Sofia Terceiro ia avisada: “Não vás pela simpatia, mas pelo profissionalismo.” Por isso, não estranhou muito quando ao entrar no consultório de António Travassos ficou de mão estendida no ar, à espera de um cumprimento. Afinal, não ia à procura de simpatia, mas de uma solução para a perda de visão galopante do filho Dinis, então um bebé de ano e meio. O médico do Centro Cirúrgico de Coimbra era a última estação de uma viagem com dezenas de apeadeiros. Ao longo de seis meses, Sofia e o marido Paulo Rosa foram ouvindo de todos os oftalmologistas que consultaram em Portugal e até em Espanha: “Não é caso para mim”; “não percebo nada disso”; “não há nada a fazer”. Enquanto isso, Dinis ia perdendo a visão, de dia para dia, sem que ninguém o conseguisse travar. À chegada a Coimbra, o olho direito já estava irremediavelmente perdido. Mas o esquerdo ainda se podia tentar salvar, garantiu o médico que começou a fazer por isso naquele mesmo dia. No mês de novembro de 2009, Dinis foi operado todas as segundas-feiras. Hoje, aos nove anos, conta já com mais de 30 intervenções – de cada vez que vai ao bloco, Travassos tenta estancar, através de laser, as hemorragias provocadas pela doença genética, rara, a leucoencefalopatia, com que nasceu. Contra todos os prognósticos, continua vivo, frequenta a escola e vê o mundo através dos cinco por cento de visão do seu olho esquerdo, preservado como um tesouro pelos pais, que têm de estar atentos a cada alteração, por mais suave que seja, e por António Travassos, que interrompe férias, atende a altas horas da noite, e, se for preciso, dispensa honorários, nas alturas em que a família tem mais dificuldade em pagar. “Pode não sorrir muito. Mas já o vi chorar de alegria, por trás da máscara cirúrgica”, conta Sofia Terceiro, bancária.
Cabeça de engenheiro
Dinis é apenas um dos casos sem remédio a que o oftalmologista se entregou. Vêm de várias parte dos mundo, boa parte deles do Médio Oriente. Também tratou doentes conhecidos, como António Champalimaud ou a irmã Lúcia. “Já assumo o fim de linha com naturalidade. É o meu dia a dia”, admite. “O que me põe sob mais tensão não é a complexidade do caso. Se está dentro de parâmetros aceitáveis para a cirurgia, é fácil de resolver. Aquilo é engenharia, é física, é matemática. De algum modo, conseguimos perceber as dificuldades que vamos ter e como as ultrapassar. Logo, isso não me preocupa. A pressão maior surge quando há uma relação mais forte com o doente, todo o quadro envolvente. Por exemplo, se tenho em mãos uma pessoa jovem com cegueira bilateral, que chega à minha consulta depois de ter sido vista por vários colegas, que lhe disseram não haver nada a fazer.”
Nascido em Portalegre há 66 anos, António Travassos era para ter sido engenheiro mecânico. Gostava de máquinas, de perceber o funcionamento das coisas. A dada altura, pôs-se a desmontar e a consertar todos os relógios da família. Também gostava de passar os sábados na oficina do mecânico em Portalegre, a acompanhar as reparações dos carros da família. Aliás, o gosto por automóveis e pela velocidade valeu-lhe umas boas multas. Foi um professor de ciências que lhe mudou o rumo, quando teimou que devia ir para Medicina, tal a destreza com que dissecou um animal. Acedeu a fazer os testes de orientação profissional e a resposta não deixava margem para dúvidas: havia de ser médico. Começou logo a adiantar caminho, operando todos os animais da quinta, com vista para o castelo de Marvão, em que cresceu. Usava instrumentos cirúrgicos, anestesia e orgulha-se de nunca ter matado nenhum animal. “Percebi logo que ele não era uma pessoa normal, quando me contou que operava os animais”, admite a mulher, Ana Maria, companheira desde a adolescência.
Já a opção pela oftalmologia, apareceu por exclusão de partes. Numa aula de química fisiológica, o professor apresentou uma fórmula no quadro e anunciou: “quem não quiser saber isto, que vá para oftalmologia”. E assim, logo no segundo ano do curso, ficou decidido o que viria a ser o resto da sua vida.
Durante a especialidade, deu nas vistas de José Cunha-Vaz, professor de oftalmologia e chefe do Departamento de Oftalmologia da Universidade de Coimbra, entre 1972 e 2008, que o convidou a ir trabalhar com ele para a Universidade de Illinois, em Chicago. “Era um aluno muito motivado e meticuloso. Tem imenso jeito para a bricolage”, concretiza Cunha-Vaz, uma referência na área do estudo da retina. Este jeito não se limita ao bloco cirúrgico. “Quando tinha mais tempo, era ele quem arranjava tudo. Até os móveis do nosso primeiro apartamento foram feitos por ele”, conta Ana Maria. Ainda hoje é hábito tratar do jardim. E não há sábado em que não lave um dos carros da família. “Trato os carros com o mesmo cuidado com que trato os equipamentos cirúrgicos. Quando os vendo, vão impecáveis.”
Passou um ano intenso em Chicago, deixando em Portugal a mulher com dois dos três filhos que vieram a ter. Operou, operou e foi aperfeiçoando a técnica. Quis tornar-se no melhor dos cirurgiões em retina e vítreo. “Até aos 40, era esse o meu objetivo. Hoje, o que me preocupa é ser médico.”
Ainda que isso implique olhar para um problema fisiológico com pensamento de engenheiro. “O olho é uma máquina fotográfica extremamente sofisticada, que resulta de milhares de anos de evolução. Toda a cirurgia é engenharia pura.”
No bloco, todas as peças estão bem oleadas e não são admitidas falhas. “Funcionamos como uma equipa de Fórmula 1”, garante Travassos, que está atento a todos os pormenores. O Centro Cirúrgico de Coimbra, nos arredores da cidade, é uma obra saída inteirinha da sua cabeça. Projetou os edifícios, que incluem vários blocos operatórios, quartos de internamento, salas de consulta e até espaço para um piano, na receção principal. Orientou a construção e mantém-se responsável, há 19 anos, pela gestão do Centro e dos 105 funcionários efetivos. Um homem que é uma máquina de alto rendimento: dorme pouco e é muito fugaz a comer. “Desisti de combinar almoçar com ele”, resigna-se Ana Maria. “Ainda eu estou a começar, já ele se dá por satisfeito.”
“Estou a ver, estou a ver”
A primeira coisa que Anabela Carvalho, 52 anos, viu, ao fim de três dias de escuridão, foram os olhos azuis de António Travassos. Já lá vão 30 anos, mas Anabela, diabética desde os sete, recorda com detalhe as palavras, os procedimentos e a angústia que antecederam o regresso das trevas. No momento em que foi parar às mãos do oftalmologista, andava há mais de um ano em tratamentos de laser, sem qualquer resultado. Tinha 21 anos, um namorado, estudava. Mas os planos de trabalhar e ter filhos embaciavam de dia para dia. Estava completamente cega do olho esquerdo e o direito para lá caminhava. Já ninguém sabia o que lhe fazer, até que surge o nome Travassos, regressado há pouco tempo da América. A primeira consulta foi no início de julho e a cirurgia ficou logo marcada para o dia 11 do mesmo mês. “Ele nunca me enganou. Disse que eu podia ficar cega durante a operação. Mas eu aceitei o risco. Não tinha outra hipótese”. Logo a seguir à intervenção, percebeu-se que conseguia detetar a luz com o olho direito. Mas o veredicto final só ficou definido quando o médico lhe pôde tirar o penso. “Doutor, eu estou a ver, eu estou a ver”, gritou. Uma hemorragia ainda obrigou a que passasse o resto do verão em tratamentos, sempre com Travassos à sua volta. “Cancelou as férias para cuidar de mim, passou a tratar-me na privada, sem nunca me levar dinheiro. Não me esqueço disso.” A dedicação teve a recompensa que o médico procura. Com um olho a funcionar em pleno, Anabela conseguiu levar os seus planos até ao fim. “Chego a esquecer-me de que não vejo do olho esquerdo.”
Ao longo do tempo, Travassos foi fazendo uma trajetória política da direita para a esquerda e hoje assume-se como uma pessoa com uma missão: “Não me interessa ser o mais rico do cemitério. O que me move é poder evitar toda a cegueira curável.” Por isso não descansa enquanto não encontra resposta para um problema. Fica a matutar até conseguir definir uma estratégia de ataque. “Anda sempre com a cabeça a mil”, diz Ana Maria. Às vezes, a solução só lhe aparece durante a cirurgia. Mesmo nestas situações, em que entra no bloco sem saber o que se vai passar a seguir, mantém a calma. “Ao longo da minha carreira sempre valorizei mais as complicações, os erros, que nos permitem aprender.” Mas isso não quer dizer que lide bem com o insucesso. “Não estou formatado para falhar. Nem para desistir”, admite.
Sem impressões digitais
Por isso ficou marcado pelo caso da Miriam, uma menina a quem não conseguiu evitar a cegueira. Só uma carta escrita por ela e pela mãe, a reconhecer o seu esforço e a pedir-lhe que não desistisse de trabalhar, lhe devolveu o ânimo. Dois pacientes que cegaram por causa de uma infeção, decorrente de uma operação, também o deixaram algo traumatizado. Ele e toda a equipa fizeram análises, às mãos, ao nariz, para perceber onde estava o foco da infeção. Um azar que aconteceu apesar da sua obsessão com a higienização. Num dia, é capaz de lavar e desinfetar as mãos mais de vinte vezes. Até gastar a pele. Da última vez que teve de renovar o cartão de cidadão foi o cabo dos trabalhos para lhe apanharem as impressões digitais.
Mais de 60 mil procedimentos enchem-lhe o currículo. Várias estreias a nível mundial, como a utilização de anticorpos monoclonais para tratar a retinopatia em prematuros. No bloco operatório, esquece todas as dores e sacode qualquer réstia de cansaço. Consegue ficar a trabalhar até à meia-noite, sem dar sinal de fraqueza. Mas é pouco dado à publicação de artigos científicos. O único senão apontado pelo mestre Cunha-Vaz. “Podia ter tido uma carreira internacional, mas fechou-se no seu casulo. É uma pena que não tenha formado escola. É um ótimo cirurgião e hoje podíamos ter mais cinco ou seis também bons. Talvez não fosse fácil criar outros Travassos, mas pelo menos uns meio-Travassos”, lamenta o professor.
Ao seu lado, no Centro Cirúrgico de Coimbra, está a mais velha das filhas, para quem encaminha os doentes sempre que não lhes consegue explicar o tratamento que se propõe a fazer. “Os doentes vêm encantados da consulta com ela. Tem muito mais jeito para falar com eles”, admite. Ana Sofia é a única que lhe seguiu as pisadas. O filho fez carreira no marketing e a filha mais nova dedica-se à pintura, um dos grandes interesses do pai. E foi precisamente pela arte que o ceramista e pintor Manuel Cargaleiro, 90 anos, se aproximou do médico. O que começou por ser uma amizade, passou a relação médico-paciente quando o artista se resignou a operar as cataratas, em estado já muito avançado. “Eu percebia que estava a ver mal, mas ia deixando andar”, confessa. Hoje reconhece que há um pintor antes e um pintor depois da cirurgia. “As cores mudaram e passei a pintar de outra maneira.” Haja luz.
Artigo publicado na VISÃO 1257 de 20 de março