Nem sempre os reconhecemos na rua, mas podemos ter uma ideia do seu mundo interno através do Zé o jovem com a síndrome de Asperger (SA) da novela Coração d’Ouro, na SIC ou do mais novo dos filhos da família Braveman, na série Parenthood, onde os atores Cristóvão Campos e Max Burkholder dão corpo e rosto a quem vive com esta perturbação do espetro do autismo. O facto de terem comportamentos repetitivos, dificuldades em interagir socialmente, ou um discurso bizarro e rigidez de pensamento, não impede os diagnosticados com a síndrome de serem adultos felizes e autónomos. As revisões recentes na classificação da perturbação levaram várias associações a questionar se se trata realmente de uma patologia ou se pode ser enquadrada no contexto de neurodiversidade (como se refere num artigo recente da revista The New Yorker).
Na prática, alguns empresários que foram pais de crianças com a síndrome tomaram consciência do seu potencial criativo. Enquanto adultos, muitos deles tornaram-se capazes de ocupar altos cargos sem que as suas peculiaridades sociais façam a menor diferença. A ONG dinamarquesa Specialisterne, fundada por Thorkil Sonne, foi a primeira no mundo a investir na inserção profissional de pessoas com Asperger. Seguiu-se a Alemanha, onde a empresa tecnológica Auticon tem dois terços do pessoal diagnosticados no espetro autista a exercer funções de consultoria. Há três anos, no mesmo país, a SAP AG também começou a recrutar, com bons resultados na eliminação de falhas de software de gestão: não espanta, por isso, que a meta seja atingir um total de 650 efetivos até 2020. Em abril do ano passado, a Microsoft oficializou um programa-piloto com o mesmo fim. Recursos humanos com este perfil não têm défices cognitivos nem de linguagem e podem apresentar capacidades intelectuais acima da média. Chamam-lhes “aspies”, ou autistas de alto nível, e o seu futuro avizinha-se promissor, sobretudo na área da programação e em funções que exigem pontualidade e gestão de detalhes.
PEQUENAS VITÓRIAS
“São pessoas com um sentido de humor peculiar e capacidades específicas, que aos outros parecem estranhas, mas com capacidades reflexivas distintas e picos de talento, como uma capacidade de foco acima da média”, esclarece Patrícia de Sousa, diretora técnica do projeto Casa Grande, em Lisboa, criado há dois anos para acompanhar jovens diagnosticados com SA em programas de empregabilidade. Os 27 que aqui são acompanhados beneficiam de tutoria e aprendem competências em ambiente profissional real. Se comparada com o que se faz lá fora, a resposta da Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger (APSA) é uma gota no oceano, mas Patrícia de Sousa orgulha-se do que já foi conseguido: “Temos protocolos com a REN, a Quinta d’Avó (fábrica de produtos gourmet), o Arquivo de Lisboa e a Accenture, só para citar algumas.” Porém, ainda há muito a fazer, confessa a psicóloga da APSA, já que o envolvimento das empresas ainda se encontra numa fase embrionária: “Temos contactos com a Microsoft Portugal e o nosso grupo clínico colabora com vários centros de neurodesenvolvimento, com a intenção de fazer um levantamento de estímulos perturbadores do ambiente de trabalho (casos dos open space) e sugerir alterações que sejam viáveis.” A mudança terá que passar, também, pela sociedade, ainda pouco informada sobre como é estar na pele de uma pessoa com Asperger.
UMA MENTE DIFERENTE
Em criança, Oliveiros Cristina não falava com os colegas do infantário e, antes mesmo de ingressar na escola, era com agrado que registava de cor o nome das capitais dos países que o pai lhe ia mostrando. Tinha 11 anos quando recebeu o seu primeiro computador e formou-se como engenheiro de software, tendo concluído o mestrado com a honrosa média de 17 valores. Nunca se sentia sozinho, bastava-lhe ter livros e viajar. Não fosse a dificuldade em socializar, que o fazia sentir-se um ET, e nunca teria pedido ajuda especializada, aos 30 anos, altura em que confirmou o diagnóstico. O que o perturbou realmente foi a forma como o viam no meio académico e profissional. “No primeiro somos detestados por termos as melhores notas e nas entrevistas de emprego essa parte importa menos do que as competências sociais”, admite o algarvio, na sessão em Face Time realizada a partir da sua casa, em Galway, na Irlanda, o país onde acabou por encontrar a realização profissional. Há um ano chegou a realização pessoal, quando casou com a luso-brasileira Michele, uma fisioterapeuta de 33 anos que conheceu no site de encontros Meetic.
Aos 43 anos, Oliveiros trabalha há três como software designer numa empresa de telecomunicações. Das entidades empregadoras que lhe abriram portas, só pode dizer o melhor: “Já tive três chefias diferentes, um irlandês e dois texanos, todos familiarizados com a Síndrome de Asperger, que agradeceram a minha frontalidade quando revelei a minha condição na entrevista.” Uma surpresa que em nada se compara a algumas das reações obtidas no país natal: “Chegaram até a dizer-me ‘não queremos gente doida’.” A postura está nos antípodas da realidade de Silicon Valley, na Califórnia, “onde a incidência de SA nas crianças é de 10 por cento”. Ou do universo israelita, em que as forças de defesa requisitam jovens com SA para análise minuciosa de fotos de satélite. Oliveiros remata: “Há muito trabalho para dar a um Asperger.”
Esperança
Uma pesquisa internacional revela que é possível manipular o gene Shank3, associado ao autismo, e reverter a comunicação deficiente ao nível neuronal, com mudanças positivas no comportamento e, mais especificamente, nas interações sociais. Coordenado pelo investigador Guoping Feng, no MIT, nos Estados Unidos, e publicada na revista Nature, o trabalho contou com a colaboração da cientista Patrícia Monteiro, do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. Embora as mutações deste gene ocorram em apenas 1% dos casos de autismo e o estudo não tenha sido realizado com humanos, os resultados afiguram-se promissores e podem marcar o início de um caminho para novas terapias de tratamento de circuitos neuronais humanos, mesmo quando já se encontrem na fase adulta. Estima-se que existam 40 mil portugueses com a Síndrome de Asperger, na maioria rapazes.