Não tivesse a expressão má fama histórica e poderia dizer-se que houve um “pacto de não agressão” no debate que opôs Mariana Mortágua e Paulo Raimundo, este sábado, 12, a cinco semanas das eleições legislativas. É que de oposição, entre os líderes do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português, houve muito pouco, aqui e ali uma divergência, uma ou outra prioridade invertida para objetivos comuns.
Será portanto caso para afirmar que quando um disse “mata”, o outro disse “esfola”, numa escalada de críticas que teve o seu momento mais ilustrativo – e caricato – quando se entrou no capítulo da defesa. “Ingenuidade é achar que os russos nos vão invadir pelo Porto de Leixões”, chegou a afirmar Mariana Mortágua, enquanto criticava a corrida ao armamento que vê hoje pela Europa, quando ela, na verdade, na sua opinião, tem material suficiente para fazer face às ameaças que possa vir a enfrentar. Provavelmente apanhado de surpresa com imagem tão inesperada, Paulo Raimundo não deixou os créditos por mãos alheias e, em resposta, abriu a geografia: “Os mesmos que se preocupam com os russos a entrar pelo Porto de Leixões, deviam estar também preocupados com a entrada dos americanos pelos Açores.”
Batalha naval à parte, o debate seguiu em velocidade cruzeiro. Talvez Paulo Raimundo tenha tido a capacidade de lançar para cima da mesa amigável, pelo menos neste ringue, frases mais sonoras, ainda que mais propícias a qualquer tempo de antena. “O que propomos são soluções para o país”, logo no início, para mais à frente reforçar com um: “O que importa é a vida das pessoas”. Menos ouvida até agora foi esta: “Quando falamos de uma casa, falamos de uma vida”, o que não deixa de ser uma forma nova e engenhosa de entrar no tema da habitação. Aí, diga-se, Mariana Mortágua foi muito mais incisiva, sobretudo com uma frase, também ela sonora, a propósito de uma bandeira do seu programa eleitoral que, sem surpresa, o PCP/CDU também defende: “Definir um teto máximo para as rendas não resolve o problema da habitação, mas permite baixar as rendas já, agora.”
Como se costuma dizer, muitos eleitores votam com a carteira, não porque nela guardem o cartão de cidadão (já que o de eleitor foi arrumado no armário da História), mas porque a sua prosperidade económica é fundamental. Neste campo Mariana Mortágua e Paulo Raimundo ensaiaram um dueto bem articulado, com muitos milhões que podiam ser retirados a quem deles não precisa para ajudar a quem deles muita falta sente. A líder do Bloco de Esquerda detalhou, numa sequência vertiginosa de números, com alguma casas decimais, todas as virtudes da taxação das grandes fortunas. No que poderá ter sido a única gafe do debate, rapidamente corrigida, Paulo Raimundo disse “eu não ia tão longe”, quando efetivamente quis dizer, como a seguir logo disse, que ia primeiro por outro caminho. Recorrendo a outra frase boa para qualquer tempo de antena, argumentou que a “política é feita de opções” e que há algumas que não compreende, como os benefícios dados aos não-residentes ou o muito que se gasta com as parcerias público-privadas.
Tudo isto que aqui se relata, com a síntese possível, foi dito sem interrupções, com a cordialidade que se esperava. Apesar de diferendos e disputas do passado, Mariana Mortágua e Paulo Raimundo perceberam que estão hoje a jogar um jogo mais difícil, para não dizer perigoso. Enfrentam o apelo ao voto útil de Pedro Nuno Santos e do PS, disputam o mesmo eleitorado e lidam com um outro rival, o Livre, que tem crescido nos últimos atos eleitorais. É um puzzle complexo de identidades e convergências, cuja gestão deverá ser jogada noutros palcos, nomeadamente em outros debates (Paulo Raimundo tem a vantagem de ter debatido com Luís Montenegro, o que não acontecerá com Mariana Mortágua) e na rua, na longa campanha que teremos pela frente.
As principais armas foram, por isso, apontadas ao Governo, mas não tanto como se poderia supor. É verdade que este debate se centrou nas propostas dos dois partidos, mas não seria difícil antecipar que a lógica “um diz mata, outro diz esfola” pudesse ter funcionado bem aqui. Apenas no tema da emigração essa dinâmica sobressaiu com força, mesmo sabendo que o PCP foi contra a extinção do SEF e o BE a favor da criação da AIMA, embora critique o seu funcionamento. “A emigração foi usada como tanque de batalha ideológica pela direita radical e, com isso, levou todos os partidos da direita. E o PS foi por arrasto”, afirmou Mariana Mortágua, para quem a guinada à direita do PS nestas eleições “é o elefante na sala que afinal não é elefante nenhum”. Já Paulo Raimundo valorizou a presença dos emigrantes, sublinhando como são indispensáveis para o funcionamento do país.
Assim sendo, em que ficamos? Pois, não se sabe. É conversa para depois das eleições, até porque, como garantiu Mariana Mortágua, “nestas alturas fala-se sempre muito de matemática”. Até à lavagem dos cestos é vindima e os votos estão muito longe de serem votados, quanto mais contados. O Bloco de Esquerda está disponível para entendimentos, mas estes, acentuou Mariana Mortágua, “dependem das políticas”, frase que poderia ter sido dita pelo líder do PCP. Mas Paulo Raimundo preferiu acrescentar: “O país precisa de tudo menos da continuidade da política que tem vindo a ser seguida e não só por este governo. Estamos disponíveis para um caminho que rompa com o caminho atual.”
Talvez os caminhos de Mariana Mortágua e de Paulo Raimundo, do BE e do PCP/CDU, se separem depois deste debate. Mas durante uma simpática meia hora estiveram sempre do mesmo lado da barricada. Sem agressões.
As frases
“O que está em causa nestas eleições não é só a ética do Primeiro-Ministro, mas também as consequências deste governo, o que fez e ambiciona fazer”, Paulo Raimundo
“Temos um rei louco nos Estado Unidos da América que quer banir a palavra mulher. Mais do que nunca precisamos do feminismo na política”, Mariana Mortágua