A Oikos Portugal está em Moçambique há cerca de 30 anos, tendo começado o seu trabalho de ajuda humanitária na época em que o país vivia a violenta guerra civil que se seguiu ao processo de independência. Foi também das primeiras organizações não-governamentais para o desenvolvimento a conseguir dar resposta às populações afetadas pelo ciclone Idai, que atingiu a Beira em março de 2019.
Ter o acesso a esta rede de contactos permitiu que [após o Idai] em menos de 48h conseguíssemos estar a trabalhar
“O nosso trabalho é um trabalho de longo prazo, que tem alguma sustentação nas parcerias que temos, nas pessoas com quem trabalhamos, no conhecimento que temos das comunidades, nas metodologias que utilizamos. E a verdade é que assim que existe possibilidade, tentamos reintegrar as pessoas naquilo que são os projetos que já estão a decorrer”, começa por dizer Ricardo Domingos, numa entrevista por telefone, à VISÃO. “Nas primeiras horas, a informação é possivelmente o elemento mais importante para podermos reagir – ter o acesso a esta rede de contactos permitiu que [após o Idai] em menos de 48h conseguíssemos estar a trabalhar, porque nos articulámos com organizações que conhecíamos, com comunidades que já estavam identificadas e conseguimos trabalhar mais rapidamente com eles”, recorda o responsável da organização.
Mais financiamento, mais projetos
A Oikos Portugal lidera um dos consórcios que garantiu um financiamento do Instituto Camões para continuar a trabalhar na reconstrução de Moçambique, após os ciclones. Em conjunto com a Cáritas Portuguesa e com a Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM), a Oikos Portugal vai trabalhar em Sofala e em Cabo Delgado no apoio à recuperação do setor agrícola como forma de contribuir para a segurança das populações mais afetadas pelos ciclones. O anúncio de que tinha sido um dos projetos selecionados foi feito no dia 8 de janeiro pelo Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.
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“Os processos de reconstrução nunca são tão rápidos quanto seria desejável, por razões várias”, lamenta o responsável, quando é questionado sobre tudo o que ainda há por fazer no território afetado pelos ciclones, e sobre a importância deste financiamento que vai permitir a implementação de um projeto com a duração de 24 meses.
“Estamos a falar de dois ciclones que aconteceram com uma diferença de várias semanas. O Idai teve uma resposta massiva, houve uma mobilização muito grande da comunidade internacional, das organizações que estão em Moçambique”, recorda. “Umas semanas depois acontece o Kenneth, numa zona das mais vulneráveis do país em termos de insegurança alimentar, e com zonas com maiores dificuldades de acesso a serem também afetadas. Aí, a capacidade de resposta foi mais diminuta, a concentração de esforços estava na resposta ao Idai, e porque as zonas mais afetadas em Cabo Delgado tinham problemas de segurança e acesso, as comunidades ficaram mais isoladas e sem receber tanto essa assistência”, lamenta.
Estamos a falar de dois ciclones que aconteceram com uma diferença de várias semanas.
Testes à resiliência
Quando se completam 10 meses desde a passagem do Idai, nove desde a do Kenneth, Ricardo Domingos salienta que a grande preocupação, agora é o facto de se “estar a iniciar uma nova temporada de chuvas”, o que significa que “a principal dificuldade é também estrutural – é vermos que não existem capacidades, meios, maturidade a diversos níveis para reduzir esta vulnerabilidade das populações perante eventos extremos”, lamenta, sublinhando no entanto todo o trabalho que tem sido feito pelas organizações humanitárias, que tem tentado minimizar o sofrimento das pessoas afetadas pelos ciclones.
Em Moçambique “passamos por períodos de seca duros, para períodos de tempestades, de furacões e as pessoas não têm capacidade de encaixe porque as infraestruturas não permitem. O estado de desenvolvimento dos países faz com que as consequências destes eventos sejam diferentes” em África ou num país da Europa. “Em Moçambique, o nível de resiliência da maioria das populações é bastante baixo”, recorda, justificando a necessidade de as ações serem feitas a longo prazo e com consequências que se prolonguem no tempo
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É que “quando usamos o termo ‘ajuda’, é um bocadinho redutor. Não é só dar uma coisa a alguém, as nossas ações têm um papel também de impacto: que impacto tem? O que vamos conseguir com isto? O que vamos prevenir que aconteça? Esta ajuda é também proteger – por um lado proteger e por outro lado preparar as pessoas para retomarem o seu caminho”, clarifica o responsável.
O tempo, inimigo da necessidade
Recorde-se que após o Idai, mais de uma centena de organizações humanitárias permaneceram em Moçambique para tentar ajudar as centenas de milhar de pessoas que ficaram desalojadas ou que, de alguma outra forma, se viram afetadas por aquele que foi o maior desastre natural da história daquele país.
Todas as partes de capacitação, introdução de metodologias, os próprios bens (sementes, infraestruturas), tudo tem que ser adaptado a esta nova realidade .
Após a fase de emergência, no entanto, o trabalho parece de alguma forma menos visível e mais moroso, ao mesmo tempo que a atenção pública se dispersa. “Esse é o grande desafio que temos, não apenas em Moçambique mas em todo o mundo”, lamentava Ricardo Domingos. “Há uma necessidade de adaptação que são processos muito demorados, que obrigam em muitos casos a mudança de mentalidades, enquanto a exigência é imediata. Nós, em todos os projetos, – este é apenas um em que isso também se vai verificar – temos componentes de adaptação. Todas as partes de capacitação, introdução de metodologias, os próprios bens (sementes, infraestruturas), tudo tem que ser adaptado a esta nova realidade”, que é muito diferente daquela que existia antes de os ciclones terem destruído casas, culturas e a própria configuração de muitos solos.
Voltar ao que era
Para uma organização que trabalha na recuperação do setor agrícola, todas as alterações são fundamentais para perceber como se pode fazer um trabalho de sucesso, que permita às populações tornarem-se mais resilientes ao longo do tempo.
“A verdade é que em muitos casos as pessoas vão ter que se habituar a fazer como se fazia dantes. A utilizar sementes que eram locais, e que se foram desabituando de usar porque era mais fácil comprar sementes transgénicas, mas que acabam por não dar tanto rendimento. Vão ter que passar a utilizar formas que foram deixadas, apenas porque novos métodos eram mais fáceis e no imediato produziam outros resultados. Há, portanto, uma reaprendizagem em muitas coisas”, depois do Idai.
A verdade é que em muitos casos as pessoas vão ter que se habituar a fazer como se fazia dantes .
E quanto a prazos para, pelo menos, a Beira conseguir voltar ao que era há um ano, Ricardo prefere não se comprometer. Porque tudo, desde o clima , às autoridades, passando pelas empresas, a predisposição das populações e a vida das organizações humanitárias, tudo ali influencia. Assim, o responsável espera ver as regiões centro e norte a recuperar, mas sabe melhor do que ninguém que este é um trabalho, acima de tudo, de paciência. E de muita entrega.
Exigência precisa-se
Questionado sobre se quereria deixar um apelo à população portuguesa, numa altura em que os ciclones parecem ter abandonado a memória coletiva – ou porque outros desastres foram surgindo ou simplesmente porque o tempo foi passando –, Ricardo faz uma pausa antes de responder. “Sem ser um apelo, acho que é preciso as pessoas colocarem alguns filtros quando ajudam. Que sejam exigentes, da mesma forma que são exigentes quando compram alguma coisa para si; que sejam exigentes com aqueles a quem dão o seu dinheiro. Que esperem alguma coisa em troca: que sejam informadas de forma concreta, fidedigna, da forma como o seu dinheiro foi utilizado”, pede.
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“Na grande maioria não há desconfiança, não acho que essa seja a grande questão. Não devemos a partida tomar uma posição de desconfiança”, esclarece. “Mas qualquer um de nós gosta de confirmar onde vai utilizar o seu dinheiro, portanto acho que é importante e é uma forma de responsabilizar. As organizações têm obrigações, mas se as pessoas perguntarem, as organizações também se sentem mais obrigadas a partilhar”, acrescenta ainda o responsável da Oikos Portugal.
“A verdade é que as pessoas, em Portugal, são sempre solidárias, principalmente quando as coisas lhes entram de uma forma tão flagrante pelas casas dentro”, como foi o caso dos ciclones em Moçambique. A principal reação é ajudar, e isto é algo que temos de muito bom e que espero que as pessoas não deixem de ter, dentro das suas possibilidades”, congratula-se.