Mafalda diz que tem muito em comum com a outra Mafalda, a do Quino. Ambas são pequeninas, irreverentes, contestatárias e não gostam de sopa. Só que esta Mafalda, a Ribeiro, tem algo mais: uma impressionante energia positiva e uma inteligência emocional acima da média, superconcentradas em 97 cm de mulher que fazem dela uma raridade.
Isso e a osteogénese imperfeita, aquela condição congénita a que vulgarmente se chama doença dos ossos de vidro, e que lhe deixou mazelas (mais de 90 ossos partidos, dores permanentes e a necessidade de se deslocar numa cadeira de rodas) para a vida. Uma vida que, como gosta de dizer, apesar de tudo isso ou por causa de tudo isso, lhe corre sobre rodas há 32 anos.
Licenciada em jornalismo, demitiu-se há dois anos dos quadros de uma empresa para se lançar por conta própria como oradora motivacional. É frequentemente convidada para palestras e eventos e escreve na Bolsa de Especialistas da VISÃO online. Tem dezenas de amigos famosos e uma intensa agenda social e, apesar de não andar pelo seu pé, é viciada em sapatos.
Mais do que uma entrevista sobre deficiência e inclusão, esta é uma conversa inspiradora sobre a existência humana, a forma de nos relacionarmos com os outros e com os nossos próprios problemas.
Perfeita para ser lida à beira de um ano novo, em que nos determinamos a fazer mais e melhor. Desculpará o leitor o tratamento por “tu” no diálogo e a anormal profusão de gargalhadas na transcrição é que a Mafalda não dá mesmo outra hipótese.
Referes-te a ti própria como a “Def”. Detestas o politicamente correto?
Quando não era a “Tecla 3”! (risos)
É uma estratégia? Ao dizeres este tipo de coisas desconcertantes arrumas logo com o preconceito?
Para mim isto é espontâneo. Acho que as pessoas complicam muito. Quando se fala de deficiência, é a tragédia, o horror. Não é fácil, claro que não. Mas acho que não podemos fazer disto um bicho-desete-cabeças quando se calhar até não é.
Antes de ser deficiente, ou portadora de deficiência, sou uma pessoa. Isto é só uma condição, é a minha e a de muita gente em Portugal e no mundo, mas não é isto que me define. Há pessoas que não estão numa cadeira de rodas, mas se calhar são profundamente infelizes e têm uma vida de frustração. É mau para todos vivermos presos às questões dos rótulos, do politicamente correto. Ser bem-humorada e gozar comigo é a melhor forma de não ter de estar à espera que isso possa acontecer da parte dos outros. Tenho um humor aguçado, nasci com ele. E aprendi que levar a vida a rir é meio caminho andado para se viver bem e enfrentar o que quer que seja.
O sorriso é uma técnica para desarmar as pessoas?
É isso mesmo. O sorriso é poderoso! É fantástica esta capacidade que nós temos, que está ao alcance de qualquer um e ainda por cima é grátis. (risos) Nós negligenciamos o poder que um sorriso pode ter na vida de outra pessoa. Quando alguém que não conheço se aproxima de mim e quer abordar-me, se eu lançar logo o meu cartão-de-visita que é o meu sorriso, quebra o gelo. Acho que as pessoas com deficiência estão sempre à espera que seja o outro a fazer qualquer coisa, e eu fui aprendendo que temos de ser nós a fazer por nós próprios. Eu nunca digo que a culpa é dos outros, tento sempre encontrar uma responsabilidade minha em tudo o que acontece, porque se eu achar que sou eu, posso mudar e fazer diferente. Se eu quero que os outros me incluam, eu tenho de me fazer incluída e tenho eu de incluir também.
As nomenclaturas não são importantes para ti?
As nomenclaturas não são o mais importante. Em Espanha sou menos válida, no Brasil sou cadeirante, isso é cultural, o que é que eu vou fazer? Vou-me deprimir por causa disso? Preocupo-me muito mais se há uma rampa em vez de um degrau do que se me chamam portadora de deficiência, deficiente, com deficiência, “Def”. Não tenho qualquer problema a que me chamem o que quer que seja, mas prefiro que me chamem Mafalda. (risos) Mas dentro do padrão das pessoas com deficiência, se é que o há, eu tenho noção que sou diferente.
E os outros deficientes não se irritam contigo?
Não sei… Não estou aqui a armar-me em boa, mas tenho esta lucidez. Sei que muitas pessoas com deficiência já partem com um sentimento de inferioridade gigante, e não podemos querer que as coisas mudem se esta é a nossa atitude.
A forma como nós nos apresentamos aos outros é determinante para como eles nos veem.
Sim, claro! Muitas vezes, quando na minha atividade profissional vou dar palestras, agradecem-me por estar a falar não para as pessoas com deficiência, mas para todos. Não me quero armar em moralista para com os da minha espécie, como costumo dizer. (risos) Cada caso é um caso, sei que dentro das minhas limitações físicas sou uma pessoa altamente abençoada, tive e tenho uma família extraordinária, e uma rede de amigos fabulosa, porque também a construí. Sei, por exemplo, que hoje tenho esta vida social intensa porque nunca me fechei em casa.
Mais do que de inclusão, tu falas sobre uma atitude, uma maneira de estar na vida e enfrentar adversidades.
A minha maneira de estar na vida é sentada! (risos)
Como é que viste este debate sobre as referências nos media à nova secretária de Estado da Inclusão, apelidada de “cega” os títulos?
Não dá para fugir ao facto de que há uma secretaria de Estado que estava fechada e que volta a abrir, e que a pessoa que a vai presidir é uma pessoa portadora de deficiência. Tal como a ministra da justiça é negra, temos de falar disso, tal como falámos quando o Obama chegou a Presidente dos EUA. É normal, é o País que temos. Conheço a Ana Sofia Antunes, é uma pessoa com provas dadas e uma carreira impressionante, respeito-a imenso, e chocou-me obviamente ver alguns títulos, como aquele: “Uma economista, um sociólogo e uma cega ao lado de Vieira da Silva”. Ela é uma jurista cega. Mas foi corrigido, ok, siga. Não vale a pena ficar a remoer com o que passou.
Acabou, vamos andar para a frente. Só que, raio das redes sociais, ligámos todos os complicómetro e passou a ser mais importante o incidente do que o facto de ela ter chegado a um lugar destes e o que vai fazer daqui para a frente. Fazer o juramento e ler em braile na tomada de posse é um momento histórico em televisão. E isso não teve metade do impacto.
O que gostavas de ver feito?
Quando não reparam em mim eu já acho estranho, acreditas? Quando me dão direitos iguais a ser diferente, é para isso que eu luto. Às vezes perguntam-me qual é o meu fascínio por Barcelona, além de ter lá amigos. É o facto de não ter uma única barreira arquitetónica, e isso é incrível: posso andar de autocarro, metro, na rua sempre sozinha sem problema. Até me irrita: então eu quero ser diferente e ninguém olha para mim? Não há um degrauzinho, nada? (risos) Estive em Nova Iorque, vi “n” cadeiras de rodas e pergunto-me: mas só há deficientes lá fora? Não, só que as pessoas em Portugal não saem à rua.
E tu não te deixas ficar nem te limitas.
Costumo dizer que nem o céu é o limite. Há uma diferença entre liberdade e autonomia. Eu não sendo 100 por cento autónoma, estando dependente de outras pessoas no meu lado físico, sei que sou 100 por cento livre. Eu nunca tive pudor em pedir ajuda, nunca vi isso como uma humilhação. Não estou à espera que os outros percebam que eu preciso de ajuda e se ofereçam, não são os outros, temos de ser nós. Nunca tive pudores, por exemplo, em andar ao colo de outras pessoas.
É claro que tenho os meus colos favoritos (risos). Tantas vezes me confundiram com uma criança, não imaginas! Estas situações insólitas podem ser embaraçosas, mesmo humilhantes para alguém com a minha doença, mas eu habituei-me a uma coisa: eu não posso mudar tudo posso esforçar-me para que a mudança vá acontecendo e já mudou muita coisa, mas não me vou deixar ficar para trás por causa de uns degraus. A cadeira não pode ir? Ok. Eu sou portável, tenho essa sorte, então a cadeira fica, mas eu vou ao colo! Eu quero é estar com os meus amigos e com quem me quer bem. Eu fui para a faculdade, vou para a discoteca, para a piscina, para a praia, viajo, ando de mota, de mota de água, balão de ar quente. nunca deixei de fazer absolutamente nada. Estar dependente de alguém não me aprisiona. As minhas limitações não determinam os meus limites.
Falas sempre muito dos teus amigos. Quem são eles? Há quem diga que a tua lista de contactos vale ouro.
São muito heterogéneos. Há pessoas conhecidas, como a Fernanda Freitas, o Albano Jerónimo ou o Jorge Gabriel, mas muitos outros. Comecei cedo a trabalhar na comunicação social e conheço há muitos anos pessoas que hoje são figuras públicas. Tenho as minhas pessoas, que são anónimas e que não quero expor, e que são a família que nós escolhemos. Se me perguntares se eu me preocupo com o diaa-dia, agora que a minha mãe já não existe e o meu pai está mais velho e é um homem apesar de ter muito tempo para mim e ter sido sempre dedicado e um grande cuidador, eu sei que estas pessoas nunca me vão faltar. Os meus amigos gozam comigo e dizem: “trata-nos bem para não ires para o lar!”. Eles são a minha rede. Não têm, é evidente, qualquer obrigação, mas se eu tivesse uma fatalidade e não pudesse contar com o meu pai, sei que não me ia faltar absolutamente nada.
Hoje andaste de táxi sozinha pela primeira vez, provavelmente porque sempre tiveste quem te transportasse. A perda da tua mãe mudou a tua vida?
Sim. Nunca precisei de sair da minha zona de conforto até ao dia em que a minha mãe morreu, há quatro anos, à porta do meu trabalho. Era um privilégio fabuloso tê-la sempre ali, ela vivia para mim. Levei um estalo da vida gigante quando ela desapareceu. O meu mundo desabou, tive de me readaptar a fazer uma série de coisas sem ela. As pessoas pensam: “coitadinha, já não bastava ser deficiente agora ainda perdeu a mãe!”. A morte da minha mãe foi de facto a única coisa realmente grave que me aconteceu, o resto não. Mas então, vamos lá aceitar e dar a volta. Há que seguir em frente. Para vir de táxi sozinha desta vez, tive ontem pessoas a ligarem-me a perguntar: “mas o teu pai não te pode ir lá pôr?”. Os meus amigos odeiam, por exemplo, saber que eu estou numa esplanada do café sozinha. E eu que estive tanto tempo a emancipar-me da minha família, e fui forçada isso quando a minha mãe morreu, agora brinco e digo que tenho de me emancipar dos meus amigos. (risos) A minha atitude perante isto é de enorme gratidão. O facto de ter tão boas pessoas, genuínas, que me ajudam por verdadeiro prazer e não por obrigação é uma bênção na minha vida.
As rodas são só um detalhe?
A única deficiência é a atitude negativa que as pessoas têm perante a vida, o resto são pormenores. Se eu não tivesse estas rodas, e não tivesse este corpo, provavelmente não conseguia chegar onde eu cheguei e alcançado as pessoas que alcancei.
E, se calhar, tinha uma vida muito mais banal, vazia e fútil. Tento concentrar-me sempre nas coisas que, dentro das minhas limitações, consegui fazer. Se no final de uma palestra alguém vier ter comigo e me disser que lhes mudei um bocadinho o dia, já ganhei. Quando vives para os outros e quando percebes que tens de servir um propósito que é maior do que tu, não há palavras para descrever essa alegria. A cadeira é um detalhe, as dores físicas que tenho todos os dias são um detalhe.
Tens dores todos os dias?
Tive mais de 90 fraturas nos ossos até aos 14 anos, quando nasci vinha já com as duas pernas partidas. A osteogénese imperfeita está estável, tenho uma fragilidade nos ossos que se mantém, mas vivo diariamente com as mazelas dessas fraturas todas. Para azar, tenho também uma artrite psoriática. Ou seja, tenho sempre dores e tenho de tomar anti-inflamatórios todos os dias.
Mas esta entidade criadora que me fez dotou-me desta capacidade fantástica de me conseguir esquecer de todas as coisas más. Eu recuso-me a ter dias maus, tenho dias bons e menos bons. Ganhei, com tudo isto, muita paciência e capacidade de tolerância.
As pessoas nem desconfiam, porque estás sempre com este sorriso na cara.
Acredito piamente que a dor é algo que tu não controlas, mas o sofrimento é opcional. Eu não me deixo ficar na dor. Continuo a agradecer, até as dores. Não posso mudá-las, posso decidir o que vou fazer com elas. Não pergunto porquê à dor, pergunto para quê.
Acreditas que existe uma espécie de destino e que as coisas não acontecem por acaso?
Sim, completamente. Não há coincidências. Sou cristã convicta, e essa crença fez com que, por exemplo, nunca me considerasse um acidente do cosmos. Isso dá-me uma segurança no agora, e uma necessidade de retribuir a oportunidade que Deus me deu de estar aqui. Não podia fazer de conta que sou normal e continuar, por exemplo, a trabalhar das 9 às 17h. Isso de ser normal..
(risos) Nós somos todos feitos para ser diferentes. Mas a verdade é que, se eu faço certas coisas, muitas pessoas sem rodas acabam por pensar: bom, se ela consegue, eu também consigo.
E não te irritam as pessoas que se queixam e lamentam por tudo e por nada?
Já tive mais intolerância a isso. Agora não, gosto de ajudar. O meu pai dizia que tinha de abrir uma linha de valor acrescentado, porque passava a vida a dar “consultas” aos meus amigos que me ligavam com os seus problemas. Nunca fui moralista nem a que dá grandes conselhos. Na verdade, só o simples facto de aparecer, de aquela pessoa perceber o que eu tive passar para estar ali e como foi o meu dia, bastava para que quem estivesse em baixo relativizasse os seus problemas. É quase uma forma de fazer psicanálise sem a fazer. Por isso é que eu costumo dizer que todas as pessoas deviam ter um amigo “Def” na vida! É só vantagens: estacionam nos sítios para deficientes, não estão nas filas, apanham uma série de descontos, e estão com a auto-estima um bocadinho mais alta. Já sei, vamos todos pedir ao Pai Natal um amigo “Def”! (risos)
Qual é a palavra favorita do teu dicionário?
Ah, isso é fácil, é obrigada! Eu acordo de manhã, abro os olhos e a primeira coisa que eu vejo é esta cadeira elétrica. E depois penso: obrigada por mais este dia.
Tens uma autoconfiança incrível, és a antítese da “coitadinha”.
Sou completamente contra a ideia de que os deficientes ou são coitadinhos ou são uns heróis. Se eu puder ser um exemplo de superação para os outros, melhor. Mas a autoconfiança pode ser perigosa, pode passar uma mensagem errada. Não quero que pensem que sou uma convencida, tipo “eu sou uma Def maravilhosa!”. Mas, sim, tenho uma personalidade forte.
E isso veio da educação?
Foi, primeiro que tudo, aceitação. Fui muito amada e muito desejada, o que me ajudou a aceitar-me como sou. Transformei as minhas fragilidades em forças. Em miúda era uma mandona, dizia aos putos vizinhos: “Eu não posso andar a correr, vocês todos sentem-se no chão e vamos brincar às bonecas aqui em baixo”. E eles obedeciam todos, imagina! Aprendi desde cedo a diferença entre humilhar-me e ser humilde. Educo-me, porque isso também se educa, a seguir em frente. Mesmo quando ouves pessoas que estão ao teu lado no elevador e dizem: “mais valia que Deus a levasse”. Doeu, foi das coisas mais difíceis que ouvi, mas sofri mais pela pessoa que estava comigo. Detesto a crueldade, claro. Mas sigo em frente, encaixo e tento pensar no que ganho com isso.
Como é que, nesta conjuntura, tiveste coragem de te demitires para te lançares por conta própria?
Obrigada é a minha palavra favorita, mas a gratidão também te pode paralisar. Eu estive oito anos na Valor Sul e era tão grata àquela oportunidade que me deram e à confiança que me depositaram em mim, que me ajudou a comprar a minha casa e tudo o que tenho, que não era capaz de sair dali apesar de estar estagnada. A morte da minha mãe à porta do escritório acabou por me ajudar a decidir. A vida tomou a decisão por mim. Senti que era aquele o tempo de dar o salto.
Há algum segredo para lidar com as adversidades da vida?
Ter fé, seja em Deus, no mundo, em nós próprios ou nos outros. Voltarmo-nos não para os porquês mas para os para quês. E aceitar.