Atacado pelos grandes operadores de telecomunicações, o presidente da Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom), a entidade que regula o setor, diz que apenas está a cumprir a sua missão e a proteger o interesse dos consumidores. Em entrevista à VISÃO, João Cadete de Matos defende que os operadores nacionais deveriam investir em conjunto nas redes para reduzir os custos, o que “beneficiaria as empresas e os utilizadores”, que pagam o sétimo preço mais elevado de telecomunicações em toda a Europa, segundo um estudo da Comissão Europeia.
Em que fase está a atribuição de licenças para o 5G?
A consulta pública do regulamento começará em janeiro e o leilão será iniciado em abril para terminar em junho. Logo que o processo de licitação esteja encerrado, iremos concluir os procedimentos de atribuição das licenças entre julho e agosto.
A partir dessa data os portugueses terão ofertas de serviços 5G?
Portugal vai ter as ofertas da quinta geração móvel assim que os operadores de comunicações tenham as licenças para operar e um modelo de negócio que justifique terem essas ofertas. De acordo com a informação que os operadores nos deram, numa consulta que fizemos no final de 2018, esses modelos de negócio apontavam para que as ofertas comerciais de 5G acontecessem algures em 2023 ou 2024. O argumento era que tinham feito investimentos recentes no 4G, que precisavam de rentabilizar, e não tinham capacidade financeira para fazer grandes investimentos. E a oferta em 5G vai obrigar a investimentos significativos em infraestruturas, sobretudo na densificação das redes. E para isso vai ser necessário algum tempo.
Diz que os operadores pediram um prazo mais alargado e faseado, mas quem os ouve não fica com essa impressão. Até culpam o regulador pelos atrasos no 5G.
A Anacom está sempre muito atenta à opinião dos operadores, e o que eu acabei de afirmar está documentado, e até houve declarações públicas sobre esta matéria.
Ao investimento necessário na rede acrescem ainda os custos das licenças, que poderão ser elevados…
Sendo um leilão, as empresas irão fazer as suas ofertas e o valor do espectro vai depender da procura que houver. Obviamente que as empresas irão concorrer em função dos seus planos de negócio e da rendibilidade que esperam da aquisição destas licenças.
Não corremos o risco de perder o comboio na transição para o 5G?
Portugal estará na linha da frente dos países da União Europeia (UE) que atribuíram as licenças de espectro necessárias para o 5G. Mais cedo que o objetivo anunciado pela União Europeia, que pretendia que as licenças das duas faixas mais relevantes, a dos 700 MHz e dos 3,6 GHz, estivessem atribuídas em 2020. A Anacom está, neste momento, a preparar o leilão, o que deverá acontecer já no primeiro semestre deste ano.
Há países que já atribuíram essas licenças.
Mas foi uma atribuição muito parcial. E o que nós vamos fazer neste leilão é permitir que os operadores se candidatem a todo o espectro relevante nestas faixas. Ou seja, vamos ter uma atribuição de licenças mais extensiva do que aquilo que aconteceu nos outros países. Razão pela qual eu digo que Portugal estará não só no grupo de países que cumprem o calendário europeu, como no dos que o cumprem de forma mais extensiva, não fazendo apenas uma libertação parcial de espectro, mas fazendo a atribuição global.
E os operadores concordam com esse modelo?
Os operadores manifestaram o seu interesse em que houvesse uma atribuição de todas as faixas relevantes. Iremos fazer uma atribuição de espectro muito vasta em meados do próximo ano, para que quem obtiver esse espectro no leilão possa começar a fazer as suas ofertas comerciais.
Nessa altura teremos uma operação completa de 5G em Portugal?
Por aquilo que os operadores nos dizem, ainda vai demorar algum tempo até que os seus modelos de negócio estejam preparados e haja procura dessas novas soluções.

Mas já estão a ser feitos testes de 5G?
Portugal tem sido dos países que mais testes têm feito. Isso significa que a Anacom tem tido uma atuação colaborativa com todas as empresas que pediram autorização para fazer esses ensaios. E isso é muito importante para se verificar como é que o 5G pode ser utilizado para soluções comerciais. E todos os operadores têm procurado fazê-lo.
Um dos objetivos da Comissão Europeia é ter uma cidade em cada país com 5G a funcionar já em 2020. Vamos ter essa cidade em Portugal?
Um dos testes-piloto foi na cidade de Matosinhos, mas sabemos que outras estão a posicionar-se com os operadores para fazer parte desse tipo de iniciativa. A minha convicção é que Portugal cumprirá essa meta definida pelas instâncias europeias.
E poderemos ter outras cidades com 5G já em 2020?
Neste momento, é prematuro dizê-lo. A informação que temos é a de que há várias interessadas e que os operadores estão a fazer os seus testes em algumas delas que estão muito apostadas no conceito de cidade inteligente, para o qual o 5G dará um contributo muito significativo.
Quantos operadores teremos no 5G?
Até ao momento, vários operadores mostraram interesse em adquirir licenças. Mas vamos ter de aguardar pelos resultados do leilão. Existe espectro em quantidade, porque vamos atribuir todas as faixas disponíveis para um número alargado de operadores. Queremos evitar situações de açambarcamento de espectro, ou seja, evitar que alguém compre espectro e não o utilize.
Nos leilões do 3G e do 4G, houve uma tentativa para que entrasse mais um operador no mercado, mas tal nunca aconteceu.
Sim, mas neste teremos espaço para mais operadores.
Do ponto de vista do utilizador, o 5G terá um preço mais elevado?
Depende daquilo que queiram fazer com o 5G. Hoje em dia, as necessidades de muitos consumidores são satisfeitas através do 4G e até do 3G, quando se trata de chamadas telefónicas. O 5G será utilizado apenas por quem necessita de grandes capacidades de download e de upload ou de menor latência.
Uma das faixas de frequência necessárias para o 5G, os 700 MHz, está ocupada pela TDT. Fizeram um teste-piloto de migração de frequência em Odivelas em novembro. Como é que correu?
O teste foi muito positivo. Abrangeu o concelho de Odivelas e quatro freguesias- -limite: três de Lisboa e uma da Amadora. É claro que foi precedido de uma campanha de informação muito extensa que fizemos à população abrangida, com a colaboração da câmara e das juntas de freguesia envolvidas. Fizemos ainda um roadshow com uma carrinha da Anacom que esteve a divulgar a operação nos vários locais.
E quando será feita essa migração em todo o País?
Começará em fevereiro e estará concluída ao longo do primeiro semestre.
A Altice, responsável pelas antenas da TDT, já veio afirmar que teria pouco tempo para fazer essa migração…
Do meu ponto de vista, essa afirmação é pouco sustentável.
Porquê?
Porque a Altice fez a migração do analógico para o digital em muito menos tempo, e essa era uma operação mais complexa e que envolvia mais antenas.
Mas pode atrasar o processo?
Estamos a fazer o acerto final ao calendário proposto, mas, com toda a certeza, o processo irá acontecer na janela temporal que está prevista. É claro que não conseguimos antever que haja uma situação anormal. No fim do primeiro semestre, mais dia menos dia, ela estará concluída. O calendário está definido pela União Europeia, é coordenado com Espanha e Marrocos e não há razão para que haja atraso. Essas afirmações responsabilizam quem as fez.
Tem defendido a partilha de infraestruturas entre operadores no 5G…
… porque é benéfico para os operadores e para os consumidores. Repare: para que esta tecnologia possa fazer aquilo que se propõe – maior velocidade, mais capacidade de transmissão de dados e menor latência – será necessário fazer um investimento significativo nas redes. E quanto mais partilhado for esse investimento maior será o retorno dos operadores para recuperar o dinheiro e mais barato será o acesso dos utilizadores a estas soluções tecnológicas. Todos têm a ganhar. O 5G perspetiva utilizações como a condução autónoma, a indústria 4.0, a digitalização da agricultura, a saúde à distância, etc. Há todo um conjunto de utilizações do 5G que vai para muito além das necessidades das pessoas. E é necessário que essas ofertas sejam competitivas, para que as pessoas e o tecido empresarial possam ter um benefício efetivo desta transformação.
Todo o País vai ter 5G e nas mesmas condições?
As necessidades de acesso à banda larga não começam com o 5G. Um dos grandes objetivos do País é conseguir levar boas comunicações eletrónicas e um acesso de qualidade à internet a todo o território nacional.
As necessidades de acesso à banda larga não começam com o 5G. Um dos grandes objetivos do País é conseguir levar boas comunicações eletrónicas e um acesso de qualidade à internet a todo o território nacional
Também nas zonas rurais de baixa densidade populacional?
E não só. Também há problemas em zonas urbanas. Vários estudos mostram que há zonas urbanas em que a qualidade do serviço é baixa. Temos também recebido cartas a solicitar a melhoria das comunicações eletrónicas em determinadas áreas de Lisboa, a cidade onde existe a maior oferta de comunicações. As queixas sobre a qualidade dos serviços são diárias.
Por essa razão, perspetivamos que a atribuição de licenças para o 5G seja, também, uma oportunidade para Portugal melhorar a cobertura do território em qualidade de serviço e permitir que toda a comunidade portuguesa tenha acesso a um bom serviço de telecomunicações.
Falando em cobertura nacional, foi criado um grupo de trabalho para analisar o roaming de emergência. Como está a correr esse processo?
Está a avançar bem e tem tido uma boa colaboração dos operadores… a empresa Altice decidiu sair do grupo, mas ele continua a funcionar. Queremos que o interesse público, que neste caso é mais do que evidente, não seja prejudicado por nenhum outro tipo de considerações que são injustificáveis sempre que estejam em causa ações que pretendem proteger vidas e bens.
Os incêndios de 2017 foram um alerta para essa necessidade?
Foi um dos exemplos em que todos nós tomámos consciência da importância das telecomunicações, que não funcionaram quando as pessoas mais precisavam delas.
E poderemos ter um roaming nacional de emergência sem a Altice?
Não. Para funcionar precisa de ter todos os operadores envolvidos. Esta é uma iniciativa que tem o patrocínio da entidade reguladora, mas também do Governo, bem como dos operadores, e esta posição da Altice, que nos surpreendeu, não terá nada que ver com o mérito desta solução. Estamos convencidos de que, quando tivermos em condições de implementar essa solução, nenhuma empresa ficará de fora.
E se ficar?
Defendo que, caso não haja possibilidade de fazer estas melhorias – que são do interesse público – através do acordo entre empresas, ele terá de ser feito por ação legislativa, através de medidas de regulação ou medidas legais que tornem obrigatório este tipo de solução.
A Anacom quer que estes acordos de roaming entre operadores não se fiquem pelas situações de emergência?
Temos dito que gostaríamos de ver em Portugal, como já existe na maioria dos países da Europa, acordos entre os operadores para facilitarem aos seus utilizadores opções de roaming. Tenho chamado a atenção para duas situações que me parecem pouco admissíveis. Por um lado, os residentes em Portugal são discriminados face aos estrangeiros que nos visitam. Estes podem conectar-se a qualquer rede, enquanto os residentes só se podem ligar ao operador com quem têm contrato. Acontece em várias zonas do País uma pessoa ficar sem rede com uma antena ao lado, mas que pertence a outro operador. Gostaríamos de ver isso corrigido.
A outra situação caricata é que, quando as comunicações de um operador falham nas zonas de fronteira, os clientes nacionais conectam-se aos operadores de Espanha. E isto envolve custos que estão a ser suportados pelos operadores portugueses.
Os preços das telecomunicações são caros em Portugal?
Os vários estudos publicados concluem que Portugal tem, em algumas das ofertas de telecomunicações, preços mais elevados que a média da União Europeia. Segundo o Eurostat, o País teve, na última década, um aumento de 12%, enquanto na União Europeia os preços baixaram 10,9 por cento. E Portugal foi o país que, durante essa década, teve o maior crescimento do preço das telecomunicações.
Um estudo da Comissão Europeia, publicado recentemente, com referência a outubro de 2018, mostra que o preço da oferta de internet entre 30 e 100 Mbps, das mais utilizadas em Portugal, era 25% acima da média da União Europeia. E nos 28 da UE, Portugal tinha o sétimo preço mais elevado. Há 21 países que têm preços de internet mais baixos que nós.
E essa é também uma realidade no caso dos serviços em pacote?
No caso do double play com internet e telefone fixo, o preço em Portugal é 16% superior à média europeia. Ainda no double play, se analisarmos a oferta de internet mais televisão, o valor é 18,8% mais elevado. No triple play – internet, telefone fixo e televisão – o preço era 12,7% superior à média da União Europeia.
Como a Anacom não pode interferir nos preços finais, o que pode fazer para impedir esta prática de tarifários elevados?
Promovendo a concorrência. Temos tomado medidas para garantir que os operadores têm custos mais baixos, que se possam repercutir na fatura final do utilizador.
Tem sido alvo de um ataque fortíssimo por parte dos operadores. Que razões levaram a esta crispação entre o regulador e as empresas de telecomunicações?
A Anacom tem tido uma trajetória de rigor, de isenção e de independência na concretização da sua missão. Tudo o que fazemos é de acordo com a lei e para cumprir a lei. O País, os contribuintes e o poder político esperam que o regulador exerça a sua missão. Isso não significa que o exercício dessa missão seja feito para desagradar ou entrar em controvérsia com quem quer que seja. As decisões podem ser criticáveis, mas todas elas têm como finalidade promover a concorrência, ou seja, permitir que todos operem em Portugal em igualdade de circunstâncias. Esta situação já foi difícil no passado, quando surgiram novos operadores a concorrer com a empresa monopolista. Hoje, essas novas empresas não podem adotar a mesma postura e não querer concorrer entre elas ou com novos operadores que cheguem ao mercado. Todas têm de ter um tratamento isento, com condições para que operem em igualdade de circunstâncias.
Segundo a lei, o nosso objetivo é a proteção dos consumidores e não só os individuais – também as empresas e os serviços públicos que querem ter um bom serviço de telecomunicações.
As operadoras acham que está a extravasar as suas competências?
A Anacom espera que as empresas reguladas tenham respeito pelo cumprimento desta missão. A Anacom não se deixa condicionar. Não podemos sobrepor o interesse particular ao interesse geral. Não será por causa desse tipo de atitudes que a Anacom deixará de cumprir a sua missão.
Só protegendo os consumidores é que as empresas de telecomunicações terão clientes satisfeitos, e eu não conheço nenhuma empresa moderna, em pleno século XXI, que não tenha como paradigma a satisfação dos clientes
E sente que tem autonomia para cumprir as suas funções?
Sinto, e essa é uma condição básica para estar nestas funções. Cumprir com o mandato que me foi dado com essa isenção, rigor e independência. Tenho ouvido muito a crítica de que a Anacom protege os consumidores. Só protegendo os consumidores é que as empresas de telecomunicações terão clientes satisfeitos, e eu não conheço nenhuma empresa moderna, em pleno século XXI, que não tenha como paradigma a satisfação dos clientes. Não faz sentido essa dicotomia, que haja empresas que não tenham como propósito ter os seus clientes satisfeitos.
A concessão do serviço postal universal termina este ano. Quando será assinado o novo contrato?
Numa iniciativa conjunta com o Governo, lançámos, no final de novembro, um processo de consulta pública sobre o futuro da prestação do serviço postal universal. Procuramos recolher da sociedade e dos operadores postais o parecer sobre o futuro do serviço.
E consegue garantir que este serviço se estenderá a toda a população?
Consigo dizer que há um claro consenso em Portugal para garantir às populações o acesso ao serviço postal onde ele não é rentável.
E como consegue garantir isso se nenhum operador quiser, por exemplo, manter um serviço numa aldeia isolada?
Se o mercado não quiser suportar esse serviço, teremos de criar condições para o garantir. O novo serviço postal universal terá de chegar a todos e com qualidade. Mas quero aproveitar para dizer que o crescimento do comércio eletrónico pode ser uma grande oportunidade para os serviços postais. Imagine que, nessas aldeias remotas, alguém tem um produto de grande qualidade que não vende porque não chega ao mercado. Atualmente, a internet pode ser uma montra desses produtos cada vez mais procurados. E os serviços postais podem fazer chegar estes produtos de forma rápida aos consumidores.
Os serviços postais e as telecomunicações sempre foram dos setores com mais queixas por parte dos consumidores. Ainda se mantém essa tendência?
Continuam a ter um número de queixas muito elevado, mas houve uma redução no primeiro semestre de 2019. Gostaríamos que esta descida se mantivesse no futuro, mas admito que ainda há muitas más práticas.
Excesso de serviço?
Portugal tem um dos preços mais altos das telecomunicações da União Europeia, segundo dados do Eurostat e da Comissão Europeia. Além disso, pagamos pacotes de serviços de que raramente usufruímos. Tem dúvidas? Veja alguns números do que é contratado e do que é realmente utilizado
Telefone fixo
A grande maioria dos pacotes de telecomunicações obriga a contratar um telefone fixo, mesmo que não precisemos dele. Segundo um inquérito da Anacom, apenas 65% das pessoas usam realmente este serviço
Canais para tudo
Há pacotes com 100, 150 ou mesmo 200 canais. No entanto, em média, cerca de 80% dos utilizadores apenas veem sete deles de forma regular
Chamadas perdidas
No serviço móvel, há cartões com 3 500 minutos de voz e 3 500 SMS incluídos. Em média, cada cliente destes pacotes usa apenas 200 minutos de chamadas e envia 195 SMS
Chamadas internacionais
Nos casos de voz fixa, existem serviços que proporcionam mil minutos de chamadas internacionais, mas apenas são utilizados, em média, cinco minutos por mês