Tudo começou com um artigo publicado na revista Vogue India, em outubro de 2017, no qual Priya Ramani contava a história da sua primeira entrevista de emprego. Em 1993, a jornalista de 23 anos preparava-se para a sua entrevista com um editor mais velho, na casa dos 40, cujo trabalho a jovem muito admirava. Ansiosa por causar uma boa primeira impressão, Priya conta que cedeu aos estranhos pedidos do homem: subiu ao quarto dele no hotel onde tinham combinado a entrevista, sentou-se numa pequena mesa com ele e recusou uma bebida, enquanto o editor bebia um copo de vodka. O que era suposto ser uma entrevista de emprego transformou-se num encontro romântico – não consensual – no qual o seu futuro patrão cantou músicas hindus e convidou Priya para se sentar na cama que estava ao seu lado. A jornalista acabou por escapar do quarto antes disso acontecer, e aceitou o emprego. “Trabalhei para ti durante muitos meses, mas prometi a mim mesma que nunca estaria a sós contigo outra vez na minha vida”, escreveu a jornalista, sem nunca revelar a verdadeira identidade do homem.
Este artigo, que se tornou viral nas redes sociais por toda a Índia, chamava-se Para os Harvey Weinsteins deste mundo. Há três anos, foram precisamente as denúncias de abusos sexuais contra Harvey Weinstein, um ex-produtor cinematográfico, que fizeram nascer o Movimento #MeToo. O movimento popularizou-se nas redes sociais através da denúncia espontânea e em massa por mulheres de casos de violência sexual, levando a reformas políticas e ao julgamento de homens acusados de assédio sexual por todo o mundo. Graças a este seu artigo, escrito quando o movimento se começava a propagar por todo o mundo, Priya Ramani tornou-se numa das principais caras do #MeToo na Índia, juntando-se a uma corrente de denúncias de mulheres de todo o país.
Apesar do alcance deste seu testemunho pessoal, a jornalista de Mumbai não divulgou a identidade do seu antigo patrão durante um ano. Até que, em outubro de 2018, Priya utilizou o Twitter para revelar que o homem era M. J. Akbar – antigo editor fundador do The Telegraph India e, na altura, Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Narendra Modi. O caso rapidamente se tornou ainda mais mediático. Akbar, que estava sob fogo da imprensa indiana depois de ser acusado por outras doze mulheres de assédio e violência sexual, acabou por se demitir do cargo no governo. No entanto, o ex-ministro não só negou todas as acusações realizadas contra si, como intentou um processo contra Priya Ramani por difamação, com base no artigo publicado pela jornalista na Vogue India.
Uma vitória para as mulheres da Índia
No dia 18 de fevereiro, passados mais de dois anos desde que Akbar intentou a ação em tribunal, a decisão foi finalmente anunciada pelo juiz Ravindra Kumar Pandey. “Por muito que certas pessoas sejam respeitadas na sociedade, elas podem ser extremamente cruéis para as mulheres na vida privada”, escreveu Pandey, afirmando que “chegou a altura de a nossa sociedade compreender o abuso e assédio sexual, assim como as suas implicações nas vítimas.” Nesta sentença, que procura contrariar o problema marcante da desigualdade de género na Índia – em 2020, o país ficou colocado em 112º lugar no Índice Global de Desigualdade de Género, num total de 153 nações -, o juiz sublinhou que “as mulheres não podem ser punidas por levantarem as suas vozes contra o abuso sexual sob o pretexto de difamação” e que “o direito à reputação não pode ser protegido a custo da vida e da dignidade de uma mulher.” A mensagem foi clara: o ex-ministro não tinha razão nas suas pretensões e Ramani tinha todo o direito em levantar este caso de assédio sexual, mesmo passados 25 anos.
Assim, a sentença tem sido considerada como uma vitória para todas as mulheres da Índia. Perante um opositor extremamente poderoso – de acordo com um relatório, Akbar conta com uma equipa de 97 advogados, a advogada de Ramani, Rebecca John, considerou este “um dos casos mais importantes da minha carreira.” Em entrevista ao Scrollin, a advogada sublinhou que o caso “passa uma mensagem maior” do que aquela que se lê no veredicto do juiz: “foi um caso em que uma mulher corajosa usou a plataforma #MeToo para desvendar o que lhe aconteceu na sua primeira entrevista de emprego, e que enfrentou acusações de difamação por fazê-lo.”
A vitória também tem sido celebrada por diferentes órgãos de comunicação do país, solidários com a jornalista. “Talvez todas as mulheres da Índia, novas e velhas, anónimas e conhecidas, que criaram uma lista de perseguidores e predadores no Movimento #MeToo, também estejam a sentir esta vitória. Sentem neste momento que o problema para o qual estão a tentar chamar a atenção finalmente foi ouvido”, escreveu Urvashi Butalia no Indian Express. Perante dezenas que casos de abuso sexual contra mulheres na Índia que ainda estão por responder, a jornalista não deixou de celebrar esta vitória da sua colega de profissão, uma vez que “nos dá esperança para o futuro e para todas aquelas mulheres cujo silêncio preenche o espaço onde trabalham.”
No entanto, apesar de Priya Ramani ter confessado à CNN, no dia da vitória, que não consiguia parar de sorrir hoje” e que “esta vitória pertence a toda a gente que participou no Movimento #MeToo”, a jornalista deixou à Scrollin o aviso de que, na realidade, este não deixa de ser “um movimento elitista, uma vez que exclui mulheres de comunidades marginalizadas.” Assim, o próximo passo desta luta, afirmou Ramani, passa pela união e solidariedade das mulheres da Índia nas suas exigências, mobilizando-se para um futuro “livre de violência e intimidação” – este é apenas o primeiro de muitos passos necessários.