Foi um fim de semana alucinante. Enquanto, aos jornalistas, em Bangui, capital da República Centro-Africana, o primeiro-ministro António Costa classificava a polémica em torno de Mário Centeno como “tricas políticas”, em privado, prosseguia uma intensa ronda de contactos, por sms e através da internet, com membros do seu gabinete e com o seu ministro. Logo no sábado, antes de aterrar de surpresa naquele país de África para visitar a missão internacional dos militares portugueses, já Costa tinha percebido que teria de iniciar uma rápida operação de controlo de danos.
Em causa, saber se, como parecia demonstrar uma carta de António Domingues, escrita em novembro e agora trazida a público pelo jornal digital económico Eco, estaria acordado, entre o ex-presidente da CGD e o ministro das Finanças a escusa da apresentação das declarações de rendimentos e património aos membros da administração; ou se, como jurou Mário Centeno, perante a comissão parlamentar de inquérito, não havia qualquer acordo nesse sentido. O PSD e, em especial, o CDS, pela voz do deputado João Almeida, convidavam o ministro a mudar o seu depoimento, avisando-o de que mentir a uma comissão de inquérito para além das consequências políticas… tinha implicações legais.
Pelo que a VISÃO apurou, junto de fontes governamentais, António Domingues solicitou, de facto, quando da sua nomeação, um novo enquadramento legal que, explicitamente, dispensasse os gestores da CGD dessa obrigação. E que, assim, se revogasse a lei de 1983, que a tal os obrigava. Perante esta informação, cai por terra a tese de que o “acordo” podia ter, por lapso, esquecido a existência dessa exigência legal. A VISÃO sabe agora que António Domingues explicou, então, que não tinha, pessoalmente, qualquer problema em entregar a declaração, mas que outros administradores da sua equipa “ou, pelo menos, um outro”, se recusaria a fazê-lo.
Tal pretensão de revogação da lei de 1983 foi recusada, entre outras razões, porque o Governo sabia que isso iria “criar um conflito” dentro da “geringonça”, sendo, previsivelmente, mal aceite pelos parceiros à esquerda.
O ovo de Colombo
Mas havia uma hipótese: tendo em conta o plano de recapitalização “em condições de mercado”, ou seja, em obediência a um plano de reestruturação, impunha-se alterar a natureza do estatuto da administração, abrindo portas a uma gestão profissional e em igualdade de condições com a concorrência. O “ovo de Colombo” da mudança de estatuto parecia ir ao encontro das pretensões de António Domingues: alterar o estatuto de gestor público dos administradores da CGD era uma medida que substituía os níveis de escrutínio da sua idoneidade e daria origem, aliás, ao chumbo, por parte do BCE, de oito dos nomes inicialmente nomeados.
Ora, nesse chapéu de chuva, pensava Mário Centeno e pensava António Domingues, incluir-se-ia a escusa da apresentação das declarações. E é aqui que surge o “erro de perceção mútuo” de que falava o ministro na conferência de imprensa de segunda-feira: António Domingues convenceu-se de que a mudança de estatuto era o suficiente para garantir a escusa. E Mário Centeno achou, basicamente, o mesmo: a sua parte estava feita. Se, depois, o problema fosse levantado, como foi, já não era com ele, mas com o Tribunal Constitucional.
O papel crucial de Marcelo
E é aqui que entra, primeiro, Marques Mendes e, depois, Marcelo Rebelo de Sousa, peça chave em todo este caso, como bem compreendeu António Costa, esta semana.
Quando metade do País se insurgia contra os salários dos administradores, o comentador da SIC, de moto próprio ou inspirado por Belém, denunciou um “pormenor” de que todos se estavam a esquecer: e a entrega das declaraçõezinhas? Pouco depois, Marcelo, em nota publicada no site da Presidência, desenvolvia uma espécie de miniparecer jurídico, defendendo que a mudança de estatuto, promulgada por si próprio, não revogava a lei de 1983 nem a obrigação de apresentar as declarações. Vale a pena recuperar o texto de Marcelo, com sublinhados nossos: “O Decreto-Lei nº 39/2016, de 28 de julho, incidiu apenas sobre o Estatuto do Gestor Público, constante do Decreto-Lei nº 71/2007, de 27 de março. Esse Estatuto nada diz sobre o dever de declaração de rendimentos e património ao Tribunal Constitucional. Tal matéria consta da Lei nº 4/83, de 2 de abril, na redação dada, por último, pela Lei nº 38/2010, de 2 de setembro. Ora, a Lei nº 4/83, não foi revogada ou alterada pelo Decreto-Lei nº 39/2016, de 28 de julho. A finalidade do diploma de 1983 afigura-se ser, neste particular, a de obrigar à mencionada declaração todos os gestores de empresas, com capital participado pelo Estado, e em cuja designação tenha intervindo o mesmo Estado, estejam ou não esses gestores sujeitos ao Estatuto do Gestor Público. (…) À luz desta finalidade, considera-se que a obrigação de declaração vincula a administração da Caixa Geral de Depósitos. Compete, porém, ao Tribunal Constitucional decidir sobre a questão em causa.” Ou seja, a panelinha cozinhada entre Centeno e Domingues não funcionava. Mas havia, ainda, uma esperança, aliás admitida por Marcelo na sua nota: a de que o Tribunal Constitucional se pronunciasse a favor da isenção da apresentação das declarações ou, ao menos, as exigisse com o compromisso de as não tornar públicas. Foi por isso que foi solicitado ao TC que se pronunciasse e era dessa decisão que se estava à espera quando o PSD apresentou, na AR, um diploma em que reforçava a lei de 1983, obrigando, por lei ordinária, à apresentação das declarações. Uma lei que alguns consideraram ad hominem, mas na aprovação da qual o Bloco de Esquerda alegremente embarcou, viabilizando a sua aprovação. A partir daqui, tornava-se supérfluo qualquer acórdão do TC. E as expectativas originadas pelo “erro de perceção” deixavam, para Domingues, de ser cumpridas.
Costa vincula Marcelo
Vale a pena, ainda, destacar, mais uma vez, o papel de Marcelo neste caso. É que o PSD, um pouco falho de ideias para fazer uma oposição eficaz, aproveitou como pão para a boca a sugestão de Marcelo, inscrita no último ponto da mesma nota: “Caso uma sua interpretação [do Tribunal Constitucional], diversa da enunciada [pelo PR nesta nota], vier a prevalecer, sempre poderá a Assembleia da República clarificar o sentido legal também por via legislativa.” Ou seja, o Presidente dava a tática a Passos Coelho, que nem precisou de esperar pelo Tribunal. Para um Presidente acusado de dar sempre a mão ao Governo, não está nada mal…
Apercebendo-se de todo o papel de Marcelo no dossiê Caixa e no lume brando em que Centeno estava a ser cozinhado… António Costa, ainda em Bangui, decide envolver o PR na reabilitação do ministro. Pediu a Centeno e a Marcelo que conversassem e, como frisa no seu comunicado de segunda-feira, “após um contacto com o Presidente da República” decidiu manter a confiança no ministro. Arrancava, assim, um compromisso a Marcelo, na defesa de Centeno. Mas o PR, num último lance ambíguo que lhe deixa margem para dizer que lhe ficam a dever uma devolve o maquiavelismo político a Costa, dizendo, no seu próprio comunicado: “Ouvido o senhor primeiro-ministro, que lhe comunicou manter a sua confiança no senhor professor Mário Centeno, aceitou [o PR] tal posição, atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira.” As palavras do PR permitem que alguma opinião pública possa acompanhar o deputado João Almeida, quando constata, não sem alguma lógica: “Quer dizer que, para manter confiança no ministro, todas as condições abaixo do ‘estrito interesse nacional’ deixaram de ser cumpridas.” Os números da execução orçamental e do crescimento económico, bem como as previsões de inverno e as palavras elogiosas da Comissão Europeia, funcionaram como um gongo salvador. Mário Centeno é uma peça imprescindível para António Costa: ele é o homem que transforma pó em ouro, ou seja, que consegue as soluções técnicas que permitem conciliar a reposição de rendimentos com o cumprimento das metas. É ele que segura a “geringonça” em Bruxelas. Foi ele o inspirador do programa económico com que o PS se apresentou a eleições. Foi ele quem, vindo do “nada político”, acompanhou Costa, nas negociações com os partidos à esquerda, antes mesmo de formar Governo.
E mais do que arranjar as soluções, Centeno é um apóstolo fervoroso das políticas. Onde é que António Costa arranjava outro assim?
Outros ministros das Finanças com problemas
Mário Centeno não é o primeiro a ver-se confrontado com o espetro da demissão
Miguel Cadilhe – XI Governo Constitucional
Viria a demitir-se por se ter descoberto que fugira ao pagamento de uma parte do imposto de sisa, na compra de um apartamento nas Amoreiras, em Lisboa.
Pina Moura – XIV Governo Constitucional
A decisão da entrada da ENI e da Iberdrola na Galp originou um inquérito parlamentar. Quando saiu da política, tornou-se presidente da segunda destas empresas em Portugal.
Campos e Cunha – XVII Governo Constitucional
Ao fim de quatro meses, abandonou o primeiro governo Sócrates, por discordar da orientação da política económica prosseguida.
Victor Gaspar – XIX Governo Constitucional
Na carta de demissão a Passos Coelho, em julho de 2013, queixou-se da falta de coesão do governo e da erosão do apoio às suas políticas para prosseguir o reajustamento financeiro.
Maria Luís Albuquerque – XX Governo Constitucional
Envolvida na questão dos contratos de swap celebrados por empresas públicas, durante os governos de Sócrates, por ter, ela própria, enquanto responsável financeira da REFER, ter firmado oito desses contratos. A oposição acusou-a, ainda, de mentir, por causa de um swap nas Estradas de Portugal.