Em Cateura, no Paraguai, há um mundo de esperança a céu aberto, com ruas calcetadas de plásticos coloridos e paredes de casas construídas com materiais reutilizados. É aqui, neste local improvável e inesperado, que nasce o projeto da Orquestra de Instrumentos Reciclados. “O mundo manda-nos lixo, nós devolvemos música”, diz Favio Chávez, um engenheiro ali colocado para dar um fim “digno” ao lixo.
O som de uma guitarra clássica vem de duas latas de doce, um violino nasce através de uma lata de tinta, uma assadeira e um garfo. Desta forma, uma orquestra completa, com saxofones feitos de canos de água e contrabaixos feitos de bidões de óleo de automóvel e colheres de pau, entoa My Way, de Frank Sinatra. E isso inspira-nos, surpreende-nos e comove-nos.
Mas a história não pode ser contada assim. Cateura é uma cidade construída em cima de uma lixeira a céu aberto, um aterro assustador, com um cheiro fétido, onde as crianças correm descalças e, segundo François, um voluntário ali colocado há mais de um ano, só “estão a salvo do dengue porque o mosquito portador da doença precisa de águas limpas para se reproduzir”.
Por uma questão de comodidade, os gancheros (aqueles que andam de gancho, a apanhar o lixo na rua), e respetivas famílias, decidiram construir ali as suas casas, em cima do lixo. Hoje, já lá vivem mais de 8 mil pessoas. Tudo aquilo de que Cateura precisa chega “empacotado” em grandes camiões. E é de graça: a cidade de Assunção encarrega-se de enviar-lhe, religiosamente, 1 500 toneladas de lixo por dia.
Um violino vale mais que uma casa
Esgravatar na sucata é uma forma cruel de se viver, em Cateura, mas, ao mesmo tempo, é também uma fonte de esperança. Uma radiografia velha pode transformar-se num tambor, uma lata numa flauta e uma simples rolha de uma garrafa na alma de um violino.
Todos os dias, dezenas de pessoas, esmiúçam as montanhas de desperdícios à procura de coisas que tenham valor para vender. A chegada do camião do lixo é um dos momentos altos do dia.
A alma deste projeto, Favio Cháves, não se considera músico, embora se dedique, a tempo inteiro, à orquestra. E explica os fundamentos deste projeto com uma clareza inquietante: “O nosso objetivo é que estas crianças façam parte de um processo. Num lugar onde um violino vale mais que uma casa, tivemos de arranjar maneira de lhes ensinar música sem lhes dar instrumentos… senão vendiam-nos.” Este homem, que conduz o grupo com uma guitarra de lata e uma batuta feita com um arame e uma rolha, deixou de trabalhar embalado pelo sonho de mudar a vida de toda uma comunidade.
Desde o início do projeto, todos os materiais são integralmente reclicados, transformando literalmente o lixo de uns no tesouro de outros. Por vezes, é preciso esperar pela peça certa, ainda em falta. Mas nunca por muito tempo. “Às vezes esperamos ansiosamente que os camiões tragam aquilo de que precisamos, mas nunca há problema: a cidade trata de nos enviar tudo.” Hoje, toda a população de Cateura está envolvida na Orquestra dos Istrumentos Reciclados, como refere Favio, orgulhoso: “Há pais que deixaram de consumir drogas para irem, sóbrios, aos concertos dos seus filhos. Através da música, estamos a tentar construir um mundo melhor.”
Coca-Cola? Não, obrigado
Tanya tem 12 anos e toca num violino feito de latas, parte de uma placa de madeira retirada de uma palete de transporte de alimentos, um pente e um garfo que, outrora, poderá ter estado sobre uma mesa de um homem poderoso. “Tocar com um instrumento feito de lixo é mais difícil, porque desafina mais rapidamente… um dia gostava de ter um violino a sério”, diz, esperançosa.
Estas 40 crianças continuam a aprender a tocar Mozart, num bairro de lata, mas o mundo inteiro já começou a ouvir falar delas. De tal forma que até a Coca-Cola já os quis patrocinar: em troca, pretendia que todos os instrumentos fossem feitos com latas da marca. Mas Favio Chávez não aceitou porque, assegura, os instrumentos não soariam bem…
Nos últimos meses, a Orquestra dos Instrumentos Reciclados já atuou no Brasil (onde estas crianças viram, pela primeira vez, o mar) e na Holanda. No próximo verão, seguem viagem para Nova Iorque.
Será que o processo de Favio Chávez se manterá genuíno perante o mundo? Ele não pode prometer. Até porque cada vez mais beneméritos querem doar instrumentos a estas crianças e é difícil dizer que não: “Nós não tocamos com instrumentos feitos de lixo porque é exótico. Nós usamos o lixo porque não temos mais nada.”
Esta orquestra não transforma simplesmente o lixo em música. Transforma o lixo em sonhos. E é difícil não acreditar que poderão tornar-se realidade, quando ouvimos quatro dezenas de crianças tocando Imagine, de John Lennon, no meio de um bairro de lata da América Latina.
Uma nota para a Orquestra
Para financiar a produção de um documentário sobre esta orquestra única no mundo, foi lançada uma campanha de crowdfunding na plataforma Kickstarter. O objetivo era conseguir 175 mil dólares mas, em mês e meio, a equipa liderada pelo realizador Graham Townsley recebeu mais do que o solicitado: 214 mil dólares. Com o título Landfill Harmonic, o documentário deverá estrear-se, a nível mundial, no final deste ano. Mas a campanha de recolha de fundos continua: desta vez, para promover projetos semelhantes noutras zonas do mundo e para financiar uma tournée internacional da Orquestra dos Instrumentos Reciclados.
Este texto foi escrito durante uma viagem pela América do Sul numa carrinha pão-de-forma (www.daravolta.com). Acompanhe também em www.visao.sapo.pt/diariosdeviagem