Há dois anos, quando chegou a terra, após ter passado 47 horas e 37 minutos em cima da prancha, Francisco Lufinha não tinha apenas conquistado o recorde mundial da maior viagem de kitesurf sem paragens – tinha também vivido uma das experiências mais extremas da sua vida. Cumprira 874 dos mil quilómetros que separam Lisboa da ilha da Madeira e, durante dois dias, sofrera com o sol abrasador, as dores nos joelhos e as alucinações provocadas pelo cansaço. Em pleno oceano Atlântico, chegou a dizer à sua equipa que ia seguir atrás de um cacilheiro que, obviamente, não estava lá. Só passados dois meses conseguiria voltar a correr. Uma experiência traumática? Não para Francisco Lufinha: “Quanto mais arriscados são os desafios, mais gozo me dão.”
Desta vez, o ex-campeão nacional de kitesurf vai tentar fazer a travessia de 1 500 quilómetros que separa os Açores de Portugal continental. A partida de Ponta Delgada, São Miguel, está agendada para hoje, dia 4, garantindo ventos favoráveis e lua cheia – “um candeeiro natural” – durante a maior parte das noites do desafio, que poderá prolongar-se por cinco a dez dias. Tudo depende da força do vento. O objetivo é desembarcar em Lisboa, mas pode ser conduzido a outras paragens, mais a norte ou a sul.
Nos últimos seis meses, o atleta lisboeta de 34 anos treinou seis horas diárias. A exigência da travessia levou Lufada (como é tratado pelos amigos) a convidar uma atleta para participar consigo na aventura: a detentora do recorde feminino da maior viagem de kitesurf sem paragens, a alemã Anke Brandt, 33 anos, que ligou o Bahrein a Abu Dhabi (489 km em 30 horas).
Juntos, vão tentar completar a maior travessia do mundo em dupla de kitesurf. O plano passa por se revezarem em turnos de oito horas, procurando evitar os episódios de alucinações vividos por Francisco a caminho da Madeira. Serão seguidos por um barco de apoio (à vela), que levará a bordo um médico-cirurgião e um fisioterapeuta, e estarão equipados com um sistema de localização GPS, que permitirá acompanhar o percurso à distância.
Francisco prefere os períodos de navegação ao luar. “É menos desgastante, apesar de ser mais assustador.” Na segunda noite da aventura madeirense adormeceu em pé e entrou em rota de colisão com o barco de apoio. O catamarã acabaria por lhe passar por cima, mas o kitesurfista teve a sorte de acertar exatamente entre os dois cascos. “Foi essa injeção de adrenalina que me manteve acordado o resto do tempo.”
Nas etapas noturnas é mais difícil identificar os animais marinhos que se aproximam, mas o atleta não teme os tubarões: “Eles vêm ver o que se passa, não nos querem comer. Não é exatamente como nos filmes!” Mas as suas aventuras também têm um lado cinematográfico, alimentado pela banda sonora do seu leitor de mp3, que inclui canções ao estilo instrumental triunfante da cantora Enya, que o ajudam a imaginar-se como um “descobridor dos tempos modernos”.

O português Francisco Lufinha e a alemã Anke Brandt vão tentar completar a maior travessia do mundo em dupla de kitesurf
Ricardo Bravo
Crescer a bordo
Aos 15 dias de vida, já navegava no veleiro da família. “Quando era pequeno, subia ao mastro e não descia, tínhamos de lhe mandar o lanche lá para cima”, recorda a irmã, Mafalda Lufinha, 40 anos. “Para mim, ver golfinhos ou baleias é como ver pombos ou gaivotas”, graceja Francisco. Não admira que comece a ficar nervoso quando passa muito tempo longe do mar ou de aventuras. “No ano passado, fez Lisboa-Sagres de bicicleta só porque achou giro”, conta o amigo José Maria Lino, 33 anos.
Ser invariavelmente um dos melhores alunos da turma não evitava que o chamassem a atenção quando chegava ao campus de Oeiras do Instituto Superior Técnico de chinelos, pronto para ir praticar kitesurf depois das aulas. Formado em Engenharia e Gestão Industrial, trabalhou em auditoria e consultoria antes de fundar uma empresa de organização de eventos náuticos e de começar a dar palestras.
A ligação aos Açores será a derradeira etapa do projeto Portugal é Mar (ver caixa De vento em popa), criado com o objetivo de ligar o território português por mar em kitesurf. No final, será entregue na Presidência da República o mapa que o acompanhou em todas as façanhas.
“Estes desafios funcionam como retiros. Há quem vá para Fátima, eu vou para o mar”, explica. “O recorde é muito importante, mas é o desafio em si que me move.” O compromisso que assume com os outros, a começar pela equipa que o acompanha, funciona como um antídoto: “Se, num momento de desespero, penso em desistir, olho para o barco de apoio e isso faz-me continuar.”
Quando estiver sozinho no meio do oceano terá tempo para pensar na próxima missão. “Envolverá água e kitesurf”, assegura, mantendo o secretismo. “Estar no mar”, confessa Francisco, “é como estar em casa, só que ainda melhor.”
De vento em popa
Quinze dias depois de ter nascido, Francisco Lufinha já estava a bordo de um veleiro
– Venceu a Volta a Portugal à Vela com os pais quando tinha 6 anos
– Competiu em seis classes de vela e, aos 18 anos, liderava o ranking nacional de 420
– Sagrou-se campeão nacional de kitesurf quando tinha 22 anos
– Em 2013, iniciou o projeto Portugal é Mar. Começou com a viagem Porto-Lagos (564km em 29 horas) e estabeleceu um novo recorde
– No ano seguinte, foi o primeiro atleta a fazer kitesurf nas Ilhas Selvagens, fazendo a travessia de 306 km até ao Funchal em 12 horas
– Bateu o seu próprio recorde, em 2015, ao percorrer 874 km entre Lisboa e a ilha da Madeira, em
47h37, a mais longa viagem de kitesurf sem paragens alguma vez realizada