No plano das intenções é muito claro: a reabilitação da Baixa do Porto só faz sentido se trouxer novos inquilinos, de preferência jovens, e se conseguir manter, senão todos, pelo menos uma parte dos atuais residentes. Mas das intenções à realidade vai uma enorme distância. A “febre do turismo” tomou conta dos proprietários e investidores que espreitam a oportunidade de abrir novas unidades hoteleiras ou alojamentos locais – os chamados “hostels” – e a pressão sobre os inquilinos e os pequenos comerciantes para que saiam é cada vez mais forte.
“Jorge” fala mesmo em “bulling imobiliário”. Dono de um estabelecimento comercial na Ribeira, que pede para não identificar bem como o seu verdadeiro nome, fala das constantes visitas de advogados que se apresentam como representantes dos novos proprietários do prédio e que, de forma discreta, o “aconselham” a sair. “E isso é bulling”? – pergunto. Sim, responde “Jorge”, “na medida em que exercem violência psicológica com ameaças feitas de forma educada mas que não deixam de ser ameaças”.
Desde que o anterior senhorio faleceu, “Jorge” deixou de saber a quem o prédio pertence. Guarda religiosamente todos os papeis de uma relação contratual de décadas, mas sente que de pouco lhe valem. “Estou a lidar com uma empresa muito forte, poderosa, que quer fazer um investimento e tem o aval das entidades competentes” – desabafa o comerciante.
Pressão idêntica sentiu já José Silva, cabeleireiro de senhoras com salão montado há 53 anos na Rua Mouzinho da Silveira. Vive sozinho nas traseiras do salão, num prédio que apresenta evidentes sinais de degradação. “Eu nasci aqui, andei a jogar aqui à bola na rua, andei aqui a correr atrás dos carros elétricos e não quero que me façam o que fizeram à minha irmã que a mandaram para a beira da Via Norte”. De cigarro nos dedos e revolta na voz, José Silva diz que já foi abordado por um arquiteto que lhe ofereceu, em nome do proprietário do prédio, um apartamento na Rua dos Mártires da Liberdade, no Porto. “Recusei, claro! Não me cabia lá nada das minhas coisas”, esclarece.
Histórias como a de José Silva e “Jorge” chegam, com cada vez mais frequência, à secretária do presidente da Junta de Freguesia da Zona Histórica do Porto, que segue, com apreensão, o esvaziamento do centro da cidade. Há trinta anos, a população adulta das freguesias de Cedofeita, Sé, São Nicolau, Vitória e Santo Ildefonso rondava os 105 mil residentes. Hoje em dia fica-se pelos 30 mil. O diagnóstico da António Fonseca é claro: “Se nós perdemos esta população daqui perdemos – contrariamente ao que se pensa – a parte mas atrativa para o turismo que é a nossa cultura local”.
Para travar o processo de gentrificação da Baixa do Porto – termo que designa a valorização de determinada zona urbana com o consequente afastamento dos habitantes locais -o presidente da Junta propõe o estabelecimento de quotas para moradores, solução já experimentada noutras latitudes mas que não colhe a simpatia do presidente da Câmara do Porto, avesso a modelos de proibição. Rui Moreira, que em tempos presidiu à Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU), defende “políticas pró-ativas que façam com que as pessoas queiram viver outra vez na Baixa”.
O problema, responde António Fonseca, é a enorme especulação imobiliária a que se assiste, com “espaços que poderiam ser arrendados por 300 ou 400 euros e que estão a custar 1000 euros”.
Rui Moreira reconhece que “temos de ter cuidado para que o turismo não expulse os habitantes tradicionais porque isso iria derreter a cidade e então, sim, teríamos uma Disneylandização do Porto”.
“Jorge”, o comerciante do início desta história, resume numa frase o sentimento de muitos dos que ainda resistem na Ribeira: “agora que esta zona estava a ficar boa e próspera é que nos tentam puxar o tapete debaixo dos pés”.
Carlos Rico / Grande Reportagem SIC