Em 2013, Ricardo Araújo Pereira desceu da bancada para o relvado, perante um estádio com 35 mil pessoas. Tratava-se de um jogo de beneficência e, no final, declarou aos jornalistas: “Estive com a camisola do Benfica vestida, no Estádio da Luz, a jogar na equipa do Benfica, portanto o que eu tinha a fazer neste planeta está feito. A partir de agora, a minha vida é sempre a descer. Vou estar a engonhar até morrer…” Claro que era uma piada, mas só porque tudo o que Ricardo Araújo Pereira “declara” tem sempre graça. O mais interessante deste comentário é o fundo de verdade que ele pode conter e que causará a maior das perplexidades a todos aqueles (poucos) para quem um jogo é “apenas um jogo”. A relação dele com o futebol é mesmo assim, “doentia”, admite. E não será por acaso que em Itália o adepto se designa “tifoso” (de tifo). Ricardo condiciona a vida em função dos calendários da bola, sabe as datas dos campeonatos, lembra-se do que estava a fazer no verão de 82 (Campeonato do Mundo, em que ganhou a Itália), quando se encontrou com António Lobo Antunes, passaram ambos parte da entrevista a falar de futebolistas antigos, tratando-os pelo nome completo (que é algo que só um adepto “muito doente” consegue fazer) e confessa: “Das 10 alegrias mais intensas na minha vida, sete foram o Benfica que me deu”. Portanto, se lhe pedem para racionalizar, ele remete para as primeiras linhas de Os Passos em Volta, de Herberto Helder, “Se eu quisesse enlouquecia”. Num dos últimos Governo Sombra, também a propósito do Benfica comentou: “Eu leio livros, ouço sinfonias, eu vi catedrais, mas não há coisa que me emocione tanto como o passe do Rui Costa para o golo do Isaías, no Benfica-Parma, em 1994. Portanto, é da minha vida que estamos a falar”.
A pertença àquele clube faz parte da sua identidade, não tem dúvidas, como ser do género masculino ou ter nacionalidade portuguesa. “É um imperativo ético”: “Tenho muito orgulho em fazer parte de um clube que fala de alegria nos seus estatutos”.
Ele que é ateu, não acredita em nada, “cético em relação a tudo”, dá por si a cumprir rituais, a assumir superstições. Uma certa camisola que não pode voltar a vestir, “e o pior é que tenho a sensação de que se alguma coisa corre mal ao Benfica pode ser por culpa minha”. Quando era adolescente aconteceu os pais darem boleia a Eusébio. Mais tarde, haveria de comprar o carro ao pai, fazer sentar as filhas no lugar onde Eusébio viajou e não largou o carro até ele parar. Escreveu uma crónica chamada: O dia em que Deus entrou no meu carro.
Claro, diz, que se se referirem ao futebol como um bando de 22 homens a correrem atrás de uma bola parece ridículo, mas escrito assim nada tem interesse. É como descrever sexo como um conjunto de movimentos descoordenados. E cita um “adepto do Vasco da Gama chamado Carlos Drummond de Andrade”: “Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade. Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem ao risco de assistir às partidas, pois não voltam com deceção ou enfarte”. Uma vez esteve próximo de algo parecido com um burnout: está convencido de que as três derrotas consecutivas do Benfica foram “o gatilho”.
‘Vem deitar-te na grama’
Ricardo lembra, também, a célebre frase de Camus: “Tudo o que sei sobre a moralidade e as obrigações do homem, devo-o ao futebol”. Não são casos isolados os chamados “espíritos sensíveis” ou “intelectuais diferenciados” deslumbrarem-se com uma celebração tão física, tão feita de ação pura e pulsões instintivas quanto o futebol. Chico Buarque, sempre que vai em tournée, pede que formem um time para jogar entre espetáculos. Disse que iria pendurar as chuteiras aos 78, mas já prorrogou o prazo: “Estava muito cedo”. Quando se encontra com Pelé, este só quer saber de música, “eu só quero falar de futebol”. Sérgio Godinho, o mais famoso sportinguista portuense, compôs a música Espectáculo e numa das estrofes diz “Quando tu me vires no futebol/ estarei no campo, cabeça ao sol (…) Não me olhes só da bancada lateral/ desce-me essa escada e vem deitar-te na grama/ vem falar comigo como gente que se ama…”. E fala de “um jogo extraordinário, com geometrias e diagonais incríveis, com uma enorme precisão e magia”.
O poeta Manuel Alegre tem um livro de crónicas só sobre futebol (O Futebol e a Vida) e dedicou um poema a Figo. A poetiza Maria Teresa Horta diz que ser do Benfica vem-lhe de antes do nascimento – o pai, interno no Colégio Militar, era mascote do clube e às vezes, a equipa vinha-o buscar, para dar sorte. Acha que o futebol é um elemento de comunhão familiar, mas às vezes fica com taquicardia e nos jogos importantes mete-se no cinema para não assistir. “No fundo, procuro no futebol a beleza que busco desde que existo”. Nas palavras de Natália Correia: “O ateísmo do nosso século arranjou uma forma de se apaziguar, fundando, com o futebol, uma religião cujos desuses podem ser assobiados se jogam mal”.
Para o jornalista, cronista e comentador desportivo João Gobern tudo começou de muito pequenino. Por influência do avô, que fumava uma marca de cigarros chamada Sporting, “para queimar o inimigo”. Aos 6 anos ficou de cama, com uma hepatite, era altura do mundial de 1966 e viu os jogos todos. Durou um mês e ainda hoje sabe os golos todos e os nomes de quem os marcou – assim como sabe de trás para diante os livros de Os Cinco de Enid Blyton, que alternava com o campeonato. Quando se tornou jornalista deixou de ser sócio do Benfica. Hoje, considera que foi excesso de zelo: “Achei que essa minha faceta tinha um peso tão grande em mim que não saberia ser isento”. Consegue ter um comportamento racional e equilibrado, “até ao momento em que entro dentro de um campo de futebol”. São atitudes de massa, explica, “que eu não assumo no meu dia a dia”: “ou uma extrema alegria ou uma irremediável fúria”. Considera o bilhete para um jogo um bom investimento, “um bom substituto para o divã do psicanalista, mas de forma acompanhada”: “Aproveita-se para extravasar uma série de coisas que ficaram cá dentro”. É evidente para ele que um jogo se trata de um “simulacro de guerra possível e tolerável”.
E não será um pouco primitivo?
“É claro que sim, e isso é que é extraordinário”. A gritaria, os insultos, a linguagem escabrosa, os abraços entre pessoas que “na vida real” nunca se falariam… Dar uns gritos, comenta, “é tão visceral. Tento que os meus arremedos ou ataques de primarismo não chateiem o próximo e sinto pena das pessoas, coitadas, que não conseguem canalizar a sua irracionalidade para o futebol. Nem queria estar ao lado delas”. Curiosamente, e não lhe perguntem porquê, “talvez porque já tenha a lógica da competição na cabeça”, não consegue ver um jogo sem estar a torcer por uma equipa, “nunca sou espectador neutro”: ele próprio arranja pretextos, ou por pertencerem a países com governos mais à esquerda ou por serem mais fracos ou pobres. Comoveu-se com a bandeira nacional à janela no Euro 2004, “foi uma ideia emocional de criação de sentimento de identificação e de pertença tão boa que só podia vir de um não português”. Só se lembra de algo semelhante quando as pessoas saíam vestidas de branco por Timor.
Seleção: ‘futebol para gajas’
Filha de um jornalista da Bola, não foi, contudo, por via paterna que Leonor Pinhão chegou ao futebol. Era o avô que a levava ao estádio, e esta é uma das maiores alegrias que guarda da infância. O primeiro jogo a que assistiu, tinha 9 anos, foi o Portugal/Inglaterra, em 1966. Perguntou pelo som, ri-se, estranhou a falta do relato, nem sequer diziam o nome os jogadores. A sua forma de ver futebol continua a mesma, hiper-concentrada, silenciosa. Lembra-se de que em 1969 (durante a Taça de Portugal) esteve naquela que foi uma das maiores manifestações estudantis antifascistas. Quando ela e o avô chegaram a casa, o pai, oposicionista, correu a perguntar o que se tinha passado. Nada. Não tinham dado por nada, para além do jogo. Nem cartazes nem a PIDE infiltrada nas bancadas.
“Ainda hoje tenho uma relação tão profunda com o jogo que nada me distrai. Mantenho-me em total concentração, nem abro a boca”, conta. Consegue ver no jogo uma manifestação tribal, um substituto do conflito primário. “Isto é tão óbvio. O futebol responde a uma imensa necessidade de pertença a um colectivo, que as nossas vidas aceleradas não permitem”. À porta do coliseu romano vendiam-se miniaturas dos gladiadores: “São o equivalente às coleções de cromos de hoje”. Pode ser, admite, uma regressão aos tempos de infância, “em que não se nos exige responsabilidade nem bom senso”: “Uma espécie de bordado de memórias afetivas que comove”. Mas também há algo de muito remoto, que vem dos primórdios da Humanidade, nesta disputa em torno de um jogo. E ocorre-lhe a imagem do gorila que arremessa as próprias fezes quando se enfurece. Mas de resto, refere-se ao futebol como “um jogo extraordinário, não apenas atlético, muito bem pensado, que vive da sorte e do azar, o que permite a uma equipa mais fraca ganhar. A regra do fora de jogo é magnífica, e um bom jogador tem de ter a inteligência da geometria no espaço”.
Os jogos da seleção não lhe fazem aumentar o batimento cardíaco – um amigo seu, com uma misoginia muito própria dos portugueses, diz que “a seleção é futebol para gajas”- os do seu clube sim, torcer “é coisa sofrida, com emoção, conflito, e paixão”. Como numa guerra civil: que, como se sabe, são as mais violentas e raivosas. Mas não cede às derrotas, a consolar os filhos, consola-se a si própria, o mesmo não se diga das superstições: Leonor Pinhão tem uma bandeira da Sardenha oferecida pela filha – como o Benfica ganhou, nunca a retirou da parede. E uma reprodução de um quadro do Pollock que está torto. Não deixa que ninguém o endireite: “No dia em que o clube perder, aí sim, endireito o quadro”.
Raquel Vaz-Pinto, professora de Relações Internacionais, autora do livro Para Lá do Relvado, lançado na semana passada, vê muito mais política no futebol do que na própria política. Não admira que, nas suas aulas, se socorra de exemplos futebolísticos para explicar certas tensões entre países. “Portugal tem dos melhores jogadores do mundo e enquanto país tem um impacto muito maior na vertente do jogo do que do ponto de vista diplomático, económico ou político”. Todos querem estar no centro deste mundo. Isso explica a China estar a tentar exportar o seu futebol para outros mercados e o Qatar ir organizar o Mundial de 2022. A ela que vê seis jogos por semana (o Euro, confessa, “não me deixa de rastos”), das coisas que mais a irritam, é que lhe digam “mas é apenas um jogo”.
“Tem qualquer coisa de mágico, que escapa à racionalidade, de gostar porque sim , o que é inexplicável, um regresso à inocência – e isso é fascinante”. Esta emotividade também ajuda a compreender , segundo Jorge Valério, psicólogo do desporto, ex-provedor do adepto, atual coordenador das equipas de oficiais de ligações com o adepto, a vantagem de se jogar em casa: “Vence-se os encontros numa percentagem sempre superior a 50 por cento”. Para tal atribui várias explicações, entre elas o apoio da multidão.
O bom selvagem
O escritor e cronista Álvaro Magalhães atribui a culpa da fama planetária do futebol justamente à irracionalidade que desperta. “Não somos anjos caídos do céu, somos animais, e o futebol nega tudo o que é culturalmente adquirido, até a própria linguagem. Desperta sentimentos primitivos e devolve-nos a naturalidade do nosso instinto”. Então, continua, “se o futebol nos retira momentaneamente da civilização (a alegria, as atitudes estúpidas e bestiais, a exaltação da parcialidade…), liga-nos a um outro mundo e anima essas zonas que estão soterradas, mas fazem parte de nós. E é isso que nos dá vida”. Algumas mulheres, diz o escritor “têm a mania que os homens vão ao futebol para se divertirem. Nada mais falso: aquilo é zona de sofrimento”. Segundo diz, e desenvolve no seu livro História Natural do Futebol, um jogo é território de emoção, de afeto, de instinto, do agitar dessas zonas que a civilização tende a apagar, que dá excitação às nossas sociedade inexcitantes – “somos evoluídos, mas desnaturados”. E fala em “acréscimo de vida”, de uma inteligência instintiva e física reativada, em que “o corpo é que pensa”. E qual é o mal?, questiona-se. “Vamos lá ser trogloditas um bocadinho… Experimentar a matéria de que éramos feitos, antes de sermos o animal evoluído que somos”.
Afinal, conclui, o futebol é uma Disneylândia para adultos, “a recuperação semanal da infância” (Javier Marias). No estádio, a orgia consentida, em que os excessos são aceites, a atmosfera febril, o divertimento frívolo… Não falem dele como espetáculo mas “como uma vibrante celebração da animalidade”: “Um filme, por exemplo, não nos pode dar cabo da vida, um jogo sim. O futebol é uma coisa perigosa”. Além do mais, um adepto, não é espectador, “ele participa da cerimónia, é afetado por tudo o que acontece, é um acólito”: O espectador acaba quando acaba o jogo. O adepto é antes e depois. O espectador sai ileso, o adepto, que nunca pode trocar de deuses, perde a cabeça.
Estes jogos do euro são, diz, “para os turistas do futebol, que usurpam as experiências dos verdadeiros adeptos”. Porque o futebol é “para os irmãos de tribo, é coisa de clube”:
“A nossa pátria é o nosso clube, a seleção é uma segunda pátria”. E na origem desta animalidade boa, como se lhe refere o escritor, está justamente o facto de ser o único jogo em que se prescinde das mãos (as duas patas que nos sobraram quando ganhamos a verticalidade). Foi com as mãos que passámos das cavernas até à Lua. A complexidade de não se poder manusear a bola torna o jogo imprevisível e irregular. A Incerteza, a irresolução, o acaso, o encadeamento aleatório… O mérito não é suficiente, tudo pode acontecer, o homem fica novamente à mercê de elementos que não controla. O que, explica Álvaro Magalhães, gera superstições, lógicas magico-religiosas, fetiches, micro-rituais…
No futebol, “joga-se com o corpo todo”. Há pouco de humano naquele homem numa luta feroz pela posse da bola, que não utiliza linguagem verbal, apenas gestual, e urra, silva, é assobiado pelo treinador, como se este fosse o pastor. “O jogador é um ser de puro instinto. A sua ação em campo, sarabanda de músculos e nervos a cada momento mobilizados por choques de alta tensão”… Trata-se de um reencontro com o que fomos: “Tribais e territoriais”. Não admira, diz Álvaro Magalhães: “Fomos caçadores recoletores durante 95% da nossa evolução”.
Se o jogador hesita, se para para pensar pode estragar tudo. “A perceção animal dos acontecimentos permite sempre um gesto de defesa ou antecipação, o instinto, o automatismo, a resposta reflexa”. O escritor fala de uma equipa e “seu cerco de predadores que cooperam para o mesmo resultado”. Correm, saltam, carregam, estabelecem território, atacam e defendem. E não é por acaso que são alcunhados com nomes de animais e raramente por nome e apelido, mas por diminutivos.
No seu livro, Álvaro Magalhães conta que Pahiño, um avançado do Real Madrid, dos anos 50, tinha a irremediável mania de aproveitar as horas mortas dos treinos para ler. Um dia falhou, e um jornalista escreveu: “Que se pode esperar de um jogador que lê Tosltoi e Dostoeivsky?”
“Excesso de emoção é um excesso de vida”. E está convencido que “se uns extraterrestres estivessem agora a observar-nos, concluíriam que o futebol seria o que melhor define a nossa espécie”.