Yuto Naganuma, de 26 anos, olha silenciosamente para as ruínas da escola onde o seu irmão mais novo morreu no devastador tsunami de 11 de março de 2011, no Japão, um dia que nunca esquecerá. Tinha 16 anos na altura, o irmão apenas oito – uma entre as 74 crianças e 10 funcionários da instituição mortos numa das piores tragédias do planeta, que deixou cerca de 18 500 pessoas mortas ou dadas como desaparecidas.
“Perdi a minha família, a minha comunidade. Coisas que construíram quem eu sou. Senti o tsunami cortar metade do meu corpo”, diz Yuto, citado pela agência de notícias AFP – depois de lembrar que a sua avó e a sua bisavó também morreram na mesma ocasião, enquanto esperavam pelo autocarro que traria o irmão da escola. E também de confessar que se sente um pouco culpado por ter sobrevivido, ele que até sentira um pequeno abalo uns dias antes, numa praia local, algo que haveria de interpretar como um aviso que não levou a sério.
Perguntando-se porque tinha sido poupado, acabou a estudar gestão de catástrofes – e a fazer palestras em escolas sobre o assunto. “Sabemos que vivemos num tempo entre desastre. A forma como passamos este tempo altera significativamente a probabilidade de sobrevivência quando tivermos de enfrentar a próxima tragédia”.
Flashbacks e noites sem dormir
Não é caso único. Oiça-se Nayuta Ganbe, de 21 anos, que também tem vindo gradualmente a falar sobre a sua experiência durante a tragédia e contou agora a sua história à Reuters. Há dez anos, perante o aviso de tsunami emitido na sequência do tremor de terra, correu a abrigar-se na escola com a mãe e a irmã. Deviam subir para o terceiro andar, mas Nayuta afastou-se uns momentos para ir buscar os sapatos cá fora, já que, como é hábito entre os alunos japoneses, o calçado fica sempre à entrada. Quando deu por ela, estava a segurar uma porta para cinco homens que corriam em direção à escola.
Uma torrente de água misturada com lodo cheio de óleo e os mais diversos detritos acabou por os arrastar – e, apesar de estar num terreno ligeiramente mais elevado, Nayuta também não demorou a sentir a água pelos tornozelos. Um dos homens que estava a ser levado pela corrente ainda esticou o braço na sua direção, a miúda bem tentou agarrá-lo, mas…
O rescaldo do desastre não foi menos traumático. Nayuta recorda-se de ter encontrado um corpo uns dias depois, e partes de outro, enquanto fazia o seu caminho para a escola. Durante vários dias, não comeu nada e, entretanto, tornou-se normal não falar sobre isso. Até que, três anos após o desastre, foi-lhe pedido para dar uma palestra, elencando os muitos flashbacks e as noites infindas sem dormir. Agora, estuda sociologia de desastre, investigando o que torna as pessoas mais propensas a tomar as medidas certas para se salvarem perante uma crise assim.
Silêncio e tanta gente
O tsunami marcou indelevelmente não só as crianças apanhadas no seu caminho direto, mas também as que estavam nas proximidades da central nuclear de Fukushima, que remataria a tragédia ao mais alto grau.
Foi o que aconteceu a Hazuki Shimizu, que vivia a poucos quilómetros dos reatores que simplesmente entraram em fusão após o tsunami ter sobrecarregado o sistema de arrefecimento da central – e que acabou a ter de fugir dali com a mãe e a irmã, no dia seguinte, só parando nos arredores de Tóquio, a 300 quilómetros dali. “Não podíamos fazer mais nada”, acrescenta a jovem, agora com 27 anos, ao seu depoimento também recolhido pela AFP.
É verdade que ficou a salvo do desastre, mas não ao abrigo da dor. A família foi mantida num parque de estacionamento e monitorizada para se avaliarem os seus níveis de radiação. Inscreveram-na numa nova escola, mas Hazuki notou logo que os colegas se calavam perante qualquer alusão ao desastre. “Não sabia porque as pessoas não falavam sobre isto. Será que não se importavam? Senti-me muito isolada”. Mais tarde, acabou por regressar à região onde morava – e agora trabalha para um grupo que ajuda a preservar as memórias do tsunami. “Há muitas pessoas a enfrentar dramas pessoais. Precisamos ouvir as suas vozes e estar ao seu lado”.
Carta a um desaparecido
“Migaku-san, deixei as tuas luvas sujas e os teus sapatos junto à porta. Não queria que te preocupasses com a confusão que há em volta quando voltares e por isso deixo-os logo à entrada”, escreveu Sachiko Kumagai no recado deixado para o seu marido, depois de ele se ter perdido no tsunami.
Na altura, quando a maré finalmente baixou, o mundo em volta simplesmente desmoronara-se. Camiões e casas tinham sido varridos como brinquedos, deixando os vivos num meio de um gigante lamaçal, entre detritos e mortos. Dez anos depois, os sobreviventes ainda procuram os seus desaparecidos – um luto nunca feito, uma dor nunca ultrapassada. Há um pai que vive sozinho, rodeado apenas por livros sobre a desordem de então. Há uma mãe que vive assombrada pelos gritos de crianças levadas pela enxurrada, entre eles o da sua filha, então com seis anos. E há ainda uma mulher que nunca perdeu a esperança que o marido voltasse, rabiscando agora recados para ele num calendário, onde escreve depois a resposta imaginária que gostaria de receber.
Sem intenção de regressar
Uma década depois, o país prepara-se agora para assinalar o triste dia com um evento com alguma pompa e circunstância, que será transmitido para todo o país, a partir de um teatro em Tóquio. Mas para muitos sobreviventes, o dia será marcado por orações silenciosas e visitas familiares a cemitérios.
O pior, segundo assinalaram já uma série de grupos de ativistas locais, é que os efeitos daquele acidente nuclear serão sentidos durante décadas, no futuro, contradizendo a narrativa oficial do governo japonês de que a crise foi largamente ultrapassada. Se muitos japoneses seguiram em frente com as suas vidas, nas áreas próximas da central, a recuperação é, como se constata, um processo em construção – depois de as autoridades terem ordenado à população das cidades vizinhas que evacuassem o local, estabelecendo depois zonas de exclusão em redor da central. Qualquer coisa como 165 mil pessoas.
Uma questão de todos?
Depois, os esforços de descontaminação permitiram o regresso a muitas das áreas afetadas, mas ainda há 37 mil pessoas listadas como retiradas – e que não têm intenção de regressar. É que, como sublinhou Shaun Burnie, um especialista nuclear da Greenpeace Alemanha, à estação televisiva Al Jazeera, “mesmo agora, os níveis de radiação em muitas das antigas zonas de exclusão permanecem incomodamente elevados”. O seu termo de comparação é simples de entender: “se estes níveis de radiação fossem detetados num laboratório, teria de ser fechado e descontaminado”.
Algo que explica na perfeição o cuidado de Ayumi Ilda, uma jovem mãe que vive na cidade costeira de Iwaki, a cerca de 40 quilómetros da região então destruída, a tentar sempre comprar alimentos de zonas distantes do Japão e a procurar encontrar parques infantis com os mais baixos níveis de radioatividade – além de levar os seus filhos todos os anos ao médico à procura de quaisquer sinais de sinais de possível cancro na tiroide. “Eles têm de ser o principal foco para o futuro”, defende Ayumi, depois de também aceder a contar a sua experiência à Reuters. “Mas isto não devia ser visto como uma questão energética e ambiental apenas para os japoneses. Devia ser considerado por todos”.