A meio da Rua do Capelão, uma folha A4 branca, junto de uma porta escancarada, anuncia cortes de cabelo a 5 euros. Mas o preço não é o pormenor mais surpreendente desta modesta barbearia. Lá dentro, imagens da Nossa Senhora de Fátima partilham as paredes de azulejo com representações de Amba Maa, a deusa hindu de oito braços responsável por manter a ordem moral. Cachecóis da seleção portuguesa de futebol estão pendurados ao lado de cartazes de filmes indianos. A estranha mistura é rematada por luminosas decorações de Natal.
No centro deste cenário kitsch, no bairro da Mouraria, um jovem indiano dá tesouradas rápidas no cabelo preto de um paquistanês. À porta, um homem de cabelo branco espera pela sua vez. “Já aqui venho desde que ele abriu isto. Por este preço…”, diz António Augusto Santos, 79 anos. “E o rapaz trabalha bem.” O “rapaz” é Miteshkumar Maisuria, 29 anos. Chegado a Portugal há dois anos e meio, logo decidiu aventurar-se a inaugurar uma barbearia sem fronteiras. Afinal, o cabelo é mais ou menos igual em todo o lado. Não havia nenhuma razão para fazer como os seus conterrâneos, que abriram negócios apontados aos imigrantes. A aposta resultou: estrangeiros e alfacinhas passaram a cruzar-se na sala de espera de Miteshkumar, com a naturalidade de quem nunca fez outra coisa. A barbearia da Rua do Capelão é o símbolo acidental da nova Mouraria – um bairro que junta, numa exótica harmonia, novos e velhos, nativos e forasteiros, ricos e pobres, iletrados e doutores. Tudo sem descaracterizar o bairro lisboeta nem beliscar a sua autenticidade.
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O regresso do orgulho
Nos anos 80 e 90, durante o auge do fenómeno da heroína, a Mouraria ganhou má fama. Traficantes fizeram-se donos do bairro, toxicodependentes e prostitutas deambulavam por todo o lado, moradores eram constantemente assaltados. A decadência notava-se no lixo espalhado pelo chão, nas seringas abandonadas, nos carros que atafulhavam as estreitas artérias. Entretanto, a crise das drogas duras acalmou, a Câmara passou a dedicar mais atenção à zona e a sociedade civil mexeu–se. Em 2008, alguns moradores formaram a associação Renovar a Mouraria, com o objetivo de chamar a atenção dos agentes políticos, promover a inclusão dos imigrantes e organizar atividades culturais e de lazer. Para que as pessoas voltassem a ter orgulho no seu bairro. “Conseguimos chegar à população e fazer com que voltasse a ter autoestima”, congratula-se Nuno Franco, 53 anos, um dos fundadores da associação, que sublinha a importância do projeto de requalificação urbana iniciado há dois anos pela autarquia. “Hoje, o bairro está limpo, organizado e seguro, e as pessoas sentem-se felizes.”
Ao mesmo tempo que o bairro se animava, ficava também mais colorido. Paquistaneses, indianos, bengalis, nepaleses, chineses, africanos e europeus invadiram–no. Os asiáticos ficaram, sobretudo, perto do Martim Moniz, que se transformou numa pequena asiatown lisboeta. Mas alguns arriscaram-se a integrar-se no coração da Mouraria, fazendo companhia aos portugueses e aos franceses e ingleses que se mudaram por paixão. Ali Mubark, 35 anos, foi um desses aventureiros com coragem a dobrar (para mudar de país e para abrir um negócio longe da praça onde pululam os seus). Há oito meses, o paquistanês comprou um minimercado portuguesíssimo, e assim o manteve. Os clientes, a maioria idosos que vivem, há décadas, no bairro, continuaram a fazer as suas compras da mesma forma. E Ali adaptou-se aos costumes – até vai levar as compras a casa das pessoas mais velhas. “Só tenho produtos e clientes portugueses. Prefiro assim: lá em baixo, já há muitas lojas paquistanesas.”
Uma aldeia na cidade
O minimercado encontra-se numa das zonas mais nobres da Mouraria: o renovado Largo de São Cristóvão. Na porta ao lado, Ali tem a companhia da loja de produtos vintage de Marie Gabrielle de Saint Venant, uma parisiense que conheceu o local há cinco anos, como turista, e decidiu mudar-se para o bairro.
A história desta francesa não é única. A menos de cem metros, no Largo dos Trigueiros, fica o estúdio fotográfico da londrina Camilla Watson, com uma história semelhante. “Conheci a Mouraria há seis anos, quando parei em Lisboa no regresso de um trabalho para a Unicef, em São Tomé e Príncipe”, recorda. “Adorei o bairro e, por curiosidade, liguei para o número de telefone de uma casa que estava à venda. Nem acreditei quando ouvi o preço. Lisboa deve ser a última capital da Europa onde é possível viver no centro por tão pouco dinheiro.” A inglesa, de 45 anos, diz ter sido atraída pela multiculturalidade e pela simpatia das gentes. “Ao início, só pensava: ‘Espero que gostem de mim’. E gostaram mesmo. Todos me receberam bem.” Camilla respondeu com ternura ao carinho: passou a tirar fotografias aos moradores, a imprimi-las em contraplacado, a preto e branco, e a espalhá-las pelas ruas. Mas nem só de estrangeiros se faz a nova Mouraria.
Nos últimos anos, o bairro começou a ser procurado por jovens portugueses, quase todos licenciados, em busca de identidade e inspiração. E encontram as duas, nesta aldeia dentro da cidade. “Digo ‘Bom dia’ umas trinta vezes, todas as manhãs. Estendo a roupa e a vizinha da frente põe-se a conversar comigo. É uma família”, garante a tomarense Fátima Garcia, 30 anos, licenciada em Sociologia, adotada pelo bairro há seis anos e, desde outubro, dona da Mãos à Dobra, uma loja de origami paredes meias com o estúdio de Camilla Watson.
A invasão foi mais do que pacífica. “A gente nova, antes, comprava casa nos subúrbios. Agora, quer comprar aqui”, congratula-se Laurinda Costa, 60 anos, há 14 anos a explorar o restaurante O Trigueirinho. “E assim que chegam, as pessoas ficam tão vaidosas do bairro como nós”, acrescenta a irmã, Cecília Costa, 56 anos.
A popularidade da Mouraria também ajudou a recuperar o orgulho perdido. “Vem aqui gente de todo o mundo. As pessoas gostam disto”, assegura António Pais, dono da tasca Os Amigos da Severa, mesmo ao lado da barbearia do indiano Miteshkumar. António Augusto Santos, o homem de cabelos brancos que espera a sua tesourada, ouve as palavras briosas do vizinho mas não consegue explicar a paixão alheia pelo bairro. “Talvez sejam as casas pequenas ou as ruas estreitas. Ou, sei lá, se calhar são as pessoas.”