Se dúvidas houvesse, o fim recente de uma das mais antigas e castiças tascas do Porto, para dar lugar a um futuro hotel, prestou-se a epitáfio de um tempo e dos seus lugares. A 12 de agosto, a Adega São Martinho, “sobrevivente tardia de um mundo em extinção”, despediu-se de amigos e compinchas. Serviu os últimos petiscos e desmontou as portas “à Texas”, azuis e brancas. Dona Teresinha, proprietária do espaço, recolheu os santinhos de barro, mandou retirar o relógio do FC Porto da parede, a dar os últimos batimentos, e distribuiu abraços apertados sem tirar o avental.
Naquele dia, não se finou apenas um dos raros exemplares do já moribundo universo tasqueiro da cidade. “Assistimos ao desaparecimento de uma forma de cultura popular, do lado fraterno e inclusivo da cidade, das suas gentes trabalhadoras”, descreve o escritor e investigador portuense Hélder Pacheco. “As tabernas vão acabando emparedadas, violentadas, destruídas, para darem lugar a prédios. Sobram meia dúzia de resistentes e uns poucos que se modernizaram para alimentar a nostalgia da classe média e saciar a curiosidade turística pela tradição e pelo exótico”, resume o autor do livro Adegas, Tabernas e Casas de Pasto – Os bons velhos lugares do convívio do Povo (Edições Afrontamento). A obra será apresentada esta terça, 25, pelas 21.30, na Fundação Engenheiro António de Almeida, pelo presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, e terá, além de apontamentos musicais, uma intervenção do jornalista Alfredo Mendes em jeito de desafio: “São servidos meus senhores?”.
Memórias da cidade cerzida
Hélder Pacheco, em boa verdade, não se atirou a esta empreitada de três anos à boleia do “dantes é que era bom”, com propósitos saudosistas. Detesta-os, fica já aqui lavrado. “Se fosse dado a passadismos, o Porto ainda jogava no Campo da Constituição e eu ainda tomava banho no Rio Douro”, ironiza o autor. Mudança e transformação da cidade são, pois, inevitáveis e “bem-vindas”, até porque, reforça, “a História não se escreve em marcha atrás”. Seria até heresia dizê-lo num momento em que a cidade vive, aqui e ali, pujante. “Se não nos pusermos a pau e passarmos o tempo a lamentar o que já foi, daqui a nada estamos a defender uma sociedade que não queremos e não era, de todo, mais justa”, refere o escritor. O problema é outro: para chegar aonde chegou, a urbe permitiu a destruição de boa parte da paisagem social e humana profunda, de laços e solidariedades, na qual os tascos assumiam papéis insubstituíveis de vizinhança, comunidade e socialização, com algazarra e chagas operárias à mistura. “Esta feição, esta personalidade da cidade, feita de bairros onde tudo estava próximo e todos os relacionamentos, proteções e cumplicidades eram possíveis, foi quase completamente varrida do mapa em nome de uma lógica de progresso, desenvolvimento e modernização cuja espiritualidade é difícil descortinar”, escreveu Hélder Pacheco na introdução do livro, passagem cuja escrita lhe deve ter revolvido as tripas. “Em boa verdade, apeteceu-me começar a desancar os executivos da Câmara, a partir de 1930. Contive-me, mas é imperdoável que tenha sido assim. E não tinha de ser”, reforça, em conversa com a VISÃO.
No início, Hélder Pacheco queria escrever uma obra com propósito de inventário, realçando as gentes, sabores, odores, virtudes e tragédias – que também as há – destas “pátrias da conversa”, parafraseando o historiador norte-americano Christopher Lasch, uma das suas influências. Em 1997, o escritor portuense dera por si a contar ainda mais de cem adegas, tabernas e derivados, resistentes e contagiantes. Quase vinte anos depois, notou, desalentado, que a cidade mudara mais do que ele próprio pensara. “A grande maioria de sítios já não existe. Há fotos lancinantes do seu fim. Outros levaram com prédios de 15 andares em cima”, lamenta.
Dessa realidade, dos elogios fúnebres das notícias e dos resquícios dessas “testemunhas perturbadoras de um tempo extinto”, nasceu “outro” livro. Perto de 400 páginas serviram, pois, para “refletir sobre as mudanças na cidade”, a perda de população (100 mil pessoas em pouco mais de três décadas), o desbotar dos laços que a cidade tece, o desterro dos seus habitantes. “Alguns dos meus melhores amigos vivem hoje em Ermesinde, Valadares, Santo Ovídio”, atalha Hélder Pacheco. Por isso, as perguntas, a partir das tabernas ou da memória delas, tiveram de ser outras: “O que mudou no Porto porque tinha de ser mudado? O que mudou por motivos políticos e o que mudou por destruição?”, exemplifica o autor.
Outro Porto, outros caminhos
Daí nasceram outras histórias.
Por isso, o livro começa por ser habitado por um “repositório de estabelecimentos pitorescos”, mortos e vivos, sem fantasias nem aspirações a idolatrá-los. A partir do olhar cúmplice da taberna, e de barriga encostada ao balcão, abre depois caminhos para a discussão – conflituosa, claro, que se há de fazer? – sobre dois séculos de vida na cidade e o que nela houve de inclusivo, ou do avesso, com rasteiras passadas às gentes mais vulneráveis e fragilizadas ou perdas irremediáveis geradas pela “erosão cívica”.
O livro promete partilhar o cheiro de cozinhas e cozinhados, sim, era o que mais faltava! Conversas salgadas a tripas enfarinhadas, pataniscas, orelheira, bucho, rancho, em cenários de azulejo com dizeres populares ou arrebiques clubísticos, onde nunca faltaram pipas, humor, vidas no arame, e camaradagem rua fora. Sem esquecer as coesões à volta da bola, dos pombos, das cartas, do teatro popular, dos mealheiros comunitários, ou os vícios, marginalidades e violência, tantas vezes resultado de existências a verem-se pelos remendos e costuras. “Lutei contra o meu próprio instinto nostálgico ao escrever este livro”, admite Hélder Pacheco. “Não há comparação com a qualidade de vida e as condições sociais de hoje. Mas o que se fez às gentes e a alguns lugares desta cidade mais humanizada foi, em alguns casos, criminoso”, assume.
Por isso, além dos tascos e das mercearias “tem tudo”, das suas montras “às três pancadas”, das decorações de São João, das tabuletas de folheta, dos nomes castiços, das ementas escritas por mãos besuntadas com letras gordas, estas novas páginas da lavra do escritor e respigador de décadas e incontáveis obras sobre o Porto e os portuenses, são também sobre personagens: trabalhadoras, biscateiras ou coçadoras de esquinas, defumadas no quotidiano remediado, afetas ao palito, às azeitonas, à sopa caseira, ao bacalhau frito, plenas de gorduras bárbaras, hoje policiadas por leis e viveres padronizados, de fusão.
Por isso, resiste também neste livro a memória da “cidade rumorosa, povoada e profunda”, coerente, fecunda e de desolações amparadas. Sim, os bairros, as ilhas, as ruas, as fábricas e “as relações apertadas de vizinhança e do trabalho ao pé da porta”. Escritos que nos levam à memória “de um certo Porto popular e operário”, à “cultura dos pobres”, à rudeza dos dias e da mão-de-obra quase escrava e paga como tal.
E se o olhar repousa nas ruínas desse tempo, diante de portas fechadas, janelas entaipadas e gentes centrifugadas para a periferia, o que sobra desse mundo, ao menos, para tasquinhar? Hélder Pacheco, excursionista militante do Grupo de Amigos das Adegas e Tascas do Porto, recomenda que se passe pelo Alfredo Portista, Adega Mesquita, Flor do Palácio (que, em breve, receberá distinção a condizer com a tradição), Adega Floresta, Adega do Olho ou Casa Louro, e se espreitem – e se experimentem – o sabor de abraços feitos, da tasca da Dona Cremilde. “Noutro tempo”, refere, nostálgico, Hélder Pacheco, “ter-se-ia justificado um SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local, projeto arquitetónico e político pós-revolução] para as tabernas, mas agora é tarde”.