Há uma médica sedutora e a sua conturbada relação com o sexo oposto. Um atirador de elite, vítima de colapso, após uma missão de que resultou a morte involuntária de uma criança. A jovem competidora, cujo acidente parece esconder pensamentos suicidas. E o casal conflituoso, incapaz de decidir se quer ou não a tão planeada gravidez do segundo filho.
O que têm em comum Laura, Alexandre, Sofia, Jorge e Ana? O encontro semanal, sempre à mesma hora, no gabinete de consultas do psicoterapeuta Mário, ele próprio a braços com questões conjugais e parentais. E há, ainda, a supervisora dele, a psicóloga Graça, com quem se encontra às sextas-feiras, para pensar em conjunto os casos clínicos que acompanha.
Se ainda não está a par das histórias dos protagonistas de Terapia, fica a saber que a nova série diária da RTP1, estreada no passado dia 4, foi visionada, nesse dia, por 208 mil espectadores. Trata-se da adaptação do original israelita Be’tipul, criado por Hagai Levi no formato de cinco noites por semana e replicado com sucesso noutros países. Nos Estados Unidos, In Treatment, do canal HBO, acumulou vários prémios e o ator Gabriel Byrne venceu o Globo de Ouro para Melhor Ator em Série Dramática.
Ao longo de nove semanas, ao final da noite (23h20 na transmissão em direto e disponível no site da estação pública e via app), um naipe de atores famosos que os portugueses se habituaram a ver nas novelas, no teatro e no cinema, dá corpo às personagens que, em 45 episódios, se revelam nas sessões de psicoterapia.
‘Psis’ no divã
“A qualificação da ficção nacional é uma aposta de risco que está a ser ganha”, congratula-se o diretor de programas do canal, embora consciente de que o produto se destina a um público restrito. Daniel Deusdado refere-se às audiências da primeira semana de exibição – 4,7% a 5% – e aos comentários favoráveis recebidos, muitos de pessoas que só tomaram conhecimento de Terapia através das redes sociais. Viram e ficaram fiéis. Pormenor: vários são, eles próprios, psicólogos clínicos.
Não é de estranhar que assim seja, já que estamos a falar de uma profissão com escassa visibilidade a nível público (no Serviço Nacional de Saúde o número de ‘psis’ não vai além dos 601, segundo a Ordem dos Psicólogos, com um rácio de um para 12 515 habitantes, bem abaixo das recomendações internacionais, que sugerem um para 5 mil). No privado, os valores pagos pelas consultas não têm sequer direito a dedução nos impostos, como despesas de saúde.
Neste cenário, até que ponto quem vê se identifica com os ‘pacientes’ (através de Soraia Chaves, Nuno Lopes, Catarina Rebelo, Filipe Duarte e Maria João Pinto)? Ou, melhor ainda, com os ‘psis’ (Virgílio Castelo e Ana Zanatti)?
“A grande questão da série é mostrar para que serve a (psico)terapia”, assegura Virgílio Castelo, sem esconder o seu entusiasmo pela série que tinha debaixo de olho há alguns anos. Parte da inspiração para o papel deveu-se à memória que ainda tem, muito viva, do seu próprio processo terapêutico, tinha ele 42 anos. “O Mário interessa-se genuinamente em saber se aquilo que faz, mais por meio da relação estabelecida com as pessoas do apenas através da técnica, se as ajuda ou não. Essa questão atravessa todo o discurso que ele tem com a supervisora.”

O psicanalista Filipe Sá, sobre asérie: “Desmistifica a ideia de que [a psicoterapia] é para malucos”
Luis Barra
Psicoterapia a nu
Até que ponto a ficção pode dar visibilidade e crédito ao trabalho clínico? para responder à questão, nada melhor do que interpelar diretamente ‘psis’ especializados na área, mais concretamente, psicanalistas. Isabel Leal, que exerce a profissão em paralelo com a investigação e a docência, há várias décadas, duvida que a série seja mais elucidativa que os esforços das classes profissionais e mostra algumas reservas, face ao que viu: “Embora a série se chame Terapia – devia ser psicoterapia – e se desenvolva em sessões, acaba por ser mais sobre um psicoterapeuta em crise.” No seu entender, essa “não é, de todo, a melhor maneira de credibilizar a atividade psicoterapêutica, que deve estar centrada nos pacientes, nas suas histórias, e não nos terapeutas”.
Filipe Sá, que também viu a série americana, assume uma posição diferente, pela positiva . “Desmistifica a ideia de que é para malucos.” Na realidade, são as pessoas comuns, com a vida mais organizada, que investem neste tipo de intervenção, “até por terem de sustentar economicamente um processo longo e dispendioso”. O professor e psicanalista, em clinica privada há duas décadas, considera pertinente que a história do terapeuta faça parte do enredo. À luz do modelo relacional da escola americana, que aposta na intersubjetividade e está a ser importado para Portugal, a pessoa por trás do clínico “condiciona mas também enriquece a relação terapêutica”. E é por isso que ele deve estar atento à sua dinâmica interna e analisar isso na supervisão, “senão pode confundir coisas suas com as do paciente e é um terapeuta de risco”. Ou seja, fica exposto a falhas éticas. Depois, há que ter a noção de que também os profissionais de ajuda estão sujeitos às vicissitudes da vida, como tão bem ilustra o filme O Quarto do Filho (2001), de Nanni Moretti, em que o psicanalista deixa de exercer a profissão após a morte do filho.
Um lugar seguro
Sobre se a ficção espelha o real, Filipe admite que a maior parte das sessões (duração média de 50 minutos) têm mais tempos mortos, mais silêncios e incoerências, sendo menos organizadas do ponto de vista narrativo. Em certa medida, “tal pode levar as pessoas a supor que não têm perfil para fazer terapia pela palavra, caso se comparem com os pacientes da série”. Aí, importa lembrar que estamos no registo ficcional, pleno de carga dramática e diálogos mais expressivos. Em ultima análise, as pessoas procuram, continuam a procurar, “alguém que as escute sem julgamento nem grande orientação, num local seguro, onde possam ser aceites e ter liberdade de expressão”, remata.

Ana Teresa Sanganha, psicanalista: “Mário é um psicólogo que se especializou em psicoterapia, um aspeto que não é claro para a maioria das pessoas”
Ana Teresa Sanganha, que exerce em Lisboa e Ponte de Sor, congratula-se pelo facto de, pela primeira vez, com rigor e dedicação, o entretenimento televisivo “dar ao telespetador a possibilidade de ter uma noção do que pode passar-se dentro das paredes do consultório de um psicoterapeuta, a penetrar no universo das emoções e da intimidade, num ambiente contentor e autêntico”. Mário é um psicólogo que se especializou em psicoterapia, “um aspeto crucial que não é claro para a maioria das pessoas”, e é por isso que ele recorre a um terapeuta com experiência superior, que o supervisiona, que o ajuda na leitura dos casos. “Quando me perguntam como é que a terapia pode ajudar eu costumo responder ‘É sempre melhor entrarmos na estrada sabendo onde estão os buracos; o caminho da verdade não é o mais fácil, mas é o mais libertador’.”