Contar histórias é condição inerente ao ser humano. Há milhares de anos que tecemos malhas densas de relatos para explicar o inexplicável, imortalizar heróis e entes queridos, embalar crianças, sonhar mundos utópicos e questionar os valores daquele onde vivemos.
Mitos, lendas, contos, parábolas, relatos de batalhas, de conquistas, de derrotas, de aventuras e desventuras, de amores e desamores, de procuras e encontros têm sobrevivido desde a alvorada dos tempos, adaptando-se aos mesmos, qual tapeçaria que, a cada ano que passa, ganha uma nova figura, uma nova árvore, um novo pássaro, um novo céu.
Contar uma história é, afinal de contas, dar forma a memórias, prestando-lhes um dos tributos mais dignos: o da imortalidade.
Foi porventura com esta ideia em mente que o curador e historiador de arte Nuno Faria (NF) desenhou o projeto expositivo com o qual concorreu ao concurso público internacional que fez de si, desde março deste ano, o novo diretor do Museu da Fundação Arpad Szenes — Vieira da Silva (FASVS).
Oito meses mais tarde, as ideias tomaram oficialmente forma e, no mês em que comemora 30 anos de vida, o Museu da FASVS inaugura 331 Amoreiras em Metamorfose, que visa assinalar, não só o 30º aniversário da abertura do Museu, como o início da programação de NF à frente da instituição.
Projeto expositivo de mais de um ano, composto por cinco “capítulos”, 331 Amoreiras em Metamorfose visa assinalar não só o 30º aniversário da abertura do Museu da FASVS, como o início da programação de Nuno Faria à frente da instituição
E porque, como assegura, o objetivo é que “o museu conte histórias, não só as da História da Arte, mas também outras”, o próprio título foi pensado como a linha inicial de uma narrativa, contada até 31 de dezembro de 2025, ao longo daquilo que poderíamos chamar cinco “capítulos”.
Isto é, em vez de cinco exposições programadas ao longo de um ano, NF concebeu uma única exposição, com obras de 84 artistas, declinada em cinco momentos, divididos equitativamente até ao final de 2025. “De uns para outros, algumas obras são substituídas, mas outras permanecem, mantendo a continuidade do todo”, acrescenta o novo diretor.
“O projeto é, em si mesmo, uma metamorfose”, explica NF, sublinhando que o objetivo é “reencontrar a vocação oral do espaço Museu enquanto lugar onde as pessoas também vêm ouvir historias”.
A mesma casa, uma nova imagem
Com obras de mais de 28 artistas, Tecido do Mundo é então o primeiro momento expositivo de 331 Amoreiras em Metamorfose, inaugurado a 20 de novembro e patente até 9 de fevereiro de 2025.
As obras escolhidas e o diálogo que estabelecem entre si remetem para forma como o têxtil “impregna toda a nossa existência”, bem como para o facto das práticas a ele associadas estarem relacionadas com a narração de histórias.
A primeira que se quer contar é a das próprias instalações, inauguradas em novembro de 1994 no antigo edifício da Real Fábrica dos Tecidos da Seda, atribuído ao arquiteto Carlos Mardel.
Em frente desta, onde atualmente se encontra o Jardim das Amoreiras, reza a história que o Marquês de Pombal mandou plantar precisamente 331 amoreiras para alimentar a indústria da seda que então se fixara nesta zona da capital.
“Quisemos devolver a esta praça maravilhosa a fachada do edifício e inscrever ali o seu nome”, revela NF, apontando para as grandes letras de metal desenhadas por Pedro Falcão, designer responsável por redesenhar a identidade visual da Fundação e do Museu.
E porque “a relação entre o interior e o exterior é muito importante”, após deixarem para trás o Jardim das Amoreiras, atravessarem a porta de entrada e chegarem ao novo espaço da loja do museu, desenhado por Fernando Brízio, os visitantes são agora acolhidos por uma obra da artista têxtil Alice Aranha.
Centenas de fios de seda tingidos com folhas de árvores do jardim compõem uma autêntica membrana de ligação entre a arte que habita as paredes do museu e o jardim que floresce lá fora.
A arte de mudar de forma
Porém, Tecido do Mundo inicia-se apenas no primeiro andar, onde os visitantes são acolhidos por Le Retour d’Orphée, obra “sofrida”, nas palavras do diretor, pintada por Vieira da Silva após a morte de Apard Szenes.
O quadro divide a parede com parágrafos de Metamorfoses (8 d.C.), de Ovídio, intimamente relacionados com os valores defendidos pela nova direção. “Tal como a dúctil cera se molda sempre em novas figuras, e não permanece como era, nem conserva as mesmas formas e no entanto, é sempre a mesma, assim a alma é a mesma, é o que digo, mas transmigra para uma variedade de formas”.
A nova alma do Museu da FASVS é contemporânea, capaz de vir ao seu tempo, tempo esse marcado por um hibridismo que pede um “imaginário informe”, segundo NF, integrado num espaço com “leituras claras e lúcidas”, mas que não sejam dominantes.
“Quero que o discurso seja uma abertura e, quando falamos de abertura, falamos de possibilidades muito amplas de interpretação”.
Seguem-se, entre outras obras, duas telas de Bruno Pacheco, artista que há vários anos tem vindo a dedicar-se ao tema da metamorfose, um desenho de Apard Szenes que retrata Vieira da Silva a metamorfosear-se em crisálida, uma tela de Rui Moreira, na qual a representação do têxtil tem grande relevância, e um vestido de Vieira da Silva bordado a seda, depois oferecido por esta à amiga Lourdes de Castro, que o usou na sua retrospetiva em Serralves.
Ainda na primeira sala, destaque para os bordados de Fernando Marques Penteado e Ilda David’, bem como numerosas representações de árvores da autoria de Apard Szenes, Vieira da Silva, Dominguez Alvarez, Ana Hatherly, Ângelo de Sousa e Maria Capelo.
De Lisboa para o Guggenheim
Na segunda sala somos recebidos por uma tapeçaria em ponto de Arraiolos, de Toma [Tomás Cunha Ferreira e Bárbara Costa Lima], dupla que se tem empenhado em criar uma rede de trabalho na região, recuperando um elemento fundamental da tradição.
A dominar o espaço, no entanto, são, inevitavelmente, Atelier Lisbonne (1934-35), uma das obras mais importantes de Vieira da Silva, nesta exposição acompanhada de seis estudos, e Composition (1936), também da sua autoria.
Após o dia 9 de fevereiro, ambas seguirão para duas exposições, a decorrer em abril de 2025, nos museus Guggenheim de Veneza e de Bilbau, no âmbito de um programa de internacionalização da obra da pintora portuguesa. “Parece que há uma curiosidade renovada em relação à artista. Isso poderá trazer novas leituras, o que é muito interessante”, comenta NF.
De seguida, naquele que pode ser considerado o espaço mais contemplativo da exposição, graças aos tons claros, às formas depuradas e ao conteúdo mais conceptual das peças ali apresentadas, surgem obras assinadas por nomes como Ana Harthely, Elisa Strinna, Helena Valsecchi, Ana Jotta e Fernanda Fragateiro, responsável por criar, especificamente para a ocasião, a obra inédita Texto sem palavras, 5.
Após uma zona dedicada ao rosto e ao retrato, a mostra termina numa sala que “tematiza a relação entre têxtil e pintura”, na qual a representação de Vieira da Silva dos toldos e do vestuário das mulheres da Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, convive com sete estudos seus para tapetes, obras de Sonia Delaunay, Josef Albers e Sol LeWitt.
Numa era em que cada vez mais museus são de grande escala, o “pequeno” museu Vieira da Silva continua a assegurar a manutenção de uma relação mais íntima com o público.
A visita a Tecido do Mundo tem a duração e a intensidade que cada um lhe quiser dar, além de que, no futuro, contará com o diretor do museu, e alguns dos próprios artistas como guias.
A fim de derrubar as barreiras que ainda parecem existir entre os cidadãos e os museus, Nuno Faria empenhou-se ainda em assegurar que a entrada no museu da FASVS é gratuita para os residentes em Lisboa e para todos os outros ao domingo.