29.08.2015 Triplex Confinium (Hungria, Sérvia, Roménia) – Kübekháza
30.08.2015 Térvár – Tiszasziget
1.09.2015 Szeged I
3.09.2015 Szeged II
7.09.2015 Szeged – Röszke – Mórahalom – Ásotthalom – Subotica
“Nós somos o outro do outro”.
Tenho esta pequena frase de José Saramago como epígrafe de um dos cadernos desta viagem, palavras que se cruzam nos caminhos de papel com aquelas de uma outra escritora de língua portuguesa, Alexandra Lucas Coelho, também jornalista: “não há eles e nós porque só há nós. Nós estamos no meio de nós”. Em todos os sentidos. Nós somos aqueles refugiados que nem sequer sabiam onde estavam depois da polícia os ter deixado na estação de comboios de Szeged: “onde estamos nós?”. Nós somos Robert no Triplex Confinium onde esta viagem começou, mas também somos Orbán, somos o agricultor que vocifera contra o refugiado que lhe roubou alguns tomates e somos aquele próprio refugiado, somos as patroas das koscmas e os seus convivas naquelas tabernas da Terra Baixa húngara onde o mundo se move em câmara lenta, somos József e Rigó entre as ovelhas, somos Sharbat, Márk, Rita, Zoltán, Mohammed, Balázs, somos ainda aqueles funcionários ferroviários que queriam pôr a pequena Fatma e o seu também pequeno irmão Ahmed a dormirem ao relento e havemos de ser Rafiq, mais logo, quando chegarmos a Subotica, no norte da Sérvia, mas agora, ainda em Szeged, somos Péter. É sempre urgente tentar ouvir sem fronteiras todos os “outros”, para compreender melhor este momento, ou para nos sentirmos mais perdidos nesta “história do presente” em que há mais um muro no meio de nós.
Faltava ele.
Péter Tóth disse logo simpaticamente que sim, à primeira, que só precisava de pedir autorização ao chefe de imprensa do seu partido. Com 32 anos, ele é o líder do Jobbik em Szeged, força política considerada de extrema-direita que por sua vez nomeia uma parte dos outros partidos como “extremistas-liberais”. Nem sempre os extremos se atraem.
GPS: 46.254917, 20.148889
Nas últimas eleições autárquicas de outubro de 2014, ele obteve 3% dos votos enquanto o Jobbik tinha tido 20% nas legislativas, realizadas também no ano passado. No monocromático mapa político da Hungria, Szeged é uma das poucas grandes cidades do país que não é fiel ao Fidesz do primeiro-ministro Viktor Orbán. De Budapeste chegou rapidamente a autorização para a entrevista e Péter sugeriu-nos o bar-restaurante Szeged Étterem na Széchenyi tér, uma bela praça-jardim, onde por acaso eu e a Móni tínhamos jantado dois dias antes. Mas havia uma coincidência geográfica mais prática: Péter estava convidado para um casamento às três da tarde deste sábado, mesmo ali ao lado, precisamente na câmara municipal cujas eleições perdera por infinita diferença há menos de um ano.
Bebem todos café, menos eu que deixo escorregar uma cerveja, ainda levado pelo ritmo das koscmas dos dias anteriores. À primeira resposta, logo uma surpresa: o dicionário de Péter inclui uma palavra que, à partida, não era suposto incluir: refugiado. Enquanto o líder do seu partido Gábor Vona, tal como Orbán e os seus partidários, falam sempre de “imigrantes ilegais”, ele escolhe quase sempre dizer “refugiados”, talvez porque os veja ali frente a frente, acabados de passar a fronteira, e não apenas pelo filtro da televisão estatal ou de alguma imprensa pró-governativa que, dizem os críticos, semi-censuram algumas imagens, por exemplo, cenas com crianças porque estas poderiam provocar mais sentimentos de empatia e compreensão junto do público. Outra surpresa, ou talvez não tanto, diz “muro” e “vedação” como sinónimos, reconhecendo implicitamente, interpreto eu, que a diferença física não é, neste caso, uma diferença simbólica. São detalhes que o ouvido gravou. Mas escutemos os seus argumentos:
Primeiro. Tóth concorda com o projeto da barreira fronteiriça “mas apenas caso seja possível reforçar os recursos humanos. Por isso é que uma das propostas do Jobbik é que é necessário formar uma força independente para a fronteira, para que exista um controlo efectivo dos refugiados que entram”. “Controlo” é a palavra que vai repetir em todas as respostas que nos dá. “Se a vedação já estivesse construída agora, no final de junho, a administração já estaria a fazer um controlo mais eficaz dos refugiados que entram”. [não se trata, pelo menos ainda, de uma força independente como tem pedido o Jobbik, mas no passado fim de Agosto o governo húngaro anunciou o envio de mais dois mil polícias para a zona da fronteira e pediu ao parlamento, onde o Fidesz tem maioria, autorização para envolver o exército na patrulha fronteiriça. A 4 de Setembro o Parlamento aprovou também alterações legislativas que criminalizam a passagem ilegal da fronteira ou qualquer ato de destruição da “vedação fronteiriça”.]
Segundo. “Os refugiados estão em trânsito porque os seus principais destinos são a Alemanha, a Holanda e a Inglaterra”. Mais do que a Holanda, a Suécia faz parte do triângulo favorito para quem procura uma segunda vida. Mas em nenhum momento, Péter chamou aos refugiados “delinquentes” ou se referiu à sua eventual proveniência religiosa, como é comum em muitos apoiantes do seu partido, nem tão pouco os acusou de quererem roubar o emprego aos húngaros ou de serem eventuais terroristas – dois argumentos da retórica pró-muro de Orbán. Eles estão em trânsito.
Terceiro, e é o argumento que, ao longo de toda a conversa de meia hora, Péter Tóth defende com mais insistência: o exame médico. “Eu não tenho objeção aos refugiados de guerra, mas eles precisam de ser controlados. Eu pergunto-vos se vocês já passaram pelas margens do Tisza? Eles abandonam ali várias peças de roupa. Eles atravessam vários países e vêm de zonas de guerra e de outro clima, logo podem transportar doenças. Por isso é fundamental que estas pessoas sejam identificadas e sejam sujeitas a um exame médico. Por exemplo, podemos falar do caso da hepatite A, cuja taxa de vacinação na Síria, entre 2012 e hoje, desceu de 91% para 68%, o que significa que há crianças que têm até 3 ou 4 anos que já não estão vacinadas. Isso só pode ser filtrado com controlo”. O líder do Jobbik em Szeged sublinha mesmo que “este exame não é apenas a questão mais importante para nós aqui na Hungria, mas para toda a Europa”. Tóth anota ainda que muitas destas pessoas “já terão feito esse exame médico em países anteriores, mas eles próprios rasgam os documentos e torna-se impossível saber se, de facto, já foram examinados. O governo não divulgou qualquer informação sobre que tipo de doenças especiais é que têm acontecido no último meio ano, mas provavelmente o Hospital de Szent László terá dados sobre isso. Eu não ficaria surpreendido se já tivessem sido detetadas doenças tropicais.” (Caro Péter, permite-me só um aparte, dois meses depois do nosso encontro: até à data em que publicamos este texto não há um único caso conhecido de doenças graves e parece inverosímil que Orbán escondesse uma informação que seria tão vantajosa para a sua estratégia de propaganda, quando ele próprio usa o mesmo fantasma da transmissão de doenças. A propósito, a Organização Mundial de Saúde emitiu no início de Setembro um comunicado em que nega que exista uma “associação sistemática” entre migrações e a importação de doenças contagiosas: “O risco de que agentes infecciosos exóticos, como o vírus do Ébola ou o MERS-Cov, sejam importados para a Europa é extremamente baixo e a experiência tem demonstrado que, quando isso acontece, afeta viajantes regulares, turistas ou trabalhadores da área da saúde, em vez de refugiados ou migrantes”)
Quarto e quase último argumento, a resposta ao espelho crítico do passado: “Não concordo com as comparações com outras décadas. Decisões como esta acontecem quando um país quer defender as suas próprias fronteiras. Um país pode defender as suas próprias fronteiras como entender mais adequado. Por exemplo, também acontece na Cisjordânia, onde Israel construiu um muro. Falar em guetização da Hungria [como o fez, por exemplo, Robert Molnár, presidente da câmara de Kübhekáza, vila húngara junto à fronteira tripla com a Sérvia e a Roménia] é uma interpretação ‘extremista-liberal’ daquilo que está a acontecer”. “E o meu sogro”, que estava sentado ao seu lado, “está a acrescentar que isto não é uma coisa tão fora do comum porque na fronteira entre os Estados Unidos e o México também existe um muro”. E novamente a palavra escolhida foi muro, mesmo se, como no projeto do governo húngaro, se trata fisicamente de uma vedação, tal como a barreira construída em 2012 entre a Grécia e a Turquia, junto ao rio Evros, ou a estrutura entre a Bulgária e a Turquia, ainda a ser erigida. Mas a voz do Jobbik em Szeged esqueceu-se ou não quis dar esses “exemplos” europeus, anteriores ao muro de Orbán, o quinquagésimo sexto no mundo de hoje. [recentemente, a France Press recordava uma comparação realizada pela investigadora Élisabeth Vallet da Universidade do Quebec, autora de Borders, Fences and Walls – State of Insecurity?: quando o muro caiu em Berlim, havia outros dezasseis no mundo, hoje há 56 edificados ou em construção.]
Pelo canto do olho, vejo que alguns dos convidados para o casamento já se vão aglomerando à porta da câmara municipal, vizinha da esplanada do Szeged Étterem. Prometemos a Péter que nos aproximamos do fim. Simpático, diz-nos que ainda temos algum tempo. Sou alguns anos mais velho do que ele, mas não tantos para que nos possamos considerar de gerações diferentes. Tento continuar o fio da conversa pelos territórios do passado, com um ângulo mais pessoal. Digo-lhe que me lembro dos meus pais exaltados, em frente à televisão, quando o muro caía em Berlim a 9 de Novembro de 1989 e, repita-se essa história, a cortina de ferro tinha começado a cair meses antes, naquele verão, precisamente na fronteira entre a Hungria e a Áustria. Tinhas 6 anos, lembras-te Péter?
“Lembro-me do tempo da cortina de ferro porque a minha avó vivia e ainda vive em Szentgotthárd, uma pequena cidade perto do muro. Mas nessa altura era mesmo proibido passar a fronteira. Não é esse o caso agora, mas as pessoas só podem passar a fronteira de forma controlada. Nós não temos nenhum sentimento contra os refugiados, nem eu, nem os habitantes de Szeged. Mas é preciso destacar a importância da saúde pública. Se os szeguedenses estão zangados, é com os ciganos de cá que recolhem a roupa dos refugiados e a vendem no mercado. O capitão da esquadra da polícia já começou a?controlar os ciganos, mas também os motoristas de táxi que por muito dinheiro, por vezes até 1000 euros por pessoa, levam os refugiados a Budapeste ou a Viena. É nossa responsabilidade pôr ordem nesta situação interna dos traficantes e dos lomizós [palavra húngara para quem vive da compra e venda de todo o tipo de usados, muitas vezes encontrados na rua ou no lixo]. Os szeguedenses estão mais zangados com estes ciganos do que com os refugiados. Acho que com os refugiados somos solidários, só tem é de ser de forma controlada”.
Foi só mesmo a fechar a conversa, no último minuto enquanto ainda gravávamos, que o discurso ciganou um pouco, como que para termos a certeza de que estávamos perante um membro do Jobbik. Confesso a Móni Bense, companheira desta viagem e que fizera de ponte linguística entre mim e Péter, que esperava um discurso com outro ângulo. Talvez fosse estereótipo meu, mas estava provavelmente à espera de ouvir argumentos a papel químico daqueles de Vona, o líder do partido a nível nacional que, nas urnas, tem muito mais sucesso do que o seu colega de Szeged. Em Vona, a retórica anti-refugiados elimina o próprio conceito de refugiados. Gábor Vona defende, tal como Viktor Orbán – não parecessem eles cada vez mais, embora sendo adversários políticos, o alter-ego ideológico um do outro – que um “migrante ilegal” é um “criminoso” e que, por isso, tem de ir para a prisão, em vez de para um campo de acolhimento. Mais, Vona pede a suspensão imediata de toda a legislação europeia referente a refugiados e requerentes de asilo. Visto por este prisma, perspetiva que espero aprofundar em futuros regressos à Hungria, escrevo no meu caderno a legenda que não me sai da cabeça para descrever a conversa que chegara ao fim na esplanada do Szeged Étterem: Petér Tóth – candidato a elemento menos radical do Jobbik, este “outro” aqui à nossa frente, que faz parte deste “nós” que nos está a acontecer.
No parágrafo anterior, havia uma palavra nova no dicionário desta viagem. Ciganar – cigányozik – é um verbo usado em calão húngaro quando alguém está a atacar a minoria étnica rom, que tinha sido, até ao migrant boom, o principal alvo do discurso anti-outro. Há muito que a retórica de um “nós” húngaro e exclusivista constitui a principal torre de controlo do xadrez político do país. E se este muro-vedação é Orbán a atacar o Jobbik com os dois cavalos ao mesmo tempo, jogada perigosa que alguns chamam mesmo a Jobbikização do Fidesz, os refugiados são peões que entram no jogo quando só estavam de passagem.
Deixei-me seduzir pela metáfora sempre fácil do xadrez quando, ainda ontem à noite, observava um jogo entre veteranos da modalidade, numa rápida passagem pelos banhos termais de Szeged. No centro da piscina principal, uma mesa-tabuleiro e duas cadeiras, tudo de pedra, ocupam o lugar nobre. Um homem de cada lado, silêncio entre eles, o jogo continua devagar. Ao lado, as conversas flutuam, baixinho. Não as entendo, mas parecem tão leves como os vapores que nos rodeiam, num ambiente absolutamente oposto ao guião desta viagem cheia de gente e de frases, e não tarda paisagens, atravessadas por arame farpado. Em vários regressos mais ou menos curtos à Hungria, nunca experimentei jogar xadrez num banho termal, nunca calhou. Pergunto-me como serão aquelas peças: flutuam ou vão ao fundo se caírem da daquela mesa-ilha no meio da piscina? Das duas, uma: ou flutuam todas, ou vão todas ao fundo, não há de haver peças de material diferente. Se os peões forem ao fundo, os reis, as rainhas e os bispos, também vão. Até mais depressa, concluo, porque são peças maiores, mais pesadas. Atenção Europa, xeque.
Na mesa do Szeged Étterem, as toalhas de papel têm várias fotografias deste bar-restaurante. Na imagem de uma das salas, parece-me ver o velho mapa da Grande Hungria, e é mesmo. Nesse desenho com mais de um século, a fronteira por onde hoje vai crescendo o muro-vedação de Orbán ainda não era uma fronteira, era Hungria. O Tisza cabia todo aqui, a nascente e a foz ficavam dentro das curvas desta topografia. Hoje o rio nasce na Ucrânia e desagua na Sérvia, no seu irmão maior, o Danúbio, com quem temos encontro marcado no final desta viagem.
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No regresso à estrada, peço o smartphone emprestado a João Henriques, professor de literatura, tradutor e poeta, um amigo destas latitudes que foi o nosso motorista para os próximos catorze quilómetros – a distância que separa Szeged de Röszke. Ele guia, eu confirmo no Google Maps (versão 2015, antes do muro) que esta povoação fronteiriça tem algumas casas, tal como na aldeia de Térvar, com o quintal a beijar a Sérvia. João ama a Terra Baixa, viveu vários anos aqui, um pouco também ali na Voivodina, volta sempre que pode à paz da planura. “Que bonito!”, diz e repete sempre que atravessamos uma multidão de girassóis em flor. “É a última vez João, que vês esta paisagem assim, virgem, sem arame farpado”. Há de lhe rasgar o coração, talvez também lhe rasgue um poema.
Com esta localização privilegiada, não admira que Röszke se tenha transformado numa das principais portas de entrada escolhidas pelos traficantes, ao lado das vizinhas Mórahalom e Ásotthalom. As autoridades instalaram aqui, na berma da autoestrada que liga Belgrado a Budapeste, um campo provisório para acolhimento e identificação de migrantes e refugiados. Na véspera, a polícia tinha usado gás lacrimogéneo para calar a revolta: “UN! UN! We want peace!“, gritavam eles. Alguns dos manifestantes, provavelmente, ainda estarão no campo quando chegamos à entrada. Dá para ver, por entre a vedação, que há camas montadas nas várias tendas de campanha. Identificamo-nos e perguntamos ao polícia que está de sentinela se é possível entrar e conversar com as pessoas que ali estão. “A entrada não é permitida, muito menos a jornalistas”.
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MiniHungary. Aqui de certeza que a entrada a jornalistas é permitida; será inclusive apreciada, para chamar mais turistas. Vejo a placa e fico com um amargo de boca por não termos tempo para parar. Já é tarde e ainda queremos chegar de dia ao improvisado campo de refugiados de Subotica, na Sérvia, mas a coincidência desta MiniHungria – um parque de miniaturas dos principais monumentos e atrações turísticas de todo o país – estar aqui escancarada, em Mórahalom, ao lado da estrada por onde já passaram milhares de refugiados, deixa-me com a curiosidade de saber se algum deles tentou entrar para visitar o país que está aqui resumido em muito menos do que um quilómetro quadrado. Quero acreditar que, ao lado de tantas crianças húngaras que vêm em excursões (vejo fotos na net), Fatma e Ahmed, duas das crianças com quem estivemos ontem, poderiam fazer novos amigos e conhecer um pouco mais destas terras, além das visitas à esquadra da polícia ou à estação de comboios de Szeged, em cujo pátio quase não os vimos chorar, mas onde também quase não os vimos brincar. Quando voltar a Mórahalom, prometo a mim mesmo: hei de perguntar aos responsáveis deste parque de miniaturas se alguma das muitas famílias de refugiados que por aqui passaram tentou dar aos seus filhos um segundo de distração no meio desta Hungriazinha que nos faz recordar as tardes rodeadas de legos. E penso também que, embora isso fosse uma ofensa para qualquer visitante sírio, iraquiano ou afegão, talvez o parque temático pudesse antecipar a pedagogia do futuro, ousando incluir desde já uma miniatura do último “monumento” que está a ser edificado no país, para que “as crianças que ainda vão nascer” sejam filhos com memória.
Na geografia, como um rio de ferro, seguindo o sinuoso curso da história, o novo muro vai nascer em Kübhekáza no Triplex Confinium e, quando chegar ao fim, vai desembocar nas águas de um braço do Danúbio, numa outra bifurcação tripla, algures num parque natural dividido por Hungria, Sérvia e Croácia. Mas cronologicamente, a criação de um muro não começa necessariamente num extremo e acaba no outro. Os primeiros metros do muro-vedação de Orbán viriam a ser construídos precisamente neste município, numa zona em que os campos agrícolas se deixam entrecortar por bosques densos, num território propício para quem tem de passar fronteiras às escondidas. Ainda não é oficial hoje, quando aqui passamos, mas vai ser: o primeiro pilar de metal da designada “Vedação Temporária de Segurança da Fronteira” será colocado aqui, na manhã de 13 de Julho de 2015. Aqui, a quatro ou cinco quilómetros desta vila onde vivem 6 mil pessoas. O presidente da câmara é Zoltán Nógradi, do Fidesz.
Próxima paragem na vizinha Ásotthalom. 4 mil pessoas. Presidente da Câmara: László Toroczkai, líder do HVIM, Movimento da Juventude dos 64 Condados, um pequeno partido radical de extrema-direita. 64 era o número de Condados da Hungria antes do Tratado de Trianon, no final da Primeira Guerra, o mesmo número de condados do tal mapa da “Grande Hungria”.
Próxima frase: “Eles são estranhos porque têm a pele mais escura” diz-nos, atarefada, a patroa de uma das koscmas locais, senhora na casa dos seus 50 anos. Ainda não tínhamos ouvido nada assim. Passamos a um dos pequenos minimercados da localidade . A empregada é de outra geração, vinte e poucos anos. “Isto está cada vez pior porque eles são cada vez mais [fim de Junho]. As pessoas estão cada vez mais zangadas. Não há trabalho, as pessoas aqui na Hungria não têm dinheiro, não têm acesso à saúde pública e eles chegam cá e recebem tudo de graça. Já estamos fartos, à espera que tudo isto acabe”. Mas houve algum problema grave com os “imigrantes”, perguntamos. “Não, não aconteceu nada. Houve uma ou outra coisa que não foram graves. Mas a aldeia já se sente incomodada”. E sabem de onde é que eles vêm? “Eu não sei. Mas não gosto deles porque têm a cara escura. E os últimos que chegaram têm a cara ainda mais escura”.
Estrada. Kelebia. Hungria. Fronteira. Sérvia. Kelebija. Subotica. Fábrica de tijolos abandonada. Lixo e homens. Cara-a-cara.
GPS: 46.078231, 19.692522
– Welcome! – e levanta-se o primeiro refugiado do grupo que nos vê chegar.
– Hello! – levanta-se um segundo, que vai chamar o mais velho. Num ápice, ele surge por entre os arbustos:
– Welcome! Desculpem por não termos cadeiras, mas sentem-se, por favor – e levantam-se os que ainda estavam sentados. Dão-nos o seu melhor chão, nós damos-lhes água, biscoitos, fruta seca, papel higiénico, toalhetes, o que nos ocorreu trazer. Continuamos de pé:
– Foi o vosso governo que mandou isto?
– Não, somos nós que trazemos.
– Thank you!
– As-salamu alaykum! – diz outro, pondo a mão no coração – Inshallah – agradece ainda outro, mão erguida para o céu, enquanto pelo meio dos arbustos surgem mais dois refugiados.
– Hello!
– Welcome!
– Está tudo bem, dentro do possível? – perguntamos.
– We have to live, we have to dream – responde um deles.
– Como te chamas? – pergunta-me o outro.
– André. E tu?
– Rafiq, friend.
– Friend, yes – sorrio de volta.
– Rafiq significa mesmo amigo – explica o companheiro, num inglês bem mais desenvolto que o de Rafiq.
– Women, women? – interrompe Móni, mostrando um saco com pensos higiénicos.
Rafiq e dois dos seus amigos de viagem levam-nos até um outro grupo onde há quatro mulheres, todas de lenço, menos a criança. Os refugiados dispersam-se por este enorme campo improvisado em autogestão; juntam-se ora em pequena quantidade, ora em maior número, quase sempre à volta de uma fogueira. Poucas tendas, dormem onde calha. Ao todo, serão várias centenas de clientes para os dealers que, tal como os mosquitos, atacam ao entardecer. Na estrada à entrada do campo, por pouquíssimos segundos, para um BMW, último topo de gama, vidros fumados. De lá de dentro sai um refugiado que sobe a correr a rampa de acesso ao campo, tentando passar despercebido – há de ser provavelmente um dos “embaixadores” dos dealers, virá negociar, vender “bilhetes” para o outro lado. O BMW arranca a grande velocidade.
Ao cimo da rampa, junto aos primeiros barracões da antiga fábrica de tijolos, há um poço de água não potável. Funciona como uma espécie de checkpoint informal do campo. Como não encontramos ninguém com bebés, é lá que deixamos dois sacos com fraldas. A “selva” de Subotica, como já lhe chamaram numa alusão à “selva” de Calais, cresce como uma das maiores salas de espera antes da fronteira húngara. É o lugar que mais nos magoa em toda a viagem. Ali ao lado, do outro lado de uma das linhas de comboio que passa nas margens do campo, jaz o lixo da cidade, viveiro de mosquitos. Entre os restos do mundo em deterioração na lixeira e as várias centenas de pessoas que aqui esperam para seguir viagem, vejo passar um comboio, para norte. Se eles pudessem apanhá-lo logo ali, chegavam mais depressa ao sonho de uma nova vida. E por esta linha passava antes, para sul, o Expresso do Oriente.
Móni e Szabi, agora o terceiro elemento da equipa, foram ao nosso carro buscar mais água e mais sacos com biscoitos e frutos secos. Entretanto, chego sozinho a um dos grupos mais pequenos e dou-lhes um garrafão de 5 litros de água. Bebem-no, entre todos, em menos de um minuto. Atrás daqueles arbustos, está um outro grupo, talvez o maior aglomerado de refugiados em todo o campo. Vejo-me rapidamente rodeado por uma parte deles, cerca de cinquenta homens e adolescentes:
– Tens de ser tu a distribuir as coisas que trouxeste – dizem-me.
– Mas nós não trouxemos água e biscoitos para tanta gente – respondo. – Vocês é que sabem quem é que precisa de ajuda com mais urgência – tento argumentar.
– Escolhe tu! – insiste outro falando para mim em inglês e com os companheiros em árabe. Há alguma tensão.
– Vamos dar primeiro aos que estão a fazer o ramadão, eles estão mais fracos! – irrita-se o que fala melhor inglês.
Qual anjo da guarda, reaparece Rafiq. A situação não tardaria a voltar a ser amigável. Ele tenta partilhar comigo a sua história, mesmo não sabendo praticamente falar inglês.
– Afghanistan. No school, no work.
– Há quantos dias estás aqui?
– Quatro.
– Quantos anos tens? – resposta que só me consegue dar escrevendo um número na terra. Escreve “18”.
– E quando é que começaste a viagem?
– Há três meses.
– Por onde vieste?
Ele não percebe e então começo a esboçar rapidamente um mapa no chão, com um pauzinho. Compreende logo:
– Afeganistão. Irão. Turquia. Bulgária.
– E agora Sérvia – concluo. – Family?
– No. No father, no mother.
Silêncio.
– Pum pum! Taliban.
Mais silêncio.
Sem pai nem mãe, sem trabalho nem escola, agora sem passaporte, Rafiq é mais um destes seres humanos que se fez ao caminho porque não tem nada a perder e só tem a Europa a ganhar. Acompanha-nos à saída do campo, enquanto a noite cai. Não sabe ainda quando vai passar a fronteira, talvez hoje, talvez amanhã. Dá-me um abraço quando nos despedimos, depois leva as mãos ao coração como sinal de agradecimento. Faço o mesmo. É a última imagem que tenho dele, o amigo que se chama amigo: “os nomes têm poder”.
Em húngaro, quando dizemos “köszi szépen“, muito obrigado, é bem possível que, do outro lado, a pessoa a quem se agradece responda “szívesen“, que significa “do coração”, em alternativa a dizer “de nada”. Assim respondera eu a Rafiq, na língua dos gestos.
– E como é que se diz rafiq em húngaro, Péter Tóth?
PRÓXIMO EPISÓDIO DA VIAGEM “NÓS E O NOVO MURO”: “É preciso derrubar muros, não levantá-los”