Há muito que adotou como lema uma frase atribuída a Séneca: “A sorte é quando a preparação encontra a oportunidade.” No seu caso, esse encontro deu-se quando a Universidade de Harvard, no Estado norte-americano de Massachusetts, lhe abriu as portas em 1995. Ali, onde se licenciaram vários presidentes, como John Kennedy ou Obama, Mário Centeno foi aceite para fazer o doutoramento. Aquele foi o momento da oportunidade.
E quanto a preparação, o seu currículo falava por si. Aluno do quadro de honra no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), onde se licenciou em Economia com 16 valores, Harvard atribuiu-lhe, ao que diz, “um percentil de 99%”, quando avaliou os processos para escolher o grupo de alunos que aceita em cada ano.
Tinha 27 anos quando ali chegou e já era casado com uma ex-colega de faculdade. Tiago, o primeiro dos três filhos, nasceu durante os anos passados em Cambridge, onde vivia com a família, perto da universidade. Mário Centeno adaptou-se sem dificuldade ao peso daquela vetusta instituição que era, a vários títulos, esmagador. “Ninguém podia dizer ‘não fiz isto, porque…’ Nunca havia qualquer falta de material, nem que fosse de fotocópias.” E a História da América colonial misturava-se com a daquela universidade, sobretudo o Massachusetts Hall, que serviu até de quartel durante a Guerra da Independência.
Era todo um mundo que se lhe abria. Um mundo maior do que fora o seu até aí, vivido entre Vila Real de Santo António, onde permaneceu até aos 15 anos, e Lisboa, mas que aprendeu a percorrer. Mais do que tudo, aprendeu, logo numa das leituras entregues à chegada, uma atitude que lhe ficou para a vida: “É o erro que faz progredir a Ciência e o conhecimento. Se tudo estivesse certo, seria a morte da Ciência.” Na mesma linha, cita Bento de Jesus Caraça: “Se não receio o erro, é porque estou sempre disposto a corrigi-lo.”
Em Harvard, passou cinco anos. No final tinha feito amigos hoje distribuídos pelos quatro cantos do mundo, travara conhecimentos com alguns dos maiores economistas, como os seus orientadores Lawrence Katz, Caroline Hoxby e Chris Foote, com quem ainda hoje diz encontrar-se regularmente. E voltou outro.
“Harvard foi uma revolução na minha forma de ver a economia em quase tudo.” Em que sentido? “Tornei-me muito mais sensível à relação entre a economia e as pessoas.” Se para ele a economia é “uma ciência de um enorme senso comum”, escolheu estudar a microeconomia por lhe interessar a resolução dos problemas que se colocam, no quotidiano, às pessoas. “Por vezes, a macroeconomia esquece que do outro lado estão as pessoas”. Um exemplo? “Quando o anterior Governo pensou nestas medidas [austeritárias], achou que os jovens acomodariam o seu nível de vida e que ficavam cá a empobrecer. Isso não aconteceu.” Algo que um microeconomista teria previsto.
Quando regressou em 2000, entrou para o Departamento de Estudos Económicos do Banco de Portugal e tornou-se um reputado especialista em economia do trabalho, com artigos publicados em dezenas de revistas internacionais. É esta ainda hoje a sua área no ensino, dando aulas no ISEG e na Universidade Nova de Lisboa
Um liberal ‘culturalmente de esquerda’
Considerado no seu meio profissional um liberal, Mário Centeno, 48 anos, contesta, dizendo que esse é “um rótulo” que não lhe assenta. Como também não aceita encaixar-se noutros. Talvez por isso, “fusão” seja o termo que mais usa quando se procura definir o seu pensamento económico. Transige apenas num ponto: “Não podemos deixar que a sociedade esmague o indivíduo. Esse é o meu liberalismo.”
Há quem o ache mais talhado para a pasta do Emprego, mas o destino provável num futuro Governo socialista é o Ministério das Finanças. O homem que fez e refez as contas com que António Costa se apresentou às eleições e, depois, negociou um acordo à esquerda, é um independente e garante que é assim que quer manter-se, apesar de ter sido eleito deputado nas listas do PS. Aliás, ser independente “não é em si próprio bom nem mau.” Apenas tem sido essa a sua escolha. Mas garante que, no seu caso, independência nunca foi sinónimo de indiferença. E invoca os quatros anos que passou como dirigente associativo no ISEG. Um tempo em que chegou também a ser dirigente federativo de râguebi, desporto que praticou e para o qual levou os filhos.
Apesar das várias fações políticas que disputavam as eleições no ISEG, Mário Centeno diz que já então se mantinha como independente. Neste ponto, o seu relato não coincide com o de contemporâneos seus no instituto da Rua do Quelhas, que o consideravam “próximo do PCP.” São rumores que ele nega com uma dupla pergunta: “O que é ser considerado próximo do PCP? Pertencer a uma lista que tinha desde pessoas do PSD a dissidentes do PCP?” Certo é que desses tempos de faculdade ficou-lhe um amigo para a vida: Sérgio Figueiredo, atual diretor de informação da TVI. “Éramos conhecidos pelos ‘satélites’”, recorda o jornalista. “Éramos ambos independentes, embora próximos do PCP.” “Ele era mais político, e eu fiquei a negociar as dívidas com credores e fornecedores.” Hoje, Sérgio realça que “o catálogo de liberal aplicado a ele não funciona. Ele não fica refém da ideologia e gosta de pessoas”.
Se já é difícil conseguir que Mário Centeno se defina em matéria de economia, mais ainda é no que toca à política. “Culturalmente sou de esquerda”, diz Mário Centeno. Mas com isto deve apenas entender-se que sempre gostou de Zeca Afonso e, sobretudo, de Sérgio Godinho. Ou que leu Sartre.
A família, o Benfica e o restaurante do avô
“A única coisa que me define é a minha família e o Benfica”, ironiza o economista, com lugar cativo no Estádio da Luz. Recordado em Vila Real de Santo António como “um aluno brilhante”, o segundo de quatro filhos de uma funcionária dos CTT e de um bancário não é o primeiro do clã a conhecer a fama – pelo menos no Algarve. O avô, Joaquim Gomes, escapou a uma vida de sombras no fundo da mina de São Domingos, em Mértola, para se tornar dono em 1936 de um restaurante que ainda hoje conserva o seu nome, apesar de ter sido vendido após a sua morte, em 1988. Conhecidos em toda a região – e com direito a figurar num livro de cozinha da Região de Turismo do Algarve – são os choquinhos com tinta à Joaquim Gomes, prato premiado em concurso e que Ginita, tia de Mário, saberá cozinhar muito bem. Um petisco, entre outros, que Mário Centeno aprendeu a fazer nas “tardes largas” passadas com o avô na cozinha. Embora saiba que, nas artes culinárias, não é o melhor da família. A Vila Real de Santo António continua a voltar nas férias, com a mulher e os filhos adolescentes. Tinha 15 anos quando a família trocou a cidade de ruas em quadrícula por uma casa no Alto de São João, em Lisboa, para que Mário e os irmãos pudessem prosseguir os estudos. Foi o que fizeram, primeiro no liceu Patrício Prazeres e depois na universidade. O pai morreu-lhes cedo, demasiado cedo, mas, apesar das dificuldades económicas, os quatro tiraram cursos superiores e fizeram pós-graduações – o mais velho, Luís, é economista no Conselho de Finanças Públicas. “Foi tudo gerido em família”, diz.
Injustiçado no Banco de Portugal
Luís Campos e Cunha, que se tornaria ministro das Finanças de Sócrates, era vice-governador do Banco de Portugal quando Mário Centeno ali voltou, em 2000. Apesar de ter como um dos seus pelouros o Departamento de Estudos Económicos, onde Centeno viria a destacar-se, Campos e Cunha diz que não tinha com ele contacto direto. Mas, ainda que à distância, conserva dele uma impressão positiva: “Era um jovem regressado de Harvard, calmo, afável, inteligente, tecnicamente bem preparado.”
Centeno faria carreira até praticamente ao topo desse departamento, chegando a diretor adjunto em 2004. Ali se desenvolveria, ao que consta da ‘petite histoire’ do Banco de Portugal, alguma rivalidade entre ele e Pedro Portugal, um pouco mais velho do que ele, também formado nos EUA, também especialista em economia do trabalho. E as recentes eleições legislativas iriam trazer ambos para a política. Pouco depois de ser conhecido o convite a Centeno para coordenar o cenário macroeconómico do PS, era anunciado que Pedro Portugal iria dar uma ajuda ao programa económico da coligação PSD/CDS.
Mas seria também no Departamento de Estudos Económicos que Centeno sofreria o maior contratempo da sua carreira, quando em 2013 vagou o cargo de diretor. Dono de um vasto currículo, candidatou-se ao lugar, confiando que a preparação iria de encontro à oportunidade. Surpreendentemente, o concurso foi anulado pela administração do Banco de Portugal, que considerou que nenhum dos candidatos reunia as condições para ocupar o cargo. Acabou por ser nomeada, extraconcurso, Isabel Horta Correia, economista sénior da instituição.
Nos corredores, comentou-se o “castigo”, infligido pelo governador, Carlos Costa, a Mário Centeno, por este ter violado o sentido de reserva a que estava obrigado e ter feito críticas públicas à política do Governo. Terá sido a pior injustiça da sua vida? Fleumático, responde que “o sentido de justiça é uma coisa estranha”. “Tem a ver com o poder que damos aos outros para nos fazerem justiça.” Acabaria por aceitar um lugar de assessor especial da administração – cruzando-se nessa função com Vítor Gaspar, após a saída deste último do Governo, com quem diz manter “uma relação de economistas.” E, ironiza Centeno, “é sabido que os economistas discordam quase sempre.”
Se tivesse ficado com o lugar de diretor do ambicionado departamento, teria Mário Centeno aceite o convite para coordenar o cenário macro com que António Costa se apresentou às eleições de 4 de outubro? Não sabemos. Mas, ao aceitar, tornou-se um provável próximo ocupante do Ministério das Finanças. Com o qual Carlos Costa terá de saber-se articular, no futuro. Assuntos como o do Novo Banco, as necessidades de capital e a sua venda assim o obrigam.
Coordenar o cenário, negociar com os atores
“Aprendemos mais a discutir com pessoas que têm propostas diferentes da nossa”, escreveu Mário Centeno no prefácio da sua tese de doutoramento. Não imaginava então que, um dia, haveria de discutir o ‘seu’ cenário macroeconómico com propostas tão drasticamente diferentes das suas como as do PCP e do BE. E de ter de deixar cair, em nome de um acordo de governação à esquerda, a defesa dos instrumentos que crê vitais para a flexibilização do mercado de trabalho e a criação de emprego. É o caso dos mecanismos conciliatórios com vista ao despedimento por comum acordo, entretanto repescados no programa de governo do PSD/CDS, ou da redução, para patrões e empregados, da Taxa Social Única (na nova versão, limitada a trabalhadores com salários inferiores a €600 mensais).
Aliás, algumas das suas ideias não chegaram sequer a ser consideradas suficientemente de esquerda pelo PS. Como a do contrato único de trabalho, que defende no livro O Trabalho, uma Visão de Mercado, edição FFMS, onde parte do princípio de que existe uma desproporção entre os direitos dos trabalhadores mais velhos, que considera excessivos, e os dos mais jovens. Contestada pelos sindicatos, esta proposta do cenário não foi incluída, na sua formulação original, no programa socialista.
Centeno não conhecia António Costa quando aceitou coordenar o cenário macroeconómico do PS. Em contrapartida, foi ele a primeira pessoa em quem Vieira da Silva pensou quando o líder socialista procurava alguém para aquela tarefa. E foi pessoalmente convidá-lo.
Ex-ministro do Trabalho e da Economia de Sócrates, Vieira da Silva chamara Centeno, que então nem conhecia, para a Comissão do Livro Branco sobre as Relações Laborais, que funcionou entre 2006 e 2007.
Desta vez, alguém tido por liberal talvez não fosse a escolha mais óbvia para coordenar o documento base do PS, numa campanha em que Costa procurava chamar a si o eleitorado de esquerda. Mas Vieira da Silva discorda: “Isso não contou. Queríamos uma pessoa com um profundo conhecimento da economia portuguesa no seu todo. E haverá cá poucas pessoas que saibam tanto de economia do trabalho. As coisas são marcadas pela natureza ideológica, mas depois falta a parte técnica, a competência. E sinto-me muito bem a trabalhar com pessoas que não pensam exatamente como eu.”
Luís Pais Antunes, advogado, conheceu Centeno quando foi secretário de Estado do Trabalho dos governos de Durão Barroso e Santana Lopes e sempre apreciou as suas “ideias muito claras” sobre esta área. Lamenta, aliás, que muitas não tenham sido aproveitadas pelo PS. Ao amigo, com quem almoça regularmente, recomenda algum “jogo de cintura” para estar na política. Caso contrário, “arrepender-se-á”.
Também Manuel Caldeira Cabral, conhecido economista e académico que encabeçou a lista do PS por Braga, dado como ministeriável, não conhecia pessoalmente Centeno quando foi juntar-se à equipa de 12 economistas que elaborou o cenário socialista. Rapidamente viu que tinha afinidades culturais com ele, até por também ter vivido algum tempo fora do País. E criaram laços pessoais: “Ele não é do tipo de contar anedotas, mas tem um sentido de humor apurado, que usava sobretudo quando surgia algum nó nos debates. Defende apaixonadamente as suas ideias e não foge a uma polémica. Tem uma visão humanista do mercado de trabalho e está seguro quanto aos seus valores.”
Se Centeno foi sempre considerado certo no Governo, assim Costa chegasse a primeiro-ministro, houve sempre dúvidas sobre a pasta com que ficaria, se as Finanças ou o Emprego. E ele próprio recusa-se sequer a indicar a sua preferência. Aos que apontam a sua inexperiência em finanças públicas, dá o exemplo de Janet Yellen, reputada especialista em mercado de trabalho que em 2013 ascendeu à liderança da Reserva Federal norte-americana… Mas, no final da campanha eleitoral, quando aproveitou uma pausa para falar com a VISÃO, deixava clara a lógica do “seu” cenário macroeconómico: “É no Trabalho que vão estar as principais reformas de que o País precisa.” Uma lógica que sucumbiu, pelo menos em parte, à necessidade de conseguir um acordo à esquerda.