A União Internacional de Advogados (UIA) é uma ONG imensa. Congrega mais de 200 Ordens, Associações e Federações de Advogados de mais de 120 países, representando cerca de dois milhões de profissionais. Foi este mundo que Pedro Pais de Almeida, advogado especializado em assuntos fiscais, liderou durante um ano, o mandato estipulado nos estatutos. Mas Pais de Almeida, 55 anos, trabalha para a UIA há mais de duas décadas. Talvez por isso, atreveu-se a fazer do combate à “escravatura dos tempos modernos” uma das grandes causas da sua presidência – que termina agora, no congresso de 2018 da UIA, que decorre no Porto entre esta terça-feira, 30, e o próximo sábado, 3. Em entrevista à VISÃO, Pedro Pais de Almeida é politicamente incorreto: além de avisar os distraídos colegas de que apenas um país, o Reino Unido, tem leis que reprimem a nova escravatura, manifesta-se contra a legislação europeia relativa à evasão fiscal e ao branqueamento de capitais, porque ataca o segredo profissional dos advogados e o princípio constitucional do acesso dos cidadãos à Justiça. E, quanto aos atrasos dos nossos tribunais, faz revelações muito impressivas…
Porque elegeu a “escravatura dos tempos modernos” como um dos grandes temas da sua presidência?
Só um país no mundo, o Reino Unido, tem leis de combate à nova escravatura, que estão reunidas no “Modern Day Slavery Act”, de 2015. E este fenómeno de violações dos Direitos Humanos tem, obviamente, de mobilizar os advogados.
Isso não tem acontecido?
Entendo que os advogados devem protagonizar um papel muito mais ativo. Desde logo, através das respetivas Ordens, têm de pugnar por leis que ainda não existem, de combate a esta escravatura, que vai do trabalho aos casamentos forçados, da extração coerciva de órgãos às redes de prostituição.
E as vítimas?
Ainda por via das Ordens, considero que os advogados se devem organizar no sentido de prestar assistência pro bono às vítimas desta escravatura, para que sejam indemnizadas pelos danos que sofreram. E os advogados têm, igualmente, de batalhar pela responsabilização dos Estados onde esta escravatura é praticada. Se ela existe em determinado país, é porque esse Estado não cumpriu uma das suas funções fundamentais – a segurança. Não há muito tempo, foi desmantelada uma rede de portugueses que explorava trabalho escravo de pessoas que aliciava no Norte do País e levava para campos agrícolas em Espanha. Isto não acontece apenas em países menos desenvolvidos…
Até onde pode ir o combate dos advogados?
Parece-me que, se os Estados começarem a ser responsabilizados, isso há de motivá-los a estarem mais presentes e a combaterem mais estes fenómenos.
Já em relação aos próprios advogados, lidou, como presidente da UIA, com situações bem difíceis quanto ao exercício da profissão…
É verdade. Quando na Polónia foi aprovada uma lei que passava a competência da designação dos juízes para o ministro da Justiça, o que obviamente se prestava a questões de falta de isenção, de conveniências políticas e por aí adiante, a UIA foi uma das primeiras organizações internacionais a reagir e a enviar uma carta ao à época Presidente da República polaco, mostrando claramente a sua posição. E, de acordo com informações que recebemos da Ordem dos Advogados de Varsóvia, a nossa posição, em conjugação com as de outras organizações e entidades, foi muito importante para o veto presidencial do diploma em causa. Neste momento, a União Europeia (UE) tem em curso um procedimento contra o Estado polaco, e o país arrisca mesmo perder fundos comunitários se não cumprir o Tratado de Roma, ao qual se obrigou quando aderiu à UE. Mas a lei vetada era muito mais violenta do que os aspetos do Estado de Direito que agora se discutem e se encontram na base do procedimento que a UE abriu contra a Polónia.
E a Turquia?
A UIA tem aí manifestado também, e com firmeza, as suas posições. Aliás, um dos campos principais de atuação da UIA, através do seu Institute for the Rule of Law, é obviamente a defesa do Estado de Direito. Sempre que são detidos advogados pelo simples facto de estarem a tentar defender clientes, cidadãos, que o poder instituído considera que não merecem defesa, a UIA intervém. Há uma iniciativa muito importante que o instituto desenvolve, a que chamamos “a defesa da defesa”. Basta fazer uma consulta online e chegar ao site “arrested lawyers.com”. Encontra-se aí uma lista grande de advogados detidos em várias partes do mundo. E a Turquia, claro, aparece nos lugares cimeiros. Com a “defesa da defesa”, a UIA faz o acompanhamento desses advogados detidos – e nenhum Governo gosta que se chame a atenção para violações flagrantes de Direitos Humanos…
A intervenção da UIA inclui as decisões duvidosas do Presidente Trump?
Sim. A 30 de junho, a UIA realizou uma jornada de trabalho no edifício das Nações Unidas, em Nova Iorque, outra vez sobre o papel do advogado face à escravatura moderna. Uma das questões que foi focada estava na altura nas primeiras páginas de todos os jornais e nas aberturas de todos os telejornais – as crianças detidas nas fronteiras dos EUA e separadas dos pais. Na sequência daquela nossa iniciativa, a UIA encabeçou um movimento de muitas Ordens de Advogados que culminou numa declaração que incitava o Presidente Trump a cumprir a decisão judicial que tinha sido proferida por uma juíza, nos termos da qual estavam definidas as condições para a libertação daquelas crianças. Isto foi um movimento em que se congregou uma série de organizações representativas dos advogados no sentido de dizer “o Estado de Direito tem princípios, há uma decisão de um tribunal, o senhor faça o favor de a cumprir”.
Serviu para alguma coisa?
Estou absolutamente convencido de que serviu para aumentar a pressão internacional. O senhor em questão está sempre a queixar-se das “faking news” e da Imprensa que “está contra ele”. Se, além da Imprensa, várias organizações internacionais de advogados chamarem a atenção para violações de Direitos Humanos, isso há de mexer com Trump.
Como está hoje Portugal na lentidão da Justiça?
Continua na pole position europeia. Tenho dois exemplos recentes, com processos meus, para dar. Esta semana recebi uma sentença do Tribunal Tributário de Lisboa relativa a uma liquidação que acabou por ser anulada judicialmente. A particularidade desta liquidação é que respeita a 2002, tem 16 anos… E recebi agora a primeira sentença.
Recorrível pelo Fisco…
Sim. Acontece, porém, que a empresa em questão já faliu há muitos anos. Por isso, tenho uma bela peça judicial para emoldurar. Já nem sei onde encontrar o cliente…
Esse é o seu “recorde”?
Não. Tenho outra situação ainda pior. É um processo que começou com uma execução fiscal, em Odivelas, em… 1992. Nesse processo, foi anulada a venda de um imóvel, porque não tinham sido cumpridas as formalidades legais. E o preço pelo qual o imóvel havia sido vendido era quase de favor. Esse ato foi anulado, sucede depois a venda a um terceiro de boa fé, o tribunal dá razão à empresa, minha cliente, e a sentença transita em julgado. A decisão anulava a primeira venda num processo de execução fiscal e mandava devolver o imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, ao seu legítimo proprietário. Tentei executar a sentença – sem êxito. O caso converte-se num processo de indemnização contra o Estado e contra a Autoridade Tributária (AT). O processo andou para cima e para baixo várias vezes, do Tribunal Tributário de Lisboa para o Tribunal Central Administrativo Sul, também na capital. Em abril passado, chegou-me a sentença transitada em julgado, do Tribunal Central Administrativo Sul, que condena a AT a pagar €1 305 000.00 à empresa minha cliente, como indemnização pelo facto de ter ficado sem imóvel. A AT, que tinha um prazo voluntário de 30 dias para cumprir a sentença, não o fez. Por isso, fui forçado a avançar com uma execução de sentença – 26 anos depois do início do processo…
Aproveitando a sua especialidade fiscal: os contribuintes cumpridores têm de se conformar com a existência de off shores, através das quais concidadãos fogem aos impostos?
De maneira nenhuma, como é óbvio. A carga fiscal tem de ser distribuída por todos os contribuintes, para que possa descer. Para todos. Mas é de sublinhar que Portugal já está muito bem equipado, em termos de legislação, no combate às off shores e na garantia do cumprimento de obrigações fiscais. Hoje, uma fatura de uma off shore tem de demonstrar, inequivocamente, que corresponde a um custo real. Se isso não acontece, a não dedução do custo referido é a punição legal. E se for considerado “despesa confidencial”, apanha neste momento com uma tributação autónoma de 60 por cento. Por aqui, o problema está resolvido. Depois, é uma questão de fiscalização.
Como avalia a transposição para a lei portuguesa, em 2017, da diretiva europeia de combate ao branqueamento de capitais?
Mal. O advogado passou a ter a obrigação de delatar o seu cliente, sempre que existam indícios de branqueamento de capitais. Faz essa comunicação à Ordem, que depois avalia se manda, ou não, o caso para o Ministério Público. No entanto, os advogados, muitas vezes, não têm consciência se esses indícios existem ou não. Para mim, a obrigação do advogado é a de defender o seu cliente, a da polícia criminal é a de investigar, e a do Ministério Público é a de acusar, se houver indícios para tal. Ponto.
E como vê a esperada diretiva contra o “planeamento fiscal agressivo”?
Mal, também. O propósito é meritório, mas o acesso dos cidadãos à Justiça, um princípio constitucional, fica igualmente em causa. Se alguém quiser fazer uma operação que pode ser vista como “planeamento fiscal agressivo”, embora perfeitamente legítima, e souber que o seu advogado está obrigado a comunicá-la à Ordem, e que depois vai parar ao Fisco, o que faz essa pessoa? Pode concretizar a operação, mas sem aconselhamento jurídico. Insisto: isto significa que se está a negar o acesso dos cidadãos à Justiça.