José não tinha maldade nem idade para ir para a prisão, pensavam a mulher, as filhas, até o advogado. Aos 68 anos, como conseguiria passar os últimos dias da vida na cadeia? No dia em que o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a pena de 16 anos de prisão pelo homicídio do namorado de uma das filhas, reuniram-se todos – incluindo essa filha, que nunca duvidou de que o pai agira em legítima defesa – para uma reunião de emergência. Queriam avançar para um plano de fuga.

O conhecido advogado da praça lembrou que todos teriam de estar preparados para grandes mudanças. Não que fosse necessário saírem do País, mas as suas rotinas nunca mais seriam as mesmas. Em poucas horas, José mudou-se com a mulher para o Porto. Como estava reformado, não precisava de se preocupar em contornar burocracias para arranjar um emprego. Dada a idade, também já não teria de se preocupar com a renovação de documentos. Conduzir, nem pensar – não iria arriscar ser apanhado por passar um traço contínuo ou conduzir em excesso de velocidade. Visitas das filhas? Sim, mas com cautela. Até chegarem à nova casa, mudariam pelo menos três vezes de transporte, olhando sempre por cima do ombro, para se certificarem de que ninguém as seguia. E o mais importante: o nome de José não deveria ser usado em circunstância alguma. Nem para um contrato de água ou luz, nem de gás, nem de telecomunicações, ou de um ginásio. Nada. Para não ser apanhado teria de viver fora do sistema.
Quanto tempo conseguiriam suportar esta vida clandestina? Todo o tempo que tiveram. Passaram-se 15 anos até ao dia em que José morreu, e sem que qualquer polícia desse por ele. Uma das filhas comunicou a morte por carta ao advogado, agradecendo-lhe por ter ajudado a que, apesar das limitações, o pai tivesse conseguido uns últimos anos de vida felizes. “Não precisou de fugir para longe. Vivia aqui ao lado e nunca o apanharam. Tenho a impressão de que a polícia não se preocupou muito em encontrá-lo. Ele não era um bandido”, diz o advogado.
António era mais novo. Mais dia menos dia, os alarmes iam soar – porque haveria de precisar de renovar documentos. Já tinha sido foragido uma vez e aprendera que, ao mínimo erro, se pode ser capturado. Da primeira vez, depois de ser condenado em Portugal, foi apanhado em Espanha enquanto conduzia. Esquecera-se de que sem atualizar a documentação só poderia conduzir o automóvel de matrícula inglesa por um período limitado – e o acaso levou-o a esbarrar numa operação stop. Quando chegou à esquadra, os polícias perceberam que não era um simples cidadão esquecido ou mal informado, e que sobre ele pendia um mandado de detenção devido a uma condenação em Portugal por tráfico de droga. Ficou preso em Espanha. Quando se esgotou o tempo máximo permitido para a prisão preventiva, ligou ao advogado: “Em breve estou aí.”
Entretanto, recurso após recurso, um dos tribunais superiores mandou repetir o julgamento. Aconteceu em Viana do Castelo, mas António nunca compareceu. Não que estivesse longe. Andava lá na terra, de esplanada em esplanada, e ia ficando a par do que acontecia em cada audiência. Acabou condenado a nove anos de prisão. Dessa segunda vez, não facilitaria. Para escapar à justiça, recorreu a uma identidade falsa e tornou-se um exímio cumpridor das regras de trânsito, não fossem mandá-lo parar e descobrir que a identidade era falsa. Durante o tempo de vida clandestina, arranjou namorada, teve dois filhos e até se tornou sócio de um conhecido grupo de restaurantes. Hoje ainda tem um, na Costa da Caparica, e já não é mais procurado pela Justiça: os factos, entretanto, prescreveram.
Apanha-me se puderes
Tal como José e António, são mais de 31 mil os que vivem em fuga permanente, no País. São esses os números que constavam, em maio, no registo de contumazes, ou foragidos à Justiça, no Sistema de Informação de Identificação Criminal. Ou são acusados de crimes pelo Ministério Público, ou foram condenados e desapareceram depois do julgamento, ou evadiram-se da prisão, ou saíram em precárias e não regressaram.
Como se apanha gente que não quer ser encontrada? “As pessoas precisam de viver, e viver deixa rasto”, resume Fernando Santos, inspetor de uma secção da Unidade de Informação de Investigação Criminal da Polícia Judiciária (PJ) que trata apenas de localizar e capturar foragidos. Anos de experiência dizem-lhe que quem desaparece “até pode gostar de fugir à Justiça, mas não gosta de ser anónimo”. São exceção casos como o de Fernando Cruz, pastor condenado por matar uma vizinha e que durante 16 anos viveu em grutas nas montanhas de Vieira do Minho, sobrevivendo de comida e água deixados por uma prima de dois em dois dias. “Normalmente não vivem em buracos nem na rua. Têm cobertura de alguém que não é foragido e que lhes pode dar a vida que eles, por força das circunstâncias, não podem ter.”
É preciso um testa de ferro para ser titular do contrato da luz e da água, com casa ou que possa arrendar uma, e com alguma disponibilidade financeira. Um foragido não compra um carro nem faz qualquer tipo de contrato jurídico – a menos que tenha uma identidade falsa, ou usurpe a de um familiar, e mesmo essas podem eventualmente ser detetadas pelo sistema. Um foragido também não trabalha, a menos que faça uns biscates não declarados. A partir do momento em que o nome entra nas Finanças ou na Segurança Social, a polícia fica a um curto passo de descobrir o seu paradeiro.
Os alarmes não soam automaticamente, e nenhum funcionário destes serviços vai ligar para avisar a polícia, mas a qualquer momento o órgão de polícia criminal responsável por fazer cumprir o mandado de captura pode aceder a bases de dados ou pedir informações a operadoras telefónicas, fornecedoras de serviços e até hospitais. Todos têm obrigação de colaborar. Renovar um Cartão de Cidadão, uma carta de condução ou um passaporte é tarefa que os foragidos, à partida, nem sequer procuram. “Os que vão é porque nem sabem que estão contumazes”, explica o inspetor da PJ.
Deixar a documentação passar de validade não dá prisão, mas tem o seu preço: significa viver como um fora da lei. À exceção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que pode deter e conduzir de imediato o procurado ao tribunal se aquele tentar renovar um passaporte, os serviços de registos e notariado limitam-se a não permitir a renovação dos documentos e a informar os visados que têm de se apresentar ao juiz, e em que tribunal devem fazê-lo. Nas embaixadas e nos consulados portugueses, os procedimentos são iguais. Ou seja, em Portugal, um contumaz que não se apresente voluntariamente em tribunal e que viva fora do sistema, sem contratar qualquer serviço, e se não for ativamente perseguido pela polícia, apenas será detido se for apanhado a cometer outros crimes. Ou por um azar qualquer, como ser mandado parar numa operação stop. Algo semelhante aconteceu a Manuel, que fugira para outro país da Europa para não cumprir uma pena por burla em Portugal, e foi apanhado porque teve um acidente no trânsito. Os foragidos também podem estar no sítio errado à hora errada.
Falar ao telefone é das poucas coisas que um contumaz ou foragido pode fazer com alguma liberdade – desde que não tenha um contrato com uma operadora em seu nome. O departamento da PJ responsável por localizá-los (apenas em processos que já transitaram em julgado, isto é, que não têm possibilidade de recurso) não está autorizado a fazer escutas ou a encetar outras diligências, apenas permitidas à investigação criminal. Assim que chega o mandado de captura emitido pelos tribunais, ou pelo SIRENE (sistema de informação do espaço Schengen), Europol ou Interpol, a equipa tem duas soluções: recorrer a bases de dados ou saltar para o terreno. “Há sempre um passado e um elo de ligação que não se corta. Nós vamos atrás. Vamos saber onde morou, em que escola andou, quem são os amigos, os companheiros, quais são os seus hábitos, se tem um gato ou um periquito que precise de ir ao veterinário”, explica o inspetor Fernando Santos.
Mas se todos têm laços, por que razão ainda há 30 mil pessoas por encontrar? Uns porque têm dinheiro, meios e aproveitam a liberdade do espaço Schengen. Outros porque cometeram crimes tão pequenos que nunca serão uma prioridade para as polícias. Para a PJ, será sempre prioritário localizar os mais perigosos – como homicidas ou violadores em série, assaltantes de bancos ou líderes de associações criminosas. Não perdem o sono por causa de condutores alcoolizados ou sem carta.
Os mais sofisticados
José Lorosa de Matos evadiu-se da cadeia de Pinheiro da Cruz, onde cumpria uma pena de nove anos de prisão por burla, falsificação e extorsão, e durante sete anos viveu tranquilamente até ser recapturado. Tinham-lhe chegado às mãos o Bilhete de Identidade e a carta de condução furtados a dois portugueses, documentos nos quais apôs a sua fotografia. Consoante a situação, tanto era Eduardo Carqueja como Ricardo Moreira. Depois, seduziu duas procuradoras do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa. Através delas, acedeu a bases de dados e descobriu que aqueles nomes eram “limpos e seguros”. Optou por usar o primeiro para o Bilhete de Identidade, para tirar a carta de condução e registar um Opel Corsa, um BMW e uma mota.
Usar outra identidade era a única forma de ter uma vida relativamente normal. Mas continuava a ser arriscado. Foi por isso que forjou um despacho judicial do Tribunal de Execução de Penas de Évora, que declarava a cessação da sua contumácia e lhe concedia a liberdade condicional. O objetivo era obter nas repartições oficiais documentos em seu próprio nome: Lorosa de Matos. Já não teve tempo para tudo. A 9 de novembro de 2010 foi apanhado pela Unidade Nacional de Contraterrorismo da PJ.
Os estratagemas são muitos. George Wright era um dos criminosos mais procurados pelos Estados Unidos, por homicídio (um comparsa premiu o gatilho durante um assalto em New Jersey, em 1962), mas levava há mais de duas décadas uma vida pacata em Sintra até ser detido pela PJ em 2011. Durante anos e anos, um simples dado ditou o porquê de não ser encontrado: é que, em Portugal, George não respondia por George, mas por José Luís Jorge dos Santos, nome que terá conseguido ao pedir asilo político na Guiné. (O americano teve, ainda assim, um final feliz: o Estado português considera-o cidadão nacional e não o extradita.)
Hoje, com a produção eletrónica dos documentos de identidade, conseguiriam fazer o que fizeram? Ninguém garante que são impossíveis de falsificar ou que não há falhas no sistema. Mas na soma dos últimos três anos (2013, 2014 e 2015) verificou-se pela primeira vez o fenómeno de as cessações de contumácia (14 438) ultrapassarem as declarações de fuga de arguidos à Justiça (11 735). E para Jorge Brandão Pires, diretor do SICRIM (Sistema de Informação de Identificação Criminal, pertencente à Direção-Geral da Administração da Justiça), há um facto cristalino: é quando vão tirar ou revalidar o Cartão de Cidadão, o passaporte ou a carta de condução que as pessoas são informadas – oficialmente e sem margem para quaisquer dúvidas – de que constam no registo de contumazes (muitas alegam não terem sido notificadas por mudança de residência).
Quem anda no terreno a procurar os condenados não duvida que todos cometem erros, embora também saiba que não pode descurar os defeitos administrativos nem a sofisticação de alguns foragidos. Lorosa de Matos, por exemplo, deu-se ao trabalho de procurar identidades de pessoas da sua altura: 1,85 metros. São pormenores que podem fazer a diferença entre a prisão e a liberdade. Uma liberdade com limites, é certo. Mas pelo menos sem grades de ferro.
Cerco legal
A lei dita o que parece necessário para pressionar os foragidos a apresentarem-se nos tribunais. Teoricamente…
1. Emissão imediata, por um juiz, de mandado de detenção do arguido contumaz
2. Proibição de o contumaz obter, por exemplo, a emissão ou renovação do Cartão do Cidadão, do passaporte ou da Carta de Condução
3. Interdição de praticar atos sujeitos a certificações públicas (registo automóvel ou predial)
4. Anulabilidade dos negócios jurídicos patrimoniais celebrados após a declaração de contumácia
5. Possibilidade de arresto de bens
6. Interrupção da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal
7. Logo que o arguido se apresente em tribunal ou seja detido, é declarada cessada a situação de contumácia pelo juiz respetivo