Costuma-se dizer que um azar nunca vem só. Os “lapsos” do Ministério da Justiça sobre o processo de candidatura de um representante português para a Procuradoria Europeia também não. Nos últimos dias, a polémica tem girado em torno das informações falsas sobre o currículo do procurador José Guerra, contidas numa carta enviada para Bruxelas a explicar a escolha. A ministra tem desvalorizado os lapsos, tratando-os como simples erros administrativos. Só que estes não foram os únicos erros cometidos pelo ministério de Francisca Van Dunem durante o processo de selecção das candidaturas ao cargo.
Quase um ano depois de ter sido enviada esta carta com dados falsos sobre o percurso profissional do procurador, a ministra Francisca Van Dunem foi chamada ao Parlamento para explicar porque não tinha seguido a escolha de um comité de peritos internacional – que tinha colocado em primeiro lugar a procuradora Ana Carla Almeida – e tinha indicado para Procurador Europeu um outro magistrado: José Guerra. Nesse dia, na Assembleia da República, a ministra apresentou uma cronologia do processo de seleção para Procurador Europeu nacional, um documento de seis páginas que foi aliás partilhado com todos os grupos parlamentares presentes e que tentava fundamentar por que razão o governo tinha optado por um candidato que não era o favorito do júri internacional.
E é neste documento, datado de 14 de outubro de 2020, que o ministério de Francisca Van Dunem volta “a meter os pés pelas mãos”. Conta que existiram quatro candidatos ao cargo – três procuradores e um juiz -, mas como só era permitido apresentar três candidatos, o ministério escolheu a sua “short list” de três nomes. O excluído foi o único candidato vindo da magistratura judicial: o juiz José Rodrigues da Cunha. E porque foi este o “eliminado”? A ministra limitou-se a dar a entender que não teria experiência em investigação criminal e descreveu-o assim: “O Governo procedeu a uma primeira seleção, excluindo o candidato indicado pelo Conselho Superior da Magistratura, juiz de direito que exerce desde 2014 funções de natureza mais administrativa e gestionária, como presidente de uma comarca.” Além de não enumerar o que o juiz fez profissionalmente antes de 2014, Francisca Van Dunem cometeu um erro grave no seu CV, que nenhum dos presentes no Parlamento conseguiu detectar: é que José Rodrigues da Cunha não é juiz de direito, a categoria mais baixa da carreira da magistratura judicial (que corresponde aos juízes dos tribunais de 1ª instância), mas sim juiz desembargador, uma categoria acima.
Ou seja, enquanto o currículo do procurador escolhido pelo governo para Procurador Europeu foi empolado, com José Guerra a ser “promovido” a procurador-geral adjunto (quando ainda é apenas procurador) e a líder de investigações que nunca dirigiu, como a do caso UGT, no caso do currículo do juiz excluído do concurso aconteceu exatamente o inverso: José Rodrigues da Cunha foi “despromovido” de juiz-desembargador a juiz de Direito.
Curiosamente, a candidatura do juiz-desembargador do Tribunal da Relação do Porto, que nestes últimos anos desempenhou funções como presidente daquela comarca, foi avaliada e validada por um júri composto por vários elementos do Conselho Superior da Magistratura e que era presidido por Mário Belo Morgado, à data vice-presidente daquele órgão de disciplina. Mário Belo Morgado, que no dia seguinte à demissão do ex-diretor-geral da Política de Justiça, Miguel Romão, e da confusão que se gerou com comunicados, escreveu no Twitter que “a dignidade das instituições e a autoridade democrática do Estado não permitem que dirigentes demitidos usem plataformas e serviços públicos como se fossem quintas privadas”, viria a assumir funções como secretário de Estado Adjunto e da Justiça cerca de uma semana depois de a ministra Van Dunem ter ido ao Parlamento e se ter enganado – mais uma vez – na categoria profissional de um dos candidatos.
E este não foi o único lapso que a ministra cometeu nesse dia na Assembleia da República, quando foi chamada a debater a escolha polémica. Num comunicado emitido nessa data, a ministra assume que o regulamento da União Europeia sobre o processo de seleção destes procuradores europeus impunha uma série de requisitos de elegibilidade, entre eles o que constava da alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º do Regulamento: “Possuir as habilitações necessárias para serem nomeados para o exercício das mais altas funções do Ministério Público no seu Estado Membro”. Ou seja, juízes e procuradores que se candidatavam deviam estar no topo da carreira, algo que não se verificava com nenhum dos candidatos: não havia nenhum juiz conselheiro nem nenhum procurador geral-adjunto.
Nesta fase, a ministra já tinha excluído o juiz-desembargador e estava concentrada nos três nomes apresentados na “short list” enviada por Portugal. Ou seja, nos três procuradores. Francisca Van Dunem assumiu que não se tinha apresentado a concurso “qualquer candidato com a categoria de procurador-geral adjunto, o mais alto grau da hierarquia do Ministério Público”: “E aquele que consente o acesso às mais altas funções no Ministério Público, tal como o impõe o Regulamento. Os três candidatos têm a categoria de procurador da República, a categoria que antecede a de procurador-geral adjunto.” Mas a seguir não explicou por que razão, então, aqueles magistrados foram considerados elegíveis para o cargo se não cumpriam aquele requisito.
Adiantou apenas que o parecer do painel de seleção internacional não era vinculativo (a menos que os candidatos fossem rejeitados) e que, por isso, o ministério preferiu seguir o ranking do Conselho Superior do Ministério Público, entidade devidamente “independente”. O órgão de gestão e de disciplina dos procuradores, recorde-se, decidiu, já depois de saber quem eram os candidatos, avaliá-los pelo critério da antiguidade, ficando então o procurador José Guerra à frente da magistrada Ana Carla Almeida. devido aos anos de serviço. Exatamente o contrário do que tinha acontecido na seleção dos peritos internacionais, que tinha qualificado em primeiro lugar a magistrada que desempenha funções no Departamento Central de Investigação e Ação Penal -DCIAP (e que tem a seu cargo a investigação do caso das golas anti-fumo e investigou uma megafraude relacionada com a obtenção de fundos europeus na Associação Industrial do Minho (AIMINHO)), em segundo lugar o procurador João Conde Correia e, por último, o procurador José Guerra.
O segundo parece ter sido liminarmente rejeitado pelo ministério já na última fase, alegadamente devido à sua menor experiência profissional em ambientes internacionais. É que os candidatos José Eduardo Guerra e Ana Carla Almeida partilhavam “a experiência na área criminal, na direção de investigações e de julgamentos de grandes fraudes e de crimes” que atentavam “contra os interesses financeiros da União”. Ana Carla Almeida era uma “magistrada distinta e com grande proatividade”. A experiência de José Guerra, contudo, “era mais longa” e mais rica em trabalho “em ambiente internacional”, já que teria desempenhado funções no Eurojust “durante mais de dez anos”, justificava a ministra.
A sucessão de erros, lapsos e gralhas é tal que o único dano está longe de ser a demissão do diretor-geral da Política de Justiça, Miguel Romão, e toda a confusão de comunicados que se seguiu. Pelo menos dois dos quatro candidatos prometem recorrer à Justiça para que esta avalie se o concurso foi devidamente conduzido. Depois de a procuradora Ana Carla Almeida ter admitido vir a impugnar o concurso, tendo por base a informação enviada pelo governo com dados falsos sobre o currículo do procurador, foi a vez de o juiz José Rodrigues da Cunha, o primeiro dos quatro candidatos excluídos, avançar à agência Lusa que já apresentou uma ação no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto tendo em vista a impugnação. Entre outras coisas, o juiz-desembargador alega não ter sido informado no prazo devido sobre as razões pelas quais a sua sua candidatura não foi aceite. Aliás, o juiz só terá sabido da exclusão pelos media, no dia em que a ministra da Justiça foi ao Parlamento.
“É um concurso público e, como tal, o juiz tinha de ser informado. Não é só uma questão de cortesia. É uma questão jurídica. Tem de haver um despacho da ministra a dizer porque o excluiu, porque podemos estar perante um caso de abuso de poder”, diz à VISÃO Paulo Pimenta, representante do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, órgão que tem reivindicado que não é possível que um Ministério da Justiça cometa tantos lapsos.