À primeira vista, parecem boa gente. Mas se olhar mais de perto vai tirar uma conclusão óbvia: ninguém é normal. Se não for o chefe obsessivo, é a namorada desconfiada ou o amigo que não para de falar de si mesmo. De início estranha-se, depois aceita-se. Só quando a vida começa a complicar-se e a trazer danos sérios, pelo menos a uma das partes, é que se questiona o que há de errado e com quem. O assunto interessou de tal maneira a psiquiatra forense brasileira Katia Mecler que, aos 50 anos, e após mais de vinte de prática clínica no Instituto de Perícias Heitor Carrilho, no Rio de Janeiro, acabou por escrever sobre o assunto. Psicopatas do Quotidiano (Casa das Letras, 223 págs., €15,50) convida o cidadão comum a identificar e lidar com as perturbações de caráter mais comuns, ilustradas através de personagens ficcionais, em muito parecidas com as que podemos encontrar nas pessoas ao nosso lado – ou, até, em nós mesmos.
Vilões sedutores
Não era o filósofo existencialista Sartre que afirmava que o inferno são os outros? “A verdade é que podemos também ser nós mesmos”, esclarece a autora, que se especializou em doença mental e cujo trabalho, com criminosos e as suas vítimas, a levou a trazer para o quotidiano o lado mais sombrio da natureza humana.
Apesar de a designação “psicopatas” não constar das classificações médicas, o termo foi usado por um psiquiatra alemão, no início do século XX, para designar estas perturbações, “que existem em 10% da população e comprometem a qualidade de vida de quem as tem e quem com elas convive”, diz Katia Mecler.
A diferença é que, há um século, a sociedade era bem diferente da que temos hoje: as neuroses e o sentimento de culpa, bem como os traços obsessivos, estavam na ordem do dia. Com as redes sociais e a cultura do espetáculo, “brilham as pessoas com perfis do grupo B, dos perversos, que não se adaptam às normas, mentem, não têm remorsos, bem como as que se mostram agressivas, arrogantes ou se comportam de forma irresponsável”. E quem, de nós, nunca teve manifestações destas, que atire a primeira pedra.
Quatro tipos de perturbação e como lidar com elas
Antissocial
Verdade Aquela pessoa a quem não falta “lata” para chegar onde quer. “Lata” é um eufemismo. Insensibilidade é um termo mais preciso para definir um modo de funcionar sem empatia, compaixão ou arrependimento. Vilão que se preze não olha a meios para atingir os seus fins e sabe que isso só aumenta o seu carisma. As táticas subversivas que usa, em tudo semelhantes às dos protagonistas de O Silêncio dos Inocentes, de Hunger Games ou O Lobo de Wall Street, até podem ter graça, no cinema e nos jogos. Na vida real, nem por isso.
Consequência Se lhe der a mão, não estranhe que lhe seja pedido o braço e lhe digam que está a fazer pouco. Pessoas assim enganam facilmente e a prática do abuso é um estilo de vida.
Estratégia A canção do bandido pode até ser boa. Confrontar, questionar, repreender, nada disto vai funcionar. O segredo é mostrar-se forte e não ceder às manobras de charme.
Estados Limite (ou Borderline)
Verdade Pode ser aquela pessoa de quem se gosta muito no trabalho ou o vizinho do lado que é um querido, mas para quem um dia somos bestiais e, no seguinte, bestas. Idealizam hoje para logo desvalorizar amanhã. Vivem entre o amor e o ódio, como se, por dentro, fossem uma montanha-russa. Impulsivos e instáveis, costumam ter acessos de raiva intensa e uma sensação crónica de vazio, que se manifesta em comportamentos autodestrutivos (mutilação, abuso de substâncias, sexo sem proteção) e ideias suicidas.
Consequência Conviver com alguém assim nunca será monótono, mas terá de puxar pela imaginação para não ficar refém da chantagem e do sentimento de posse que recair sobre si.
Estratégia Limites. Limites. Limites. Se não os estabelecer vai na torrente, na lava do vulcão. Não levar a peito este estado de caos e procurar – ou levar a pessoa a procurar – ajuda profissional para se estabilizar.
Narcísico
Verdade Ninguém é tão bom ou melhor que eles, pessoas tão especiais. Eles estão sempre acima da lei e desconhecem o conceito de empatia. Arrogantes por natureza, raramente desviam a atenção do seu próprio “eu”, razão que leva a que sejam alcunhados de egocêntricos. Move-os o poder, do qual estão sempre sedentos, por terem uma visão distorcida (grandiosa) de si – e comportam-se como tal –, ou uma estrutura de personalidade frágil, que disfarçam com atitudes e práticas que os fazem parecer superiores.
Consequência Ter ao lado alguém com este perfil é um caso sério. Apesar de gostarem de sentir-se invejáveis, facilmente sentem inveja de quem possa, na sua fantasia, ameaçá-los.
Estratégia Se esta pessoa for a sua chefia, é prudente que não a questione ou desafie ao ponto de ela se sentir rejeitada. Se isso acontecer, as represálias são garantidas.
Histriónico
Verdade A vida deles dava um filme que podia ter como título “Olha para mim”. Carentes crónicos de atenção, fazem tudo para serem notados e tendem a exibir os seus dotes sem acanhamento, ou seja, usam e abusam das artes da sedução. Do mesmo modo que parecem encantadores, rapidamente se tornam irritantes, pelo seu discurso que, embora rápido, cai na categoria do superficial. Dados a dramas e cenas de ciúmes, tendem a singrar no mundo do espetáculo e das artes, e a atrair seguidores nas redes sociais.
Consequência A procura constante de estímulo e as manobras de manipulação emocional desgastam a convivência com os mais próximos. A vida íntima é a que mais sai prejudicada.
Estratégia A melhor maneira de lidar com este perfil é não levar muito a sério os seus atos e gestos inflamados e, por vezes, convincentes. Caso se apaixone por uma pessoa assim, desiluda-se quanto a corrigi-la. Por mais que ela goste muito de si, dificilmente deixará o seu mundo de fantasia.
Três perguntas a Katia Mecler, psiquiatra forense:
Como saber se um traço de personalidade é doença ou feitio?
Uma coisa é o temperamento, uma disposição emocional que nasce com a pessoa. Umas são mais dadas à melancolia, outras tendem a explorar mais o seu ambiente e por aí fora. Já a formação do caráter resulta dos valores interiorizados desde a infância e desenvolve-se a partir das experiências vividas em família e fora dela. O que define um traço de personalidade disfuncional é o seu grau excessivo e os danos que causa na relação com os outros.
Quais são os psicopatas dominantes na cultura popular? No tempo de Freud eram os neuróticos…
A sociedade atual, imediatista e orientada para o efémero e para a hiperexposição, premeia os perversos. É o caso do narcísico, que passa o tempo a glorificar os seus feitos, na onda do “eu, eu e mais eu”, e da pessoa com personalidade- -limite, que vive numa montanha- -russa emocional e, à mínima frustração, é impulsiva e tem comportamentos irresponsáveis e perigosos, desde o abuso de substâncias até acidentes ou recurso a manipulação e chantagem. Raramente pedem ajuda, e alimentam-se dos que estão à volta, que sofrem com isso.
O que fazer quando se percebe que o amigo, colega, parceiro, chefe ou familiar é assim?
Blindar-se emocionalmente. E questionar-se acerca da razão que leva a dar-se com essa pessoa. Provavelmente isso acontece porque se tem alguma coisa parecida com ela: um tem algo em excesso e o outro em falta. A solução passa, muitas vezes, por estabelecer limites na forma de se relacionar e treinar competências em falta para não se deixar encurralar num beco sem saída.