por cento. Nessa altura, chegou a pensar-se o pior: “Uma doença que me apresentou a morte pelo nome (…) e fez com que tivessem de me reanimar quando abrandou o ritmo do coração que me bate no peito.” Entre a opção de transplante pulmonar e um tratamento experimental sem garantias, a miúda que acabara de fazer 19 anos e para quem a casa era o mundo percebeu ali, naqueles momentos, que a vida não dura para sempre. E, enquanto durasse, ela ia escolhê-la sem reservas. “É quando concebemos o fim que encontramos o nosso início.” Ainda hoje continua a receber emails e mensagens de gente que não conhece. Agradecem-lhe, sobretudo, pela força inspiradora e por partilhar uma experiência que a fez crescer em ritmo acelerado e a cultivar a resiliência, sem desmotivar nem baixar os braços.
O regresso às aulas
“No começo fui testando limites às apalpadelas e posso dizer que evoluí muito em termos físicos, sinto-me mais capacitada e focada no que posso fazer aqui e agora”, reconhece. O seu equilíbrio é gerido a cada dia, com um plano alimentar adaptado às suas necessidades, medicação à base de corticoides e uma vigilância médica mensal, a nível hospitalar. Os tempos de sufoco na CUF e no Hospital de Santa Marta, sem respostas ou garantias, não estão completamente ultrapassados. Viver com o inimigo e uma botija de oxigénio na retaguarda – não vá ser precisa num dia menos bom – foi, e continua a ser, difícil de digerir, até por tratar-se de uma doença muito rara numa pessoa jovem e saudável, que apenas sofria de asma ligeira e mal usava a bomba. Ter a imunidade comprometida significa evitar ambientes propensos a contrair infeções, como centros comerciais, transportes públicos, locais com fumo e, mais frustrante ainda, esquecer a prática desportiva. Lá se foram as idas ao ginásio e, o pior de tudo, o adeus ao surf. “Mais do que um desporto, é um estilo de vida que me custou, mesmo muito, amputar. Também deixei de ver os meus amigos a fazerem surf, que é como voltar a pôr o dedo na ferida.”
O sorriso não impede a mágoa, a indignação. “É um jogo de resiliência, às vezes muito frustrante. É injusto ver as minhas amigas viajarem, fazerem Erasmus e eu não poder ir, mas seria ainda mais se elas não fossem por minha causa.”
Em setembro, Marta retomou as aulas no IADE, em Lisboa. “Por hoje posso ir, haverá alturas em que talvez não seja possível.” No cenário atual, o que era “uma seca” converteu-se em algo que tem a sua graça e se saboreia com gosto. Esse “algo” é a consciência da normalidade: “Apanhar o comboio [da linha de Cascais] e demorar uma hora a chegar a Lisboa, ir para as aulas, olhar para a janela com vontade de estar lá fora e saber que estou onde é suposto estar.”

Vida interrompida Foram longos meses numa cama de hospital, às voltas com “o problema”. Hoje aceita-o e convive com ele
D.R
Deus e eu
A vontade de transpor barreiras e desafiar a adversidade levou Marta a adotar um rumo que não conseguia prever antes de esta infeção lhe ter pregado uma partida. “Não dou assim tanto crédito à doença para dizer que me mudou”, afirma. Do mesmo modo, vê no acompanhamento psicológico uma ferramenta preciosa que a tem ajudado a perceber-se melhor por dentro. Ela, que gosta de testar-se e de sentir na pele as consequências dos seus atos, valeu-se dos seus hobbies de criança e começou a dar-lhes outra importância e forma. Foi o caso do blogue Out of Time, onde publicou um post, antes de ir para Londres, intitulado O Princípio, com a foto de uma cruz sob um céu azul e em que acrescenta, no final, “Exercícios Espirituais”.Escrito durante um retiro de silêncio jesuíta (três dias na Casa de Santo Inácio, em Colares), o texto pode ajudar a desvendar o segredo que levou Marta a fazer das fraquezas forças nos tempos que se seguiram. Ou será que o abalo da doença que lhe ia ceifando a vida lhe trouxe uma crise de fé? “Pelo contrário, testemunhei várias situações atípicas, intensas, em que estive por um fio e não morri porque não era suposto.” Nos momentos mais dramáticos estava “por acaso” à porta do hospital, e outras coincidências felizes levam-na a crer que “não é preciso ver milagres para se ver a presença de Deus na própria vida”, nem é demais lembrar que “a dor e o sofrimento por que passei permitiram-me sentir grandes alegrias”. Quanto aos exercícios espirituais, eles são a consequência natural de alguém que cresceu numa família católica, com idas à missa, catequese e atividades comunitárias. O retiro trouxe-lhe “uma confirmação pessoal daquilo em que acreditava – Deus e eu –, mas numa relação de Tu cá, tu lá”.
O Gang do Pé Preto
A conquista da liberdade faz-se devagar, especialmente quando se tem pressa de viver (e quem não a tem aos 20 anos?). Marta tem aproveitado o tempo em que a sua vida de estudante esteve interrompida para escrever e fotografar. Entretanto, deixou de ver estas atividades como passatempos e investe nelas mais a sério. Colaboradora residente da Sonder Minds, plataforma online que promove o pensamento livre e que Marta ajudou a fundar, já se aventura a andar a pé, a pegar no carro e percorrer a planície alentejana e a dar largas à sua veia criativa. Recentemente, ela e a amiga, mentora e fotógrafa Isabel Saldanha (mais as duas filhas desta), alugaram uma casa numa pequena localidade no Norte do País para conhecerem a fundo as pessoas e as suas tradições e modos de vida. A experiência foi de tal forma gratificante que Marta não resistiu a lançar o repto à amiga mais velha: “E se criássemos uma plataforma para divulgar lugares e estilos de vida que as pessoas não sabem que existem?” Essa é a missão do Gang do Pé Preto que pode vir a funcionar “como uma espécie de Trip Advisor a que seria acrescentada a componente pessoal, ou a forma como nós as quatro a vemos, na perspetiva da criança, do jovem e do adulto”.
Com o ano letivo a meio, o caminho vai-se fazendo, sem noitadas nem excessos vários, mas com muita garra e uma força que vem de dentro. “Continuo a curtir a vida à larga, estou com amigos, posso atravessar a estrada e ver o mar, fotografar, escrever, ler”. Nada como um bom livro ao serão, já agora. Toda a Luz que Não Podemos Ver, de Anthony Doerr, é o que tem agora em mãos, passado na II Guerra Mundial, que é intercalado com outros, “consoante a disposição”. No final de contas, “Escolho Viver” continua a ser o lema para a vida. A vida de Marta, que podia estar confinada, conformada e abatida pela doença crónica, mas que decidiu usar bem a liberdade que (mesmo condicionada) ainda tem. “Uma pessoa pode estar acorrentada dos pés à cabeça e sem liberdade física, mas ela continua lá, está em nós e transcende limites. Há que saber agarrá-la e usá-la a nosso favor. É o que eu faço.”