Sei que o leu, porque Maria de Fátima Bonifácio, logo na nota introdutória, explica que lhe deu a apreciar o livro que escreveu sobre si. Como o avalia? Como olha para ele?
Provocou um pequeno vendaval de sentimentos e de reações. Gostei muito do livro, tem uma dimensão pessoal e afetiva resultante da relação com a Fátima…
São amigos?
Há 40 anos. Desde a sua proposta de fazer este livro até ao fim, há qualquer coisa que mexeu com as emoções. Depois foi também uma oportunidade para olhar para a vida passada. Na minha idade tem-se o pressentimento que se perdeu muito tempo e que se podia ter feito muito mais. Um dos aspetos que o livro da Fátima mais toca é o sentido da evolução, o modo como mudámos, se o fizemos no sentido do progresso, isto é, se melhorámos o nosso pensamento, ou no sentido do retrocesso.
Tendo sido obrigado a revisitar a sua vida, a avaliação que dela faz coincide com a que é feita pela autora?
Reconheço-me neste livro. Pode haver pormenores em que divirjo, mas o contrato é esse: o livro é dela, não é meu. A opinião dela sobre mim e sobre o que eu fiz, sobre o pensamento político, são assuntos dela e opiniões dela. Isto não é uma biografia e muito menos uma biografia autorizada.
Quando me falaram do livro falaram-me de uma biografia. Mas de facto não segue o cânone desse género. Porque não lho permitiu?
Foi ela que disse que não queria fazer uma biografia. Eu não sei se quero que alguém faça a minha biografia, se a minha vida vale uma biografia.
Porque não sabe se gostaria que fizessem uma biografia sua?
O problema é a privacidade e a intimidade. Não existe uma verdadeira biografia sem isso. A minha forma de ser – que não é pior nem melhor do que as outras – faz-me ser um pouco mais reservado do que exibido. Por outro lado, a minha conceção é que a minha vida é minha e de muita mais gente. Há os momentos privados, afetuosos, os amigos, as namoradas… Não sei se tenho legitimidade para poder expor ou exibir essas pessoas.
Quando era adolescente, tinha pressa de sair de Vila Real. Achava-a abafada e bafienta. Mas ao mesmo tempo tem uma declarada paixão, que já resultou em mais do que um livro e pelo menos um documentário, pela região onde nasceu. Ambivalência?
Vista de forma sincrética, em fim de vida, é ambivalente. Até aos 20 anos, olhava para o Douro e não desgostava, mas era apenas a minha terra. Tinha começado a ler alguns autores, Miguel Torga, que conheci quando era pequenino…
Vivia perto de si.
Em São Martinho de Anta. Houve uma altura em que eu, alguns irmãos e colegas íamos lá, ouvir poemas, conversar com ele. Achava que o Douro e Trás-os-Montes não deviam ser um objeto de tanta sedução, de tanta poesia. Quando regressei da Suíça, o reencontro apagou o que a região não tinha: abertura, riqueza, liberdade, movimento, ação. Eu tinha tido isso tudo por esse mundo fora e aquela região pareceu um porto, um sítio para ancorar, uma raiz. Desse reencontro é que resulta uma grande admiração e atração pelo Douro. É das regiões mais pobres de Portugal mas é ao mesmo tempo a que tem uma relação mais direta com o exterior, através do vinho do Porto. O que se produz no Douro, naqueles mortórios [terraços de vinhas abandonadas] e montes, vai para Londres, para os arcebispados, para os colégios das universidades, para os clubes dos aristocratas, para o mundo inteiro. É uma história rica, interessante, mostra as ambivalências de Portugal, a sua pequenez e grandeza.
Mas isso não o interessava muito quando era adolescente.
Essa é a idade própria em que queremos o que não temos. Eu queria ver o mundo. Queria Londres, Paris, Roma, queria liberdade, literatura…
Mas foi parar a Coimbra e a uma fábrica de bolachas…
Sim, fui trabalhar para a fábrica de bolachas Triunfo. Mas o mais importante, em Coimbra, foi o CITAC [Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra] e a iniciação política.
Porque se meteu com o PCP?
Porque não havia mais ninguém.
Por causa do perfume do marxismo-leninismo ou porque queria todas essas coisas que procurava?
Eu queria a Liberdade, pelo que era necessária a Revolução, era necessário derrubar o regime, correr com as ditaduras. As primeiras pessoas que eu encontrei disponíveis foram os comunistas e os primeiros que vieram ter comigo eram comunistas. Não fui para o Partido Comunista por ser marxista mas fui marxista por ter ido para o PCP.
Falou do teatro. Foi marcante?
Sim, pela aventura cultural. Havia dois grupos de teatro, o TEUC, que fazia teatro clássico, grego, francês, Gil Vicente, Garrett, dirigido por um grande homem, o professor Paulo Quintela. O CITAC queria fazer coisas modernas, Lorca, Beckett… Eu fui para este. Eram ambos de esquerda, da oposição. Nos grupos de teatro criava-se uma pequena comunidade, não era maçónica porque não havia disso, não era comunista, mas era democrática, era contra o Salazar, convivíamos, bebíamos uns copos, por vezes de mais, e trabalhava-se, estudava-se… Foram três anos fantásticos, de colocação de voz, dos gestos, há coisas que nunca esqueci na vida.
Ficou disso alguma coisa que tenha sido útil na sua vida posterior. Por exemplo, na política?
É possível. A colocação da voz… A perceção da nossa relação com o resto do mundo. Mas recuso uma tentação possível, a de dizer que quem tem jeito para o teatro tem jeito para a política.
Está a dizer isso porque se lembra da Catarina Martins?
[Risos.] Não. Porque já ouvi que se faz política porque se tem jeito para o teatro.
A Catarina Martins tem jeito para a política?
Acho que tem. Sim, ela tem talento e jeito.
Direito… Porque se inscreveu, em Coimbra? Porque era o curso da praxe, o da sua geração?
O que estava na praxe era ser engenheiro ou médico, as profissões do meu pai e do meu avô. Tive um professor de Filosofia, no 6º ano, daqueles poucos que marcam, e ele na primeira ou na segunda aula falou de Sociologia, explicou o que era a Sociologia. Eu pensei que era mesmo aquilo que eu queria, embora mais tarde tenha percebido que não existia a Sociologia em Portugal, que o Salazar a havia proibido. Olhando para as disciplinas possíveis, achei que o Direito era o que estava mais próximo, podia dar para a política, para a diplomacia…
A política já o interessava?
Desde 1958. O Delgado foi a Vila Real e eu tive um choque. Mexeu comigo. Eu era da JEC [Juventude Escolar Católica], dirigia o núcleo de Vila Real, quem tem uma carreira na ação católica quer política, quer agir, quer ação.
Quando acabou a sua relação com Cristo?
Foi de rompante, em 1958. Esteve muito ligado com a campanha do Delgado, a que eu fui assistir no Porto, porque se andava à porrada com a polícia. Tive uma conversa muito dura com o meu diretor espiritual, a quem eu disse: “Se não houvesse homens, não havia Deus.” Deus era uma criação dos homens. Ele ralhou comigo, zangou-se, não fez nada para me seduzir.
O seu pai era católico?
O meu pai e a minha mãe.
O seu afastamento do catolicismo nunca foi um problema familiar?
Não mais do que um desgosto. Nós éramos muitos. Quando se tem muitos filhos, há filhos para tudo. Houve filhos para serem comunistas, desertores, refratários, militares, divorciados, casados… havia filhos para tudo. Os meus pais, sendo muito conservadores do ponto de vista religioso, o meu pai era quase de comunhão diária, eram muito liberais connosco.
Os militantes comunistas eram instruídos pelo partido a cumprir o serviço militar. Foi para Genebra por não querer participar na Guerra Colonial. Como foi essa negociação com o partido?
Eu estive no Partido Comunista cerca de um ano. Comecei por aqueles níveis que eles têm, amigo, companheiro, simpatizante, até ser militante. Ninguém fazia de mim militante, não havia nenhuma formalidade. Uma vez, o Germano Ferreira da Costa disse-me: “És membro do partido, vais ser integrado numa célula.” O que nunca aconteceu porque fui para o estrangeiro, pouco depois. Não cheguei a estar integrado numa célula, com cinco ou seis camaradas e um controleiro. Quando decidi abandonar o País, o meu contacto disse-me que eu correria os riscos todos por mim mas que procurasse o PCP no estrangeiro: era um modo de dizer que o pecado não era mortal.
Saiu sem a ajuda do partido. Como?
Precisava de passaporte, de um motivo para o pedir e da licença militar. O motivo era um congresso europeu de teatro universitário que se ia organizar na Alemanha. Comprei os bilhetes de comboio, fui a Vila Real pedir a licença militar e o meu pai pediu o passaporte de urgência, porque eu ia partir dali a uns três ou quatro dias. O meu pai acreditou nesta história toda, não sabia que eu me ia embora. Saí legalmente. Cheguei à fronteira, e o Pide ficou surpreendido. “Tens 20 anos?” Levou os papéis todos. Eu tinha comigo uma credencial do PCP. Uma credencial era uma folha de papel, com riscos emaranhados, que se rasgava em ziguezague, ficando cada um com uma parte. Obviamente que a Pide sabia o que era uma credencial eu tinha-a no bolso. Tirei-a do bolso e entalei-a nos estofos do banco. Não aconteceu nada.
Chega a Genebra e…?
Antes da minha saída de Portugal, encontrei um amigo que estava em Genebra e que me disse que eu podia ficar em casa dele. Eu estava a pensar ir para a Alemanha e depois para Argel ou para Paris. Era um plano um bocadinho irresponsável porque eu não tinha dinheiro para viver dois ou três meses. Foram três dias de alegria, de prazer. Eu não andava à procura de Genebra mas Genebra tinha o que eu procurava: alegria, sol, liberdade, movimento, raparigas, filmes… O meu primeiro filme, visto no dia em que eu cheguei, foi Vivre sa Vie, do Jean-Luc Godard. Foi evocador. Esse meu amigo arranjou-me trabalho, empregos a fazer embrulhos, a limpar ruas, havia sempre empregos. O primeiro ano foi difícil, não consegui estudar, era preciso trabalhar, arranjar casa…
Há uma contradição neste período da sua vida. Por um lado, uma pulsão libertária leva-o para fora do País, à procura de um local onde existissem liberdades individuais, mas, por outro lado, há um comunista bem-comportado, que aceita pertencer a um partido onde as liberdades individuais não eram de todo o mais importante. Tenho razão?
É um encontro de pulsões, se quiser. Eu nunca fiz esse raciocínio, o raciocínio é ulterior. O PCP era a forma de uma pessoa estar organizada com outras, para tentar derrubar o regime, só ali é que se podia fazer aquilo. Era disciplinado? Sim, mas também não de mais. A minha vida no PCP foi sempre no mundo estudantil. Eu era da Associação de Estudantes Portugueses de Genebra, da Associação Sindical de Estudantes Suíços, e depois, em 1966, do Secretariado dos Encontros de Estudantes Portugueses no Estrangeiro. Tínhamos um grau de autonomia grande. Dou-lhe um exemplo. Quando fui presidente desse secretariado, fizemos um manifesto a apelar à não ida para o Guerra Colonial, para refratarem, abandonarem. Publiquei isso e recebi uma admoestação, de um controleiro. Houve uma reunião meses depois, em Paris, com os vários secretariados de estudantes. Estava o Cunhal – era a terceira ou quarta vez que o via –, o Francisco Miguel e o Vilarigues. Estes dois criticaram-nos, levámos no toutiço à séria. Defendi-me, o mais que pude, dizendo que era mais importante não fazer a guerra do que estar lá dentro. A reunião durou umas duas horas e, no final, o Cunhal fez o resumo. E disse: “Os camaradas estudantes têm razão.” Quero com isto demonstrar que a minha condição de estudante permitiu prolongar esta contradição de que fala. Mas em 1968 estava tudo acabado. Depois dos acontecimentos em Praga, deu-se o meu afastamento.
Que deu origem a uma carta aberta.
Um bocadinho pretensiosa. Eu e mais cinco camaradas explicámos ao povo português porque saíamos. Muito esquerdista, a carta. Se se deixa o movimento mais conhecido e eficiente na luta contra a ditadura escrevendo uma coisa mais social-democrata, estaria a dar as abébias todas.
Aquilo a que, no livro de Fátima Bonifácio, se chama uma “saída do PCP pela esquerda”?
Sim.
Arrependeu-se dessa saída “pela esquerda”?
Foi uma má reação, um mau instinto. Eu saí do PCP sem qualquer tipo de remorso filosófico. Não era necessário alertar todas as pessoas que lutavam contra o regime da saída do partido, mantendo- -me fiel à revolução, à democracia, à luta contra o fascismo. Não gosto daquela carta, é uma mistura de sentimentos democráticos, liberais, e de manutenção de espírito revolucionário.
Qual era a sua intenção ao escrever os três artigos sobre o capitalismo em Portugal, na Polémica, uma revista na qual escreveu depois da saída do PCP.
Aconteceu muita coisa em 1968. Houve sucessivas ruturas no mundo das esquerdas, por causa dos acontecimentos do maio de 1968, do que sucedeu em Berkeley, dos movimentos terroristas italianos e alemães. Sentíamos que a análise da situação portuguesa, o diagnóstico…
O diagnóstico feito pelos comunistas?
Sim. Vivíamos o fim das duas ortodoxias, a do regime e a do PC. Isso via-se na literatura, no cinema, na música.
Um maniqueísmo simplificador?
Achávamos que estávamos numa posição confortável para intelectualmente podermos pensar. Aos de Genebra juntou-se o Manuel Lucena, de Paris. Uma das coisas que nos preocupava muito é que não se conseguia fazer a democracia em Portugal com ideologia puramente nacionalista nem com a ideologia internacionalista comunista, sob o jugo da União Soviética. Falamos lá de um “nacionalismo defensivo”, uma tentativa de dar as cartas de novo. Não somos os únicos. Havia nessa altura uma publicação em Paris, Cadernos de Circunstância, havia em Portugal um grupo que se chamou Ousar Lutar, Ousar Vencer, havia um outro grupo chamado Esquerda Democrática Estudantil… Nós não estávamos sozinhos, havia outras pessoas a tentar fazer coisas parecidas.
Chega a Portugal e começa a fazer campanha, no início de 1975, e vai para o governo como secretário de Estado do Comércio Externo. Mas é como ministro da Agricultura de Mário Soares que faz a lei da Reforma Agrária. Foi para pôr cobro às ocupações que passou para ministro da Agricultura?
Já tinha um ano de governo, no último provisório, do Pinheiro de Azevedo. Acho que fui convidado porque tinha feito vários trabalhos para o Mário Soares e para o Partido Socialista. Tinha publicado um livro pequenino sobre política económica externa e aquilo tinha ficado na cabeça do Mário Soares e do Jorge Campinos. Ao fim de um ano, passei a ministro do Comércio. O maior problema do governo, tirando o financeiro, que estava entregue a Medina Carreira, era a pasta da Agricultura. Era suposto acabarem as ocupações, devolver reservas que não tinham sido devolvidas.
Era demasiado próximo do PCP, o ministro [Lopes Cardoso]?
Ou outra coisa: ele não queria recorrer aos meios legais, não queria fazer uma lei diferente. Metade das ocupações não estavam de acordo com a lei. A lei visava as terras abandonadas mas as que foram ocupadas eram as melhores, está se bem a ver porquê! E as ocupações continuavam.
Aliás, financiadas pelo Estado.
Sim, pelo Banco de Portugal, pela banca e pelo Ministério da Agricultura. Quando o Soares me convida, a intenção era pôr ordem naquilo.
Depois de aprovada a lei na Assembleia da República, Mário Soares retira-lhe o tapete?
O Mário Soares nunca foi ao Parlamento durante essa discussão. Estavam lá todos: os conselheiros de Estado, o Conselho de Revolução, os partidos todos, havia filas até à Rua de São Bento. O Mário Soares nunca lá pôs os pés. O Mário Soares não gostou do excesso de popularidade, dos apelos à Direita, das pessoas que no Partido Socialista estavam contra. Ele ia precisar dali a dois meses do apoio do PCP para aprovar o Orçamento.
Foi instrumentalizado por Soares?
Não. Ele acreditou em tudo até ao dia em que achou que tínhamos de mudar.
Pode-se dizer que a sua ação política é dominada pela vontade de contrariar os desígnios do PCP em Portugal?
É o maior paradoxo da minha vida. Até 1975, eu queria fazer a reforma agrária. Distribuir a terra. O que acabei por fazer foi devolver a terra a quem ficara sem ela. Ainda hoje assumo as razões porque fiz isso. Era mais importante haver Liberdade em Portugal do que haver reforma agrária. Não estou nada arrependido, mas é um paradoxo da História. Foi o contrário do que esperava fazer.
Como reagiu, e a sua família, às pichagens pelo País inteiro com mensagens como “Morte ao Barreto”, “Morte à Lei Barreto”?
Eu não desgostava que houvesse essas coisas todas nas paredes. Era sinal de que eu tinha tocado em alguma coisa de importante, de essencial. Posso-lhe dizer que saí várias vezes, de jeans e de camisa, à noite, para ir fotografar as pichagens. Até achava mobilizador, porque pensava que as pessoas que não eram comunistas acabariam por reagir. Eles exageraram, exageraram contra eles próprios. Custou- -me a parte familiar, eles terem ameaçado os meus pais e os meus irmãos. E as bombas. Duas semanas depois de ocupar a pasta da Agricultura, puseram seis bombas pequeninas em centros da reforma agrária. Não houve feridos, apenas uma senhora que levou com um estilhaço, mas era para intimidar.
Porque considera hoje um erro o “Movimento Reformador”?
O movimento não foi um erro, mas sim a minha atitude. O Medeiros Ferreira não queria interromper a vida política. Quando apresentámos o manifesto do movimento, eu disse que queria afastar-me da vida política durante um tempo, mas ninguém ouviu. Depois do manifesto, ainda fiz o acordo com o Sá Carneiro, que me convidou para ser da Aliança Democrática, o que recusei. Fez-se esse acordo para sermos deputados mas eu não fui. Mais um sinal errado e a política não se faz com sinais errados. Mas não queria sair da família política.
Mantém a ideia de que não se muda de família política? É um dogma de ateu?
É tradição cultural, se quiser.
Mas não estava mais próximo de um ideário social-democrata, no final dos anos 70?
Sim, mas eu não achava que o PSD fosse social-democrata. O seu cromossoma liberal e a pulsão popular eram mais fortes. E metade do partido socialista era social-democrata, não tenho qualquer dúvida. Sempre quis ficar na tradição da esquerda. O que é a tradição de esquerda? A mais permanente, se quiser, é a de dar mais poder a quem não o tem. Poder financeiro, político, cultural, aos que não têm voz, representação… As políticas para dar poder a essas pessoas são de esquerda.
O seu regresso ao partido socialista, por via do MASP, também foi um erro?
Não.
Considerava Mário Soares um bom candidato?
Decidi voltar à política, em 1984. Publiquei um artigo no Diário de Notícias a desafiar Soares para se candidatar à presidência. Antes disso, desafiei o [Salgado] Zenha. Mas o Salgado Zenha não quis, embora mais tarde tenha sido candidato. Ele disse-me que não e, três meses depois, senti-me livre para convidar o Soares. Era o plano B.
E depois do seu artigo?
O Mário Soares vem aqui a esta casa [apartamento de António Barreto, no bairro lisboeta da Lapa], logo no dia seguinte. “Sim senhor, li o seu artigo, vamos a isso.”
Tinha relações com Mário Soares?
Nós tínhamos feito as pazes, através do Sottomayor Cardia, num jantar em casa dele. Quando acabou o jantar, o Soares disse-me, à parte, que tínhamos de fazer as pazes. Eu disse-lhe que queria voltar a ter atividade política mas que gostava que um dia o PS me pedisse desculpas pela forma como me tratou em 1977-78, que reconhecesse que a Lei da Reforma Agrária era uma lei boa. Passou o tempo, em meados de 1985 recebo um telefonema do Cardia e do Jaime Gama a convidar-me para me apresentar às eleições, como independente. Sim senhor, mas só vou se o PS me pedir desculpas ou disser que eu tinha razão. Dois dias depois, dizem-me que seria cabeça de lista por Évora, e assim escusávamos de pedir desculpas uns aos outros. Em 1986, dei-me conta que ser deputado independente não fazia sentido e inscrevi-me como militante em Évora. Mantive-me no Parlamento até 1991.
Não tem feitio para os partidos políticos?
Não muito. Mas isto tem de ser encarado com um grão de sal. Não encaro a ideia de fazer política sem um partido.
E as candidaturas independentes?
Se alguém quer fazer política, ser primeiro-ministro, formar um governo, a base disso tem de ser um partido.
E quis ser isso tudo? Quis ser primeiro-ministro?
Mas deu sempre errado porque nunca soube fazer o que era preciso. Não tenho competência suficiente para a gestão da vida de um partido, para a gestão dos afetos políticos, para a estratégia e para a tática partidária. Não tenho jeito para fazer uma carreira política até ao fim e perdi. Perdi na vida política.
Depois de sair da vida política, escreveu durante 18 anos uma coluna semanal no Público, o Retrato da Semana. E escreve, edita ou organiza livros. Faz documentários. Após a sua aposentação como investigador do Instituto de Ciências Sociais, aceitou dirigir a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Como surgiu esse projeto?
Através de um telefonema do Alexandre Soares dos Santos. Não nos conhecíamos. Explicou-me que queria fazer uma fundação para ajudar o País, para ajudar a encontrar soluções. A fundação preencheu a minha vida durante cinco anos. Dei tudo o que sabia e podia, e achava que aquela fundação poderia ser um centro de inovação, de pensamento e polémica livres, que quebrasse os obstáculos que por vezes nos impedem de pensar. A coleção de ensaios da Fundação é uma tentativa disso.
Recebeu carta-branca para a fundação ou um caderno de encargos?
A primeira vez que o Alexandre Soares dos Santos me falou pediu-me opinião sobre uma fundação. Eu não senti nessa conversa que seria convidado para a fundação, até porque soube que havia mais uma ou outra pessoa com quem ele falava. Disse-lhe, aqui, nesta sala, o que pensava. Ele pediu-me que pusesse as opiniões num papel. Fiz duas ou três páginas. Passados uns meses ele regressou aqui, convidou-me para presidente da fundação. Eu perguntei-lhe pelo programa. Ele disse: “É isto.” Era o meu documento.
O que é necessário na Constituição, cuja revisão há tantos anos defende?
Sei que é um combate perdido. Os chefes políticos não a querem. Julgo que era necessário alterar o capítulo sobre o sistema eleitoral, permitindo candidaturas independentes, uninominais, e que não fossem mais possíveis as substituições de deputados. É um modo de criar uma ameaça aos partidos, para estes escolherem os melhores que têm, em vez dos apparatchiks e dos burocratas. Acho também que é vital mexer com os poderes do Presidente e do governo: vamos continuar a ter problemas de coexistência entre os dois. Já houve um tempo em que fui defensor de um sistema presidencialista mas hoje penso que o parlamentarismo é mais civilizado. Do ponto de vista do conteúdo, esta Constituição é uma soma de direitos de todos os sindicatos possíveis e imaginários: dos trabalhadores, das mulheres, das crianças, dos pobres, dos doentes, dos assim-assim, dos assim-assado. Nunca vi tantos direitos disseminados. Foi uma Constituição feita para atender a todas as clientelas possíveis. Também dava mais margens às políticas parlamentares. Uma maioria parlamentar de 50% tem o direito de ter um governo e de tomar medidas sem estar tolhido, de manhã, à tarde e à noite, pela Constituição.
Como aconteceu com Passos Coelho?
Sim, como aconteceu com o Passos Coelho. Sempre que se fala de rever a Constituição, cai o Carmo e a Trindade, mas já houve sete revisões, três das quais importantes: mudou o poder dos políticos, dos militares, da magistratura, do Conselho de Revolução, as nacionalizações, as privatizações, a economia privada… Mantenho que merecemos uma Constituição curta, simples, positiva, que possa afirmar coisas como a americana, que diz que os cidadãos têm o direito a procurar a sua felicidade.
Como tem olhado para a geringonça? António Costa é refém do PCP e do Bloco de Esquerda?
Estão todos reféns uns dos outros. O PCP tem de mostrar trabalho feito se quer resistir ao Bloco. O Bloco tinha de ir para o Governo, senão seria cilindrado entre o PCP e o PS. Para o PS era a última oportunidade de regressar ao poder. Portanto, ficaram os três prisioneiros. Como o PCP quer estar com os dois pés fora e com uma mão segurar a fechadura da porta, como o Bloco quer estar com um pé dentro e outro fora, e como o PS quer estar com os dois pés dentro e até lhe convém que os outros não estejam por lá, a geringonça mantém-se. Quanto tempo? Ninguém sabe. Pelo menos até este segundo orçamento parece-me que durará. Mas o PCP precisa de crescer, senão ficará eternamente o terceiro partido de esquerda. O Bloco de Esquerda quer crescer para a direita, para o PS, quer comer o PS. Uma aliança entre três cujo destino é desfazerem-se uns aos outros, claro que não durará eternamente. O Jerónimo de Sousa todas as semanas alerta: “Este não é o nosso governo”, “Este não é um governo de Esquerda.” Penso que algum sairá primeiro da geringonça, quando perceber que vai perder votos. Penso que vai ser um dos pequenos.
O livro, a autora
Conheceu António Barreto há quase 40 anos, no verão de 1978, no Algarve, através de Vasco Pulido Valente e de Filomena Mónica. Desde então, as relações estreitaram-se. Trabalharam ambos, como investigadores, no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa. Maria de Fátima Bonifácio, 67 anos, historiadora, quis desde o início do livro, para a escrita do qual contou com a colaboração de António Barreto, “esclarecer o mistério que ele é para muita gente”.
Para a autora, o seu “biografado” é uma pessoa que “podia ter sido tudo o que quisesse, em Portugal”. Porque não foi? “Não foi apenas pela sua forma de ser, peculiar, mas também por causa dos obstáculos que não teve força ou persistência para vencer”, nota a autora. “Foi muito armadilhado, esta é a palavra certa, dentro do PS.”
O livro, o 15º da autora, não é uma biografia clássica, embora faça fugazes incursões pelo género. Tem 537 páginas, nas quais o percurso político de António Barreto é esmiuçado. Desde os tempos da infância, à passagem por Coimbra, ao tempo de exílio na Suíça, ao regresso a Portugal, à atividade governativa e parlamentar, tudo é cirurgicamente analisado. “Ele tem a perfeita consciência dos erros que cometeu”, nota a autora, que realizou 17 entrevistas com António Barreto, que serão depositadas a partir de 2017 no Arquivo de História Social do ICS.
“Senti que o facto de o conhecer há 40 anos era uma riqueza, um ativo que eu tinha, raro. Mas isso não me impediu de fazer uma procura íntegra da verdade”, nota a autora sobre o livro, que será apresentado no El Corte Inglés pelo historiador Rui Ramos, a 9 de junho.