Aquele 15 de outubro tinha tudo para ser um dia feliz. A família iria juntar-se para o batizado das minhas duas sobrinhas, Laura e Sofia, e, juntos, festejaríamos os 70 anos do meu pai. Seria uma festa dois em um. No dia anterior viajara do Porto, onde vivo, para Oliveira do Hospital, a terra onde nasci, cresci, onde tenho toda a família e as recordações de infância.
À hora do batizado, às 16 horas, o céu cobria-se de negro, mas o fogo estava longe, diziam-nos, na zona de Seia, de um lado, na zona de Coja, Arganil, do outro. Em dias de festa de família, pouco se olha para o telemóvel e muito menos se liga a televisão. Desconhecíamos, pois, o cenário que se vivia nesse domingo no País. Os olhares eram todos para as duas irmãs, de dez meses e cinco anos, aperaltadas com lacinhos e vestidinhos brancos. Depois da cerimónia na igreja, a família juntar-se-ia para brindar à saúde das meninas e dos 70 anos do avô. Não fosse o fogo…
O meu pai recebe um telefonema a avisar que a quinta que possui a 15 quilómetros dali estava a arder. Sai disparado com os meus irmãos e, transtornado, tenta enfrentar as chamas com a intenção de abrir o estábulo e soltar os dois cavalos. É, obviamente, impedido. Derrotado, volta para Oliveira do Hospital. Nas horas seguintes, tudo se precipita. A eletricidade falha a partir das 19 horas. Não há rede de telemóvel, nem internet. Cai a noite e o cheiro a fogo adensa-se. Estamos no centro urbano e todo o concelho está rodeado de fogo. Vem de todos os lados. Sigo para o quartel, a dois passos da casa dos meus pais, e um dos bombeiros diz-me, exausto, olhos pejados de lágrimas, que, em 40 anos, “nunca vira nada assim”. A cinco quilómetros dali, a aldeia do meu sogro, Lajeosa, tem casas a arder. Não conseguimos chegar lá, nem saber nada dele porque os telefones não funcionam. A noite só se ilumina com as luzes dos carros dos bombeiros ou com a lanterna do telemóvel cuja bateria deixará de funcionar dentro de poucas horas. Escutam-se dezenas de explosões, a pouca distância dali. Sentimos medo, sentimo-nos impotentes.
O vento aumenta, como um demónio à solta, o ar é abafado (à meia-noite estavam 30 graus) e traz cinza e fagulhas. As chamas não chegam à casa dos meus pais, mas o seu trepidar escuta-se próximo. Aos gritos, avisam-nos para prepararmos as mangueiras, se o cenário piorar. Lá fora, só se consegue andar com máscara ou lenços a tapar olhos e boca. Há fagulhas vermelhas que saltam de um lado para o outro, sem sabermos onde irão cair.
Começam a chegar-nos a casa pessoas, assustadas, vindas de algumas das aldeias a arder. O João pede-nos que olhemos pela mãe, enquanto vai ajudar o pai a apagar as chamas que rondam a casa. A Tina chega com a família depois de percorrer uma estrada em chamas. A Isabel vem pedir guarida porque o marido não a veio buscar depois do trabalho, como habitualmente. A Liliana está aflita por não conseguir chegar à casa da mãe onde os filhos ficaram a passar a noite. O Zé vem tresloucado depois de ter enfrentado as chamas em casa e desespera por não saber da mãe e da irmã. Os telemóveis continuam sem funcionar, está escuro, só as velas nos iluminam. A noite é longa e sentimos uma impotência total. Ligamos o rádio do carro na tentativa de saber o que se passa. Sigo, de novo, para os bombeiros em busca de melhores notícias. Nada. O ar continua irrespirável. Tudo à volta está vermelho, da cor do fogo.
Durante a noite, as imagens de Pedrógão Grande não me saem da cabeça. O nascer do dia não vai trazer nada de bom, calculo. Como pode tudo isto estar a acontecer? Outra vez? As (más) notícias começam a chegar ao amanhecer, sob um céu coberto de um manto de fumo. Pedro, o marido da Isabel, não a foi buscar porque morrera pelo caminho. Cristiana morrera nas chamas na estrada à entrada da cidade, quando tentava fugir com o marido e a filha. A fábrica de um amigo de infância ardera por completo, tal como muitas outras. Dezenas de casas foram consumidas pelas chamas, como a de Aristides, que conheço desde miúda, ou a de Kin, o músico alemão que me dizia há anos, numa reportagem para a VISÃO, que trocara a Alemanha para viver num “happy valley”, o vale encantado como ele chamava a Benfeita, no concelho de Arganil, onde mais de 20 famílias também ficaram sem nada.
Aquele 15 de outubro tinha tudo para ser um dia feliz. Mas não o foi – para nós e para tantas famílias. A minha sobrinha, na inocência dos seus cinco anos, perguntava, entre choros: “Porque é que decidiram fazer o meu batizado no dia do incêndio?” Tu não sabes, Laura, nem podes ainda saber, mas o incêndio não escolhe dias nem horas. Prometo-te que ainda iremos brindar à tua saúde e à do avô – faremos a festa que não fizemos.