Durante mais de 50 anos, a autenticidade do manuscrito conhecido como Mapa de Vinland foi posta em causa. O mapa, supostamente oriundo da Europa do século XV, representa a América do Norte – o que o tornaria numa das representações mais antigas do “Novo Mundo”. A descoberta colocava os vikings, tribos medievais da Escandinávia, e não Cristóvão Colombo, como os verdadeiros “descobridores” da América.
A autenticidade do mapa sempre esteve envolta em controvérsia: alguns historiadores já tinham apontado inconsistências com outras fontes e levantado a questão da veracidade do documento. Mas agora a Universidade de Yale vem acabar com todas as dúvidas. “O Mapa de Vinland é falso”, diz Raymond Clemens, curador de livros antigos e manuscritos na Biblioteca Beinecke de Livros Raros e Manuscritos de Yale, onde está guardado o mapa. “Não há qualquer tipo de dúvidas. Esta nova análise deve pôr um ponto final no assunto”.
Em 2018, confirmou-se que o pergaminho usado era realmente original do século XV. Buracos idênticos nas folhas permitiram aos historiadores confirmar que a folha de pergaminho foi, provavelmente, retirada de uma enciclopédia medieval chamada “Speculum Historiale”. Agora, uma equipa de arquivistas e conservadores, que observou os dois documentos ao mesmo tempo, confirmou, depois de uma análise aos metais presentes na tinta usada no mapa, que esta continha um composto de titânio que só começou a ser utilizado em tintas em 1920.
Foi também revelado que uma inscrição em latim no verso do manuscrito tinha sido alterada intencionalmente, com tinta moderna. “A inscrição alterada parece certamente uma tentativa de fazer crer que o mapa foi criado ao mesmo tempo que o Speculum Historiale”, disse Clemens na declaração. “É uma prova poderosa de que se trata de uma falsificação e não de uma criação inocente de um terceiro por indicação de outra pessoa, embora não nos diga quem cometeu a fraude”.
Uma inscrição ao lado da costa norte americana, que dizia “Vinlanda Insula“, a sul da Gronelândia, era a prova de que os vikings tinham chegado ao continente americano no século XV. De facto, o desenho cartográfico desta ilha foi outro dos aspetos que levantou dúvidas. A Gronelândia, a maior ilha do mundo, era na altura desenhada como uma península, por falta de conhecimentos geográficos. No entanto, no Mapa de Vinland, a Gronelândia é “suspeitamente semelhante ao que podemos ver em mapas modernos”, diz Gisli Sigurdsson, professor de estudos nórdicos no Instituto Arni Magnusson, na Islândia. “A Gronelândia é tão parecida à verdadeira Gronelândia, que é difícil de acreditar que alguém na Idade Média conseguisse desenhar um mapa assim”, continua.
Presença dos vikings na América não é novidade
Os arqueólogos e historiadores não têm dúvidas de que os vikings estiveram, de facto, na América do Norte. Em 1960, foi descoberto um sítio arqueológico chamado L’Anse aux Meadows, na ilha da Terra-nova, no Canadá. No local – hoje considerado Património Mundial da Humanidade – foram encontrados restos de uma aldeia viking do século XI, incluindo oito estruturas em madeira idênticas às encontradas na Gronelândia e Islândia, provenientes do mesmo período. O aldeamento, apesar de reduzido, estava equipado com edifícios de habitação, uma forja e oficinas usadas provavelmente para trabalhar com madeira e reparar navios.
A descoberta causou sensação na altura, apesar da presença destes povos na América do Norte ter sido curta, e confinada à província canadiana da Nova Escócia.
Enquanto o sítio arquológico de L’Anse aux Meadows, descoberto pelos exploradores noruegueses Helge e Anne Stine Ingstad, confirma verdadeiramente as viagens feitas pelos povos nórdicos ao “Novo Mundo”, outras “descobertas” têm estado, tal como o Mapa de Vinland, envoltas em controvérsia.
É o caso da Pedra Rúnica de Kensington, descoberta em 1898 pelo imigrante sueco Olof Öhman, no Minnesota. A pedra com runas escandinavas gravadas na superfície seria mais um vestígio das explorações vikings na América do Norte. No entanto, após quase um século de análises e estudos feitos sobre o assunto, a comunidade académica continua com dúvidas de que seja um artefacto genuíno e não uma falsificação.
Mas então, qual é a verdadeira origem do mapa?
Os primeiros registos do mapa são de 1957. Na altura, foi oferecido ao British Museum, da parte de Enzo Ferrajoli de Ry, um negociante espanhol. O museu, com base em suspeitas de que o mapa fosse uma falsificação, recusou o negócio. Depois, nos anos 60, foi adquirido por Laurence C. Witten III, comerciante de livros raros e colecionador de antiguidades, por 3500 dólares. Ao início, Witten não revelou quem lhe tinha vendido o mapa, mas anos mais tarde, disse que o tinha adquirido de Ferrajoli de Ry. Eventualmente o filantropo Paul Mellon comprou o mapa por 300.000 dólares e doou-o à Universidade de Yale.
Talvez Witten tivesse razões para não revelar a início de quem tinha adquirido o mapa, porque em 1964, o The New York Times publicou uma reportagem em que noticiava que de Ry tinha sido condenado por roubo de manuscritos.
Esta sucessão de eventos culminou com a Universidade de Yale a revelar a descoberta ao público, em 1965, tendo o mapa chegado mesmo a aparecer na primeira página do The New York Times.
Com a questão da veracidade do mapa assim resolvida, surge uma outra pergunta: porquê? Lisa Fagin Davis, diretora executiva da Academia Medieval da América, e especialista em manuscritos, afirma: “A motivação para falsificação de manuscritos é geralmente financeira ou política. No caso do Mapa de Vinland, ambas são possíveis.”
Tanto o Mapa de Vinland como a Pedra Rúnica de Kensington são, para alguns especialistas, “sintomas” de um fenómeno nacionalista surgido no século XIX que procurava enaltecer uma visão eurocêntrica (e branca) da História, e retirava do mundo medieval viking a sua inspiração. Dorothy Kim escreveu em 2019, para a revista Time, que a história medieval dos vikings “funciona hoje em dia como uma referência para os supremacistas brancos. Juntamente com muito mais do mundo medieval europeu, o passado viking faz parte do imaginário visual e textual padrão da extrema-direita. (…) Mas o medievalismo viking da extrema-direita não se baseia em exatidão histórica. Pelo contrário, é utilizado para criar narrativas (…) que ativam o ódio violento”.
“O Mapa de Vinland é apenas um acontecimento na longa série de falsificações que demonstram uma presença medieval europeia em solo americano”, diz Dale Kedwards, historiador de mapas no Instituto Arni Magnusson. “[Essa narrativa] é usada para enfraquecer a história dos Povos Indígenas Americanos, e está ligada a um tipo de historiografia partidária e nacionalista que se está a desenvolver na Europa”.
Elizabeth Ashman Rowe, professora de História Escandinava na Universidade de Cambridge, é da mesma opinião. Para Rowe, quem forjou o mapa talvez tenha sido motivado por um “desejo de enaltecer a importância internacional das explorações vikings numa altura em que a Noruega era um dos países mais empobrecidos da Europa”. Narrativas como esta desacreditam as descobertas e a influência hispânica e italiana de exploradores como Cristóvão Colombo e outros.
A razão para a falsificação do mapa talvez nunca venha a ser conhecida. Mas o Mapa de Vinand tornou-se um objeto histórico por si só, e “um exemplo de uma falsificação que teve grande impacto a nível internacional”, afirmou Clemens. Com a polémica resolvida, coloca-se um ponto final numa discussão que durou mais de 50 anos. “Objetos como o Mapa de Vinland ocupam muito ‘espaço intelectual’. Não queremos que isto continue a ser uma controvérsia”, conclui.