Perante a pandemia da Covid-19, os países do mundo estão numa corrida contra o tempo para imunizar a sua população. No entanto, enfrentam diferentes obstáculos a este processo, como a falta de doses necessárias para vacinar todas as pessoas, longos processos burocráticos, ou a descrença nas próprias vacinas. Casos de sucesso, como Israel, que já vacinou mais de 16% da sua população, contrastam com países como França, onde foram vacinados pouco mais de 0.01% dos seus cidadãos. Por sua vez, Portugal já vacinou mais de 75 mil pessoas – cerca de 0.8% dos portugueses.
Esta não é a primeira vez, na história das doenças infecciosas, que os governos tiveram de agir rapidamente para imunizar a sua população o mais rápido possível. E há bons exemplos do passado que, apesar das suas diferenças, podem dar boas ideias para o presente e futuro – como foi o caso da grande campanha vacinação de Nova Iorque, em marco de 1947.
Há quase 74 anos, os hospitais de Nova Iorque começaram a receber vários pacientes com sintomas de dores de cabeça, de corpo e erupções cutâneas – os sintomas da varíola, uma doença altamente infecciosa que matou mais de 300 milhões de pessoas apenas no século XX. A cidade entrou imediatamente em alerta: já não se registavam surtos de varíola em Nova Iorque desde antes da segunda guerra mundial, conta o New York Times. O paciente zero era o empresário Eugene Le Bar, que tinha chegado à cidade depois de uma longa viagem de autocarro desde a Cidade do México.
A ação implacável de Weinstein
Mal teve conhecimento do potencial surto de varíola na cidade, o Comissário de Saúde de Nova Iorque, Israel Weinstein, não perdeu tempo para agir. A maioria dos nova-iorquinos já tinha sido vacinada para a doença, mas a proteção durante toda a sua vida não estava garantida: a imunidade da vacina, desenvolvida nos finais do século XVIII, esgotava-se com o passar do tempo. Assim, era urgente voltar a vacinar toda a população com a maior rapidez possível.
Weinstein anunciou de forma eficaz e direta o início da campanha de vacinação, que incluía todos os 7.8 milhões de habitantes da cidade. “Fiquem alertas. Fiquem a salvo. Sejam vacinados!” era a mensagem do Comissário, que apresentava uma vacina que, tendo em conta as limitações científicas da época, ainda tinha bastantes efeitos secundários. Ainda assim, Weinstein considerou que os potenciais efeitos devastadores de um surto de varíola se sobrepunham aos potenciais efeitos secundários da vacina – e a história veio dar-lhe razão.
Apesar de esta rápida resposta de Weinstein aos primeiros sinais de perigo, o início do processo de vacinação enfrentou dois entraves. Por um lado, faltavam doses da vacina: Nova Iorque teve de encomendar milhões de doses, vindas de bases militares de Brooklyn, Califórnia e Missouri, assim como de produtores privados, de forma a ter quantidades suficientes para imunizar toda a população. Por outro lado, os cidadãos não pareciam particularmente preocupados com a doença no início do surto – foi apenas depois de algumas mortes e de casos infetados que a cidade acordou para o problema.
Mais de 6 milhões vacinados em menos de um mês
Ultrapassados estes dois entraves, teve início a maior campanha de vacinação de uma cidade registada na história. Os líderes políticos O’Dwyer, Presidente da Câmara, e Harry S. Truman, Presidente dos EUA, foram vacinados em público. Os nova-iorquinos seguiram o exemplo e ficaram horas à espera em filas de vários quilómetros de hospitais públicos e privados, clínicas e estações da polícia, onde estava a decorrer a vacinação gratuita. Em menos de um mês, 6.35 milhões de pessoas já tinham sido vacinadas em Nova Iorque.
A razão para esta forte adesão dos cidadãos pode ligar-se a diferentes fatores. Em primeiro lugar, vários nova-iorquinos tinham combatido na segunda guerra mundial, durante a qual foram vacinados contra vários vírus diferentes – os soldados percepcionavam a vacinação como uma obrigação, não como algo opcional. Em segundo lugar, os movimentos de “anti-vacinação” não existiam, nem teorias da conspiração ligadas aos mesmos. Por fim – e talvez o fator mais importante – nesta altura, vivia-se o ponto alto da poliomielite, uma doença infecciosa. Assim, os nortes-americanos conheciam bem os efeitos devastadores de um vírus que, aliada a uma confiança inabalável na ciência e na comunidade médica, os levou a agir rapidamente para se proteger a si e aos outros.
As diferenças entre 1947 e 2021
A campanha de vacinação contra a varíola de Nova Iorque pode dar alguns bons exemplos para 2021. Entre estes, contam-se a comunicação eficiente de Weinstein, que transmitia as informações à população de forma transparente e consistente, ou o recrutamento de voluntários para ajudar no processo de vacinação. Em 1947, a cidade recrutou milhares de civis para ajudar a imunizar a população – estes voluntários, que estavam ao lado dos profissionais de saúde, chegaram a administrar cerca de oito doses por minuto. Circularam de escola em escola, de forma a vacinar 889 mil estudantes. Nas primeiras duas semanas, mais de 5 milhões de nova-iorquinos já tinham sido vacinados graças a este esforço conjunto de todos os cidadãos, que trabalhavam dia e noite.
No entanto, por muito tentador que seja fazer uma comparação direta entre a vacinação dos nova-iorquinos em março de 1947 e as atuais campanhas de vacinação contra a Covid-19, deve ter-se em conta que há diferenças estruturais entre as duas: enquanto que a vacinação em Nova Iorque estava restringida a uma só cidade, a vacinação para a Covid-19 acontece à escala mundial – o que implica uma dinâmica de distribuição de vacinas e de burocracia muito mais complexa. Por outro lado, existia uma maior confiança nos médicos em 1947: as teorias da conspiração sobre as vacinas não existiam, ou eram meramente residuais. Hoje, em países como França, 6 em cada 10 pessoas não querem ser vacinadas para a Covid-19, tal é a desconfiança neste processo.
A desigualdade no acesso à vacina para a Covid-19, que afeta em especial os países mais pobres, também constituiu outro entrave a estas comparações. Em 1947, o processo de encomenda da vacina para a varíola ocorreu sem grandes demoras e problemas. Hoje, o mundo vive numa autêntica “corrida às vacinas” da Covid-19, com os países com menos dinheiro a enfrentar as maiores dificuldades no acesso à vacina. Organizações como a Covax, um consórcio que pretende garantir aos países de baixo e médio rendimento um acesso às vacinas contra a Covid-19, estão a tentar colmatar esta desigualdades.
Apesar de tudo, mais de 30 países já começaram a vacinar as suas populações, segundo a revista The Economist, o que é um sinal positivo no meio de tanta incerteza que rodeia o processo de vacinação. Em 1980, 33 anos depois do surto de Nova Iorque, a Organização Mundial de Saúde declarou que a varíola tinha sido erradicada de todo o mundo com sucesso – um sinal do passado que nos pode dar esperança para o futuro.