No início desta semana o Parlamento britânico votou contra emenda à legislação de imigração que teria permitido o Reino Unido aceitar 3.000 crianças refugiadas não acompanhadas. Ironia das ironias, o número de deputados a votar contra a medida foi de 294. Exatamente o número de menores sozinhos registados no último recenseamento, no campo de refugiados em Calais, levado a cabo no início de abril pela organização governamental Help Refugees. O mais novo deles tinha oito anos, situando-se a idade da maioria entre os 10 e os 13 anos. Trata-se sobretudo crianças afegãs e sírias que, sem o acompanhamento de adultos, tentam sobreviver na chamada “selva de Calais”.
Outra curiosidade envolvendo essas crianças é a de que o seu número ter decrescido dramaticamente entre os recenseamentos de março e abril – de 423 passaram, no período de um mês, para os 294.
O desaparecimento, sem deixar qualquer registo ou rasto, de 129 menores em pleno coração da Europa está a preocupar as organizações não governamentais que andam no terreno, numa selva de barracas de plástico e tendas. Recorde-se que Calais se situa do lado francês do Canal da Mancha a três dezenas de quilómetros da costa britânica.
“Não me atrevo a pensar que número encontraremos quando completarmos o próximo recenseamento [de maio] este fim de semana”, escreveu Jack Steadman, voluntário em Calais, num artigo publicado no Hufftington Post.
Numa comovente reportagem publicada esta sexta-feira, 29, no The Guardian, a jornalista Amelia Gentelman descreve o ambiente em Calais sob a perspetiva das crianças que viajaram sozinhas até encalharem no Canal da Mancha. “Estamos a assistir à deterioração da sua saúde mental. Estão receosos, não dormem e têm pesadelos.”
São as palavras de uma voluntária citada nesse trabalho, que, sem a ajuda de qualquer organização de apoio às crianças, acompanha um grupo de entre 20 a 25 rapazes.
Muitos destes menores têm familiares no Reino Unido aos quais se querem juntar. Quando se associam, a má vontade, a burocracia europeia e o oportunismo político (em junho vai haver um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia e a imigração é um dos temas de campanha) transformam-se num obstáculo maior que os 33 quilómetros de mar entre a Grã Bretanha do continente europeu.
Seis em cada 10 menores da selva de Calais nunca se sentem seguros, de acordo com um inquérito levado a cabo pelo projeto de dados da Refugee Rights (ver gráfico). E do que mais têm medo, não é do Daesh e dos bandidos: é da polícia francesa. Jack Steadman e outros voluntários não se têm cansado de denunciar a alegada incompetência e má vontade das autoridades.
“Testemunhei como o Departamento para a Imigração e Integração tentou meter alguns rapazes afegãos não acompanhados num autocarro para os levar para centros de acolhimento espalhados por França. Os menores nem tiveram tempo para preparar os seus sacos”, relata Jack Steadman. Segundo este voluntário os funcionários franceses nem levaram consigo um intérprete ao ponto de um rapaz de 14 anos ter pensado que iria ser levado para Inglaterra.
AS MÁFIAS DOMINAM
No final de janeiro, numa entrevista ao jornal britânico Observer, o diretor da Europol, Brian Donald, estimava que cerca de 10 mil crianças refugiadas que haviam chegado desacompanhadas à Europa e haviam desaparecido. Muitas das crianças, receia este responsável, poderão ter caído nas mãos de redes organizadas de traficantes de seres humanos.
O líder da Europol admitiu que a sua estimativa pode pecar por defeito. É que só de Itália desapareceram cinco mil, ao passo que, em outubro de 2015, as autoridades suecas anunciaram o desaparecimento de 1.000 crianças refugiadas desacompanhadas na cidade de Trelleborg. E no Reino Unido, o número mais do que duplicou em um ano.
Na perspetiva do chefe do organismo de investigação criminal europeu, a sofisticada “infraestrutura criminosa” pan-europeia concentra-se agora nos fluxos de refugiados tendo as crianças como alvo prediletos.
Segundo a organização não-governamental norte-americana Save the Children, terão entrado 250 mil crianças refugiadas em território Europeu, durante o ano de 2015. Dessas estima-se que 26 mil tenham chegado sem acompanhantes adultos.
A Europol confirma ter provas de que muitas das crianças refugiadas chegadas à Europa se tornaram vítimas de exploração sexual. Estão também documentados muitos casos de cooperação entre as quadrilhas que trazem refugiados e aquelas que se dedicam ao tráfico de seres humanos para escravatura sexual e laboral.
Perante este números, as 129 crianças desaparecidas entre o início de março e abril, parecem apenas uma gota num oceano. Mas uma política de acolhimento que tivesse evitado o desaparecimento desses 129 menores, já teria sido um começo mais digno para uma Europa que se vangloria dos seus valores humanistas.