“Caminhos do Ensino da Sociologia em Portugal”.
Pode soar algo irónico nas atuais circunstâncias, mas é este o tema da palestra com que Boaventura Sousa Santos deverá encerrar, a 22 de abril, no Porto, o Encontro Nacional de Estudantes de Sociologia. O convite foi aceite pelo sociólogo em fevereiro e, até ao momento, a agenda mantém-se. “Estamos, obviamente, a acompanhar as notícias sobre o caso, a que não somos indiferentes, mas a direção ainda não reuniu para discutir o assunto nem contactamos o professor. Se houver alterações ou novidades, serão comunicadas em breve, uma vez que ainda estamos a finalizar a programação”, referiu à VISÃO Leonor Medon, do Núcleo de Alunos de Sociologia do Porto (NAS), organizador do evento que decorrerá, em grande parte, na Faculdade de Letras da cidade Invicta entre 19 e 22 deste mês.
O anúncio da presença de Boaventura Sousa Santos numa iniciativa pública com estudantes de Sociologia ocorre num contexto em que recaem sobre ele suspeitas de assédio sexual e moral sobre antigas investigadoras do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Na origem da polémica está o artigo As paredes falaram quando mais ninguém o fez, assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom, um dos 12 capítulos que compõem o livro Má conduta sexual na Academia – Para uma Ética de Cuidado na Universidade, editado pela prestigiada editora britânica Routledge há poucas semanas e disponível online desde 31 de março.
Detalhes de um caso
As três autoras, que passaram pelo CES, nunca identificam os alegados agressores sexuais e morais no artigo nem assinalam a instituição em causa, onde terão vivido uma experiência de “abandono institucional” e sido vítimas das alegadas “dinâmicas de poder internas”. Mas todas as pistas que dão, incluindo as referências ao “Professor-Estrela” e ao “Aprendiz”, levaram o próprio sociólogo Boaventura Sousa Santos e o antropólogo Bruno Sena Martins a assumirem, em declarações ao DN, que as mesmas lhes são dirigidas. Ambos refutam tais práticas e comportamentos, dizem-se perseguidos e anunciaram que vão agir criminalmente contra as autoras do artigo. Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom estão, até ver, indisponíveis para comentar o caso na Imprensa, mas o CES, em comunicado, admitiu que é mesmo a instituição visada pelo trio de investigadoras e anunciou a abertura de um inquérito interno, conduzido por uma comissão independente, destinado a identificar “eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas antiéticas referentes naquele capítulo”.
Independentemente da polémica e do desfecho desta investigação, a direção do CES refere que, “nos últimos anos”, tem promovido a respostas institucionais adequadas a estes problemas, entre as quais se insere, desde 2019, a aprovação do Código de Conduta e a Provedoria da instituição, esta destinada a ser usada como canal de denúncias, incluindo queixas anónimas. A “reflexão interna” sobre outras medidas a adotar continuam, segundo o CES, em marcha.
Do Chile, por e-mail
Num longo e-mail remetido a partir de Santiago do Chile esta terça, 11 – onde participa na feira do livro – e dirigido aos professores, atuais e antigos estudantes, o atual diretor emérito do CES refere-se ao caso que envolve o seu nome e o de Bruno Sena Martins como uma “difamação anónima, vergonhosa e vil” por parte das três autoras do artigo. Uma foi bolseira Marie Curie no CES (Lieselotte Viaene) e as outras, estudantes de doutoramento (Miye Tom e Catarina Laranjeiro). “Todos os casos de conduta incorreta referidos no texto por parte de quem seja, se confirmados, devem ser prontamente julgados tanto no CES como nas instâncias judiciais e, como ao tempo era diretor do CES, assumo institucionalmente responsabilidades por eventual negligência que possa ter havido”, assinala o sociólogo.
Boaventura refere ter mantido duas reuniões apenas com Lieselotte Viaene, “uma como seu supervisor do estágio Marie Curie quando chegou ao CES e outra como diretor estratégico do CES, a pedido do diretor executivo, para tentar resolver os problemas do comportamento incorreto e indisciplinado do ponto de vista institucional desta investigadora. O seu comportamento foi de tal ordem insolente e incorreto que o CES acabou por lhe abrir um processo disciplinar e não aceitou que ela indicasse o CES como instituição de acolhimento num projeto de candidatura ao European Research Council. Esta recusa teve como fundamento o comportamento anterior dela no CES. Em suma, esta investigadora foi expulsa do CES”, escreve Boaventura Sousa Santos.
O sociólogo inclui no e-mail a nota de culpa da investigadora, de 6 de junho de 2018, despedida por justa causa da instituição. Na sua opinião, o facto de Lieselotte Viaene ser coautora do artigo na origem do caso configura “um ato miserável de vingança institucional e pessoal”. As críticas do diretor emérito do CES são igualmente dirigidas à editora Routeledge, onde já publicou alguns dos seus livros, por ter permitido a publicação de “um texto tão ardiloso, tão mentiroso no que me diz diretamente respeito, tão mistificador como este de que vos falo. É um texto que tem uma mistura entre um quadro teórico sólido, retirado da literatura que foi produzida no seguimento do Movimento Me Too, à qual se sobrepõe uma informação empírica assente em referências anónimas, boatos e incidentes não identificados e não provados de maneira a poderem ser contestados”. E questiona: “Quem foram os peer reviewers que analisaram este texto? Que tipo de ciência é esta que permite enxovalhar e lançar lama a uma instituição de prestígio e especificamente ao investigador que foi durante tantos anos seu diretor?”, pergunta ainda o sociólogo, que lembra o facto de as três autoras do artigo terem concluído a sua passagem pelo CES com “nota máxima”.
Para ele, haverá, pelo menos da parte da Lieselotte Viaene, “um padrão de comportamento”. E detalha: “Entre setembro do ano passado e o corrente mês de abril recebi pedidos de ajuda de estudantes de doutoramento indígenas da universidade espanhola onde está agora sediado o projeto que o CES decidiu não patrocinar. Sabendo dos problemas que a autora principal tinha causado no CES, pediam-me que as aconselhasse como proceder”, revela. Boaventura cita, na íntegra, mas protegendo a identidade da remetente, um dos e-mails que lhe foi alegadamente enviado por uma das estudantes indígenas da Guatemala expulsas do projeto coordenado por aquela investigadora belga. “Mais de 80 % do pessoal foi vítima de violência. Nenhum dos companheiros agiu judicialmente porque não tinham recursos económicos para enfrentar os custos emocionais de um processo judicial”, refere-se, no suposto e-mail enviado a Boaventura, a quem é solicitada ajuda para denunciar “a loucura desta mulher”. O sociólogo mantém o anonimato da autora do correio eletrónico, mas, adverte, “o seu nome está depositado na direção de CES” e a sua identidade revelada se a mesma autorizar.
Boaventura diz-se disposto a facultar ao CES o nome de todos os assistentes, portugueses, norte-americanos, brasileiros, moçambicanos, angolanos e colombianos com os quais trabalhou ao longo de meio século para que se avalie o seu comportamento. O sociólogo rejeita ainda as descrições de comportamentos menos adequados e íntimos nos encontros anuais no restaurante O Casarão, em Coimbra. “Só mentes perversas podem transformar o mais são convívio entre estudantes e professores e maquiavélicas maquinações de pastores de pobres rebanhos de estudantes. Convido todos e todas a irem ao restaurante ver os quadros de azulejos com os nomes dos estudantes de doutoramento que ao longo dos anos partilharam bons momentos de conversa, leitura de poesia e música”. Por fim, e “independentemente dos procedimentos internos e judiciais que o CES vier a adotar”, o diretor emérito do CES apresentará uma queixa-crime por difamação contra as autoras do artigo, mesmo não tendo sido diretamente visado. O texto enviado por Boaventura teve também versões em espanhol e inglês. A VISÃO tentou obter de Lieselotte Viaene, principal visada por Boaventura, uma reação às suas acusações, mas sem sucesso.
“É inédito denunciar alegadas práticas de abuso em artigos científicos. Seria muito improvável que este texto, apesar da qualidade do enquadramento teórico da abordagem, pudesse ser publicado numa revista científica com filtros rigorosos”, reage, entretanto, Paulo Peixoto, professor da Faculdade de Economia e Provedor do Estudante da Universidade de Coimbra. “O mundo das publicações científicas tem-nos vindo a surpreender pela permeabilidade que tem vindo a ter em relação à publicação de textos cujo rigor científico é discutível. O fenómeno da retração de artigos é o sintoma mais evidente deste fenómeno”, acrescenta o atual presidente da Associação Portuguesa de Sociologia. Dito isto, defende, “todas as denúncias, devida ou indevidamente fundadas em factos, devem ser perscrutadas com rigor, independência e transparência, visando o apuramento dos factos e a atribuição de responsabilidades.”.
Reações da academia
O “caso Boaventura/CES” foi bastante comentado nas redes sociais e motivou reações contrastantes por parte de académicos dos dois lados do Atlântico. “Nos circuitos feministas internacionais já há muito circulavam histórias a respeito do Boaventura. Isso é um recado para acadêmicos assediadores encastelados em seus departamentos e protegidos pela sua reputação: nós sabemos quem vocês são e o que vocês fazem. E nós vamos caçá-los”, escreveu a brasileira Gabriela Caruso no Twitter.
Contactada pela VISÃO, a socióloga e investigadora de temas de género sai em defesa do artigo publicado pelas três investigadoras: “Não é uma denúncia, pois não cita nominalmente as pessoas que cometeram assédio e nem a instituição onde os casos se deram”, explica. O objetivo, continua, é o “de analisar como as estruturas universitárias e departamentais académicas facilitam esse tipo de ação predatória, expõe os estudantes a uma série de vulnerabilidades e blindam os agressores de potenciais consequências”. Para Gabriela Caruso, “faz todo sentido que denúncias utilizem meios não oficiais para encontrar eco na sociedade” e se tal ocorre é porque, segundo ela, “os meios institucionais são incapazes de acolher a vítima, investigar uma denúncia e responsabilizar devidamente os perpetradores do assédio sexual”.
Para esta socióloga brasileira e assumida militante contra o assédio sexual nas universidades, o próprio artigo sugere pistas para lidar com estes casos. Desde logo, “a concentração de poder nas mãos de académicos superstar facilita a ascensão e permanência de indivíduos com condutas inadequadas que nunca são responsabilizados ou punidos, uma vez que a presença de um superstar garante publicações, citações, financiamento e matrículas para as instituições que os abrigam”. O poder que tais académicos têm sobre a carreira dos subordinados “inibe que ações mais contundentes sejam tomadas”. Gabriela Caruso sugere ainda “reformas na gestão académica, departamental e universitária” que incluam “protocolos de prevenção, denuncia e ação em relação ao assédio sexual”. No mínimo, refere, “um protocolo deve garantir que a vítima não precise repetir a diversas autoridades o seu relato”, para além de serem necessárias outras garantias: anonimato, investigação imparcial e inexistência de represálias pela denúncia, para além da necessária responsabilização dos assediadores.
Ex-diretor do CES e atual membro do seu conselho científico, Elísio Estanque recusa referir-se ao assunto em concreto, cujos detalhes alega desconhecer, mas reconhece a sua delicadeza. “À partida, casos de abuso, assédio e ameaça, quando existam, devem ser denunciados às autoridades para que eventuais vítimas sejam ressarcidas e justiça seja feita. No plano formal, é esse o procedimento correto. Porém, como sabemos, a prática concreta na vida das instituições quase sempre diverge do que são as suas regras formais e as proclamações de transparência”, assume. O sociólogo e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra admite a perversidade das lógicas de poder internas que, no seu entender, se “traduzem em silenciamentos (ainda que não sejam impostos intencionalmente) dos elos mais frágeis. Muitas vezes são os próprios indivíduos ou grupos oprimidos que se autoimpõem o silêncio, consequência da fragilidade humana e de relações onde o autoritarismo/ despotismo se combinam com relações paternalistas”, descreve.
Elísio Estanque alerta, contudo, para uma das perversidades geradas pelo movimento Me Too: “Expandiu-se uma cultura da denúncia (anónima) o que permite confundir ou esconder distinções necessárias entre casos efetivos de abuso ou assédio e situações onde se usa a suposta vitimização para desencadear ações de retaliação e de vingança pessoal sem fundamento, apenas assentes no ressentimento. É por isso fundamental distinguir o trigo do joio”, reclama. Apesar de sentir que a academia continua, no geral, “extremamente hierárquica” e a concentrar, muitas vezes, o poder arbitrário “numa única fonte”, o sociólogo reconhece avanços: “Vem tentando responder a tais situações, embora sempre de forma hesitante e sob pressão de movimentos e de uma opinião pública hoje mais sensível, informada e atenta a situações de abuso e violência (de índole sexual ou outra)”, escreve, na resposta enviada à VISÃO. Elísio Estanque considera necessário combater os “múltiplos poderes despóticos” que atravessam as instituições e, adverte, “sabemos bem como as universidades são um terreno particularmente fértil em tal matéria”. Em sua opinião, a resposta eficaz deve fundar-se no respeito pelos direitos de cada um. “Mas isso só se torna coerente quando os ambientes organizacionais forem verdadeiramente democráticos; quando houver espaço para o contraditório e quando as instâncias de regulação vigiarem com eficácia o desrespeito pelos princípios éticos. Os abusos previnem-se e evitam-se com mais transparência e mais democracia”.
*Artigo atualizado às 10.15 de quinta, 13, com o depoimento de Paulo Peixoto.