Com múltiplas apps a serem banidas ou alvo de restrições dentro das fronteiras russas, como o Tiktok, Facebook, Instagram, entre outros e vários órgãos de comunicação independentes ameaçados pelas novas leis impostas pelo governo de Putin, a desinformação é, mais do que nunca, um problema e um obstáculo à verdade. Aos russos tem sido negado um acesso livre à informação e veem-se forçados a consumir a propaganda do Kremlin, mas há quem queira e esteja a lutar pela liberdade de expressão no país.
Quando quase todas as plataformas de informação não controladas pelo governo russo foram proibidas, a Wikipédia assume-se como uma mensageira da verdade. Vários voluntários têm-se disponibilizado para escrever e editar artigos em russo na Wikipédia, com o objetivo de assegurarem que existe pelo menos uma plataforma que oferece ao povo russo uma visão não manipulada dos factos, a visão de quem está além das fronteiras.
Em fevereiro, e dentro dos limites da Rússia, a Wikipédia contou com mais de 600 milhões de visualizações nas suas páginas. No mesmo mês, 4 mil voluntários trabalharam na Wikipédia russa, assumindo-se como uma ponte entre a verdade e o povo russo numa missão que, embora aplaudida pela própria Wikipédia, não deixa de se acompanhar de muitos perigos, agora mais do que nunca.
Pavel é um dos muitos soldados da verdade que têm combatido a desinformação, assegurando que a Wikipédia oferece os factos como eles são, ou seja, afastados da visão do Kremlin. Apresenta-se ao The Examiner com um nome falso por questões de segurança. Se antes dizer as verdades menos populares podia ser perigoso, agora é certo que algo tão simples como escrever para a Wikipédia implica esconder a identidade.
“Contribuir para a Wikipédia é a melhor coisa que posso fazer”, diz, nomeadamente quando a plataforma se assume como uma “das principais fontes de informação para milhões de pessoas numa altura em que os media mais tradicionais são objeto de censura”. À sua volta vive-se um “medo generalizado da opressão em massa”, explica.
A Wikipédia russa já foi alvo de vários apoios monetários e continua a recolher ajudas, mas quem escreve e contribui com informação para a plataforma, como Pavel, não é pago pelos seus serviços, até porque muitas vezes essa contribuição não tem em vista qualquer tipo de recompensa monetária, mas antes o simples prazer de saber que se está a “fazer a coisa certa”.
Pavel é apenas um em muitos voluntários que vivem “com medo” da resposta de Putin a uma das últimas plataformas no seu país que continua a não seguir as suas instruções de como abordar a “operação militar especial” à Ucrânia, desígnio que forçou os media a adotar.
A Wikipédia é criada, editada e mantida por voluntários em todo o mundo, embora a Wikimedia Foundation ofereça apoio monetário aos seus voluntários através de doações ou treinos. Todas as informações são acompanhadas das respetivas fontes, garantindo que o leitor conhece a origem dos dados apesentados e que a plataforma se mantém fiel aos valores da verdade e transparência. É o trabalho de escrita e atualização dos muitos voluntários que garante a afluência de visualizações nas páginas do site.
Um passado censurado
O receio de que também a Wikipédia seja alvo da censura de Putin é crescente a cada semana. De facto, não seria a primeira vez que a plataforma era alvo de restrições por parte do governo russo. O Serviço Federal de Supervisão de Comunicações, Tecnologia da Informação e Meios de Comunicação de Massa, Roskomnadzor, já ameaçou bloquear o site várias vezes, o que aconteceu, de facto, em 2015 pela presença na plataforma de tópicos considerados controversos, nomeadamente informações sobre canábis.
O artigo “Invasão Russa da Ucrânia” de 2022 em inglês foi editado por 810 autores distintos e visto mais de 10 milhões de vezes, tornando-se o artigo mais popular atualmente na Wikipédia em inglês, segundo o Pageviews. O mesmo se verificou na língua russa: com 3,25 milhões de visualizações, a página “Invasão Russa da Ucrânia” de 2022, que cita 499 referências, foi o artigo mais visto.
No dia 1 de Março, e tendo em conta a grande afluência da plataforma, o governo russo enviou uma carta a ameaçar a Wikimedia Foundation alegando que o artigo sobre a invasão russa “contém mensagens falsas sobre ataques terroristas ou outro tipo de informação de interesse público disseminada sob o pretexto de informação confiável que ameaça a vida e saúde dos cidadãos”.
A resposta foi publicada num comunicado e deixou clara a posição da Wikimedia Foundation: “Nós juntamo-nos à Wikimedia Rússia, a afiliada independente da Wikimedia na Rússia, e à comunidade mais ampla de voluntários russos da Wikipédia na defesa do direito dos voluntários de continuarem o seu trabalho diligente de editar a Wikipédia com as informações mais atualizadas e confiáveis disponíveis relacionadas com a invasão russa da Ucrânia”.
O apoio além-fronteiras
A fundação com sede em São Francisco, Califórnia, relembrou ainda que não é a primeira vez que é alvo de ameaças por entidades governativas e que, tal como agora, nunca recuou ou negou “às pessoas o seu direito humano fundamental de aceder a informações livres, abertas e verificáveis “.
A própria CEO da fundação, Maryana Iskander, reconheceu, em resposta ao The Examiner, a “resiliência dos editores voluntários que continuam a trabalhar durante esta crise para garantir que a Wikipédia continua a ser uma fonte de conhecimento confiável e baseada em factos”, reforçando que é uma atitude “notável”.
O fundador da Craigslist, Craig Newmark, também se pronunciou sobre a situação dos voluntários tendo, inclusive, doado milhões para apoiar o seu esforço, segundo o que disse num email ao The Examiner. “Estou realmente impressionado com a coragem de todos os envolvidos, também muito preocupado com a segurança dos voluntários e da Wikipédia, dada a crescente intensidade da guerra de informação”.
As restrições podem ser inevitáveis
Caso o governo russo opte por bloquear definitivamente o acesso dos civis à Wikipédia, já foram divulgadas formas de contornar qualquer restrição que possa a vir a ser imposta. A própria plataforma redigiu um artigo em russo sobre como contornar estes bloqueios, que inclui opções como fazer download da Wikipédia com a possibilidade de navegação offline ou aceder ao site online usando um navegador anónimo.
Um dos voluntários entrevistados pelo The Examinar admitiu, inclusive, estar a preparar-se para um amanhã mais restrito e censurado com a proibição do acesso à Wikipédia. Estas restrições podem não ser diretamente dirigidas à plataforma, mas antes envolverem a manipulação dos seus voluntários através de ameaças. “Não descarto a hipótese de amanhã os serviços especiais russos tentarem influenciar o conteúdo da Wikipédia, coagindo os participantes”, disse. “Vemos na Rússia os media que transmitam um ponto de vista que não coincide com o ponto de vista de Putin a fecharem ou suspenderem atividade. Será que tal destino aguardará a Wikipédia? Provavelmente sim”.
Numa tentativa de impedir o bloqueio de toda a Wikipédia russa, alguns voluntários podem sentir-se tentados a ceder a algumas das exigências do governo russo, uma decisão com a qual muitos não concordam, acusando-a de ser um “ataque à neutralidade”, diz Valentin, um trabalhador de Tecnologia da Informação, em São Petersburgo, ao The Examinar, acrescentando “e isso é sagrado”. Qualquer negociação ente os dois lados é agora mais do que nunca especialmente difícil tendo em conta a situação delicada atual que leva a que “ninguém queira negociar”.
A guerra da informação e a procura pela verdade continua não apenas entre pró-ucranianos, mas também entre pró-russos. “Parte apoia a Rússia, parte a Ucrânia, parte distancia-se da guerra por inúmeras razões”, explica um dos voluntários ao The Examiner. Os voluntários que procuram a verdade existem dos dois lados do conflito.
O The Examinar verificou as identidades e a ocupação dos voluntários através de prints de ecrã tirados durante o seu trabalho enquanto escritores e editores da Wikipédia.
O governo ucraniano tem, desde 2020, sido o principal promotor de uma campanha “enriquecer a Wikipédia com informações imparciais sobre a Ucrânia e o mundo”, como escreve em comunicado. “Em cooperação com a ONG Wikimedia Ucrânia, o MFA da Ucrânia está a desenvolver vários projetos conjuntos para incentivar as pessoas a compartilhar os seus conhecimentos sobre a Ucrânia na Wikipédia. A iniciativa incluirá conteúdo em ucraniano e outros idiomas”.