Num editorial publicado ontem no The Washington Post, Jeff Bezos, que detém aquela publicação há 11 anos, tentou abafar a polémica criada na semana passada depois de ser tornado público que, pela primeira vez em 36 anos, o Post não iria apoiar nenhuma candidatura presidencial. O ato é muito comum nos media americanos, sobretudo nos considerados de referência. Segundo informação revelada pelo The Washington Post, o conselho editorial já tinha escrito o artigo a apoiar a candidatura de Kamala Harris, mas terá sido impedido de o fazer pelo dono da publicação.
O dono da Amazon rejeita, no editorial que assinou ontem à noite, que a decisão de não publicar o apoio à candidatura democrata fizesse parte de um “quid pro quo” entre a Blue Origin, a sua empresa de foguetões e o ex-presidente Donald Trump – alegadamente, é exatamente isso que estará em cima da mesa. Mas reconheceu que o diretor da Blue Origin, Dave Limp, se encontrou com o candidato republicano na sexta-feira, precisamente o dia em que o editor do Post, Sir William Lewis, anunciou que não haveria apoio formal por parte da direção do jornal. “Não há qualquer ligação” entre os dois eventos, garante Bezos, e “qualquer sugestão em contrário é falsa”.
O empresário justifica a sua oposição ao apoio a qualquer candidatura porque estes “criam uma perceção de parcialidade”. E acrescenta: “Gostaria que tivéssemos feito a mudança antes, num momento mais distante das eleições e das emoções que as rodeiam”. No entanto, garante que “foi um planeamento inadequado, e não uma estratégia intencional.”
Importa referir que nos EUA as secções de opinião e a redação de qualquer grande publicação são duas entidades totalmente separadas – quem coordena a secção de opinião são articulistas, não obrigatoriamente jornalistas. A redação continua, seja qual for a decisão dos colunistas do jornal, a fazer a cobertura da campanha presidencial de forma isenta e objetiva e sem refletir aquilo que é o endosso feito pelo conselho editorial.
O apoio de um candidato por parte de publicações de referência é, digamos, uma tradição. E, alegadamente, Jeff Bezos terá tido um papel significativo na quebra dessa tradição. Já o empresário garante que “os Americanos não acreditam nos media tradicionais” e que um endosso por parte do jornal não levaria qualquer eleitor a tomar uma decisão.
Na sequência da não publicação de um apoio por parte da direção do Post, Robert Kagan, um dos mais reconhecidos editores e colunistas do jornal, apresentou a sua demissão. Depois dele, pelo menos mais quatro demissões já foram anunciadas, entre elas a de David Hoffman, vencedor de um prémio Pulitzer, e que destacou “a ameaça muito real de autocracia na candidatura de Donald Trump”.
“Acho inconcebível que tenhamos perdido a nossa voz neste momento perigoso. Posiciono-me contra o silêncio face à ditadura”, escreveu Hoffman na sua carta de demissão, que partilhou nas redes sociais.
A imprensa norte-americana fala de mais de 200 mil assinaturas canceladas por parte de leitores do Washington Post desde sexta-feira e, num artigo assinado por 17 colunistas do jornal, a decisão da direção é adjetivada de “erro terrível”, que “representa um abandono das convicções editoriais fundamentais do jornal”, sobretudo numa altura em que um candidato defende posições que ameaçam diretamente a liberdade de imprensa e os valores da Constituição”.
Até Bob Woodward e Carl Bernstein, os jornalistas que investigaram o caso Watergate, em 1972, vieram a público para se manifestar contra a decisão da direção do jornal.
A campanha de Trump não deixou de aproveitar o momento e fez de imediato um comentário oficial: “O Washington Post decidiu acabar com seus apoios presidenciais para sempre em vez de apoiar Harris-Walz”.
Recorde-se que, nos EUA, um número cada vez maior de publicações tem sido adquirida por multimilionários ao longo dos últimos anos – sobretudo após a crise do sub-prime – , entre elas o Los Angeles Times, o Boston Globe ou o Las Vegas Review-Journal. As movimentações têm gerado controvérsia na indústria do jornalismo, com cada vez mais vozes a levantarem-se contra o facto de estas aquisições deixarem as redações à mercê das vontades dos proprietários.