Quanto vamos pagar de IRS? O IVA vai mudar? O gasóleo vai ficar mais caro? Os funcionários públicos vão ser aumentados? E as pensões? O défice continuará a descer? E, a dívida, quando para de crescer? Estamos a poucas horas de conhecer o que nos reserva o Orçamento do Estado para 2017, mas estes últimos dias de preparação são sempre um corrupio, com medidas que caem e outras que são inscritas à pressa. Que o digam os ex-governantes que aqui relatam a sua experiência – e alguns episódios divertidos – dos bastidores do OE.
Ano após ano, os governos andam meses à volta de um conjunto de documentos que determinam o dinheiro com que os portugueses vão viver nos tempos mais próximos. As grandes decisões, que mexem com as vidas das pessoas, são negociadas ao pormenor – ao cêntimo? – entre Lisboa e Bruxelas. Uma nova versão do Orçamento do Estado é enviada todos os anos ao Parlamento, até ao dia 15 de outubro (exceto se as eleições determinarem outro calendário). Mas a sua preparação começa em julho, muito antes da data da entrega.
A colossal tarefa não está isenta de erros nem de desvios, que ninguém adivinha quais vão ser. Há que acomodar – cortar? – despesas do Estado e calcular – aumentar? – receitas dos impostos. A folha de Excel teima em não bater certo e cada ministério empola os números para lá do razoável. O resgate de Portugal e a disciplina nas contas públicas, exigida por Bruxelas, complica ainda mais os trabalhos do Ministério das Finanças. Visto prévio, semestre europeu e tratado orçamental obrigam o ministro das Finanças a andar num virote entre Lisboa e a capital belga nas semanas – ou meses – que antecedem a aprovação. Quando, finalmente, os três documentos que formam o OE – relatório, articulado (proposta de lei) e mapas – são enviados ao Parlamento, já somam mais de 600 páginas de texto e números.
As exigências de Bruxelas já não se compadecem com os orçamentos escritos a lápis de Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças do último governo de Cavaco Silva. Hoje, seria impossível cumprir os prazos legais com articulados feitos à mão. Como observou Norberto Rosa, ex-secretário de Estado do Orçamento de Manuela Ferreira Leite, “a proposta de lei do OE para 2014 tem 345 páginas e 214 artigos. Dez anos antes, a proposta de lei tinha 97 páginas e 71 artigos”. Quem disse que a austeridade não ocupa espaço?
Entregar tarde e a más horas
Guilherme d’Oliveira Martins, ex-ministro das Finanças do último governo de António Guterres, admite que há sempre stresse nos últimos dias do OE, embora isso não seja “uma fatalidade”. “Não acredito no improviso. Dá mau resultado”, diz quem nunca deixou de dormir “nem mesmo quando era ministro das Finanças”. O seu Orçamento foi entregue no dia 15 de outubro de 2001, a meio da tarde, “sem correrias”.
Este e outros ex-governantes lembram que os funcionários do ministério chegam a estar dois ou três dias em estado de alerta permanente, a atender telefones que tocam às duas horas da manhã para esclarecer uma soma ou a ausência de um número. Os erros e atrasos podem acontecer. E aconteceram. Fernando Teixeira dos Santos, o titular das Finanças que mais orçamentos apresentou depois da adesão ao euro (cinco, de 2006 a 2011), foi recordista nos atrasos. Em 2008, entregou no Parlamento, com três horas de atraso, uma pen com o OE incompleto, sem mapas e sem PIDDAC. O prazo foi cumprido, mas a totalidade do Orçamento só ficou disponível no dia seguinte. Um ano depois, os documentos deram entrada depois das 22 horas. E, em 2010, o difícil orçamento de um País à beira do resgate chegou ao Parlamento já depois das 23h30, em cima da hora limite. O presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, recebeu a pen visivelmente irritado e nem esperou que os repórteres de imagem se posicionassem para registarem o momento da entrega. E foi um ministro cansado que garantiu aos deputados que “apesar de praticamente não dormir nestas duas noites, podem telefonar desde já, durante esta noite”.
Desses tempos, Emanuel dos Santos, ex-secretário de Estado de Teixeira dos Santos, justifica as entregas tardias, embora dentro dos prazos, com o fecho demorado das “negociações políticas”.
“Temos uma tradição de entregar na Assembleia da República não só a Proposta de Lei e os Mapas da Lei mas também um Relatório muito circunstanciado em matéria de mapas orçamentais, o que torna o exercício muito pesado em termos de processamento de informação”, disse à VISÃO. “A conclusão dos trabalhos acaba por ser sempre tardia”, acrescentou.
O melhor tempo de entrega pertence sem dúvida a Bagão Félix, ministro das Finanças no curto governo de Santana Lopes e autor do Orçamento para 2005 (que não executou, tal como Oliveira Martins, porque os respetivos governos caíram pouco tempo depois). “Entreguei o documento no Parlamento no dia 15 de manhã e marquei a conferência de imprensa para o início da tarde. A minha mulher faz anos nessa data e não quis atrasar-me”, recorda.
A disciplina que a troika impôs às contas públicas parece ter contagiado os orçamentos mais recentes. Com Vítor Gaspar e com Maria Luís Albuquerque não houve atrasos nem sobressaltos de última hora. Houve, sim, enormes aumentos de impostos e cortes colossais da despesa. Mas isso são outras histórias. Hélder Reis, secretário de Estado adjunto e do Orçamento, entre julho de 2013 e novembro de 2015, lembra que a preparação do OE “começa relativamente cedo”, com a elaboração do Programa de Estabilidade e Crescimento [PEC], em abril. A partir daí, os cenários vão sendo corrigidos, com os dados da evolução da economia e da execução orçamental, exigindo por vezes medidas adicionais de consolidação das contas públicas. “Não tem necessariamente de implicar stresse ou correrias”, mas é certo que os trabalhos vão mesmo até ao limite do prazo. E não há memória de um Governo que se tenha antecipado ao último dia do prazo.
Saber dizer “não” aos colegas de Governo
Nos últimos anos, o Ministério das Finanças parece ter ligado o ‘complicómetro’ em matéria orçamental, muito por culpa de Bruxelas. Emanuel dos Santos recorda como todo o exercício orçamental tem estado subordinado “ao objetivo do défice, que já antes de 2011 se encontrava definido no então chamado Programa de Estabilidade e Crescimento”.
Antes da chegada da troika, a preparação começava com o cálculo das receitas fiscais e, a seguir, do teto da despesa. Só depois era apurada a verba global para cada ministério, cuja distribuição entrava, não poucas vezes, “na esfera da decisão política”. “A maior ou menor dificuldade de negociação variava de ministério para ministério”, diz o ex-secretário de Estado dos governos de José Sócrates, recordando o papel do primeiro-ministro na decisão final sobre as verbas a atribuir a cada membro do Governo. Sem o apoio do chefe do Governo, o ministro das Finanças corre o risco de ficar demasiado fragilizado perante os colegas.
“O ministro das Finanças é sempre o mau da fita. É o polícia mau”, refere Bagão Félix. Ainda hoje, os inquilinos do Terreiro do Paço gastam meses a lidar com as angústias dos outros ministros perante a escassez de verbas para fazer obra e a necessidade de trazer as contas públicas equilibradas. Em vésperas de um OE, a relação com os colegas de Governo fica “mais difícil”, assinala Oliveira Martins. “É sempre duro fazer um orçamento, mas o argumento europeu é decisivo”, lembra. “Há o prémio, para quem tem bons projetos de investimento, e o castigo, para quem não corta na despesa corrente.”
Hélder Reis esteve ao lado de Maria Luís Albuquerque no desenho do Orçamento de 2014, que preparou a “saída limpa”. O homem que convenceu a troika de que as contas estavam certas e as finanças públicas equilibradas, depois de três anos de doses maciças de austeridade, explicou à VISÃO como, numa negociação simultaneamente “política e técnica”, é necessário identificar com rigor as “pressões e poupanças” em cada ministério. “Tive sempre dos colegas do Governo toda a colaboração, compreensão e apoio”, diz o atual assessor da Casa Civil do Presidente da República. “De um modo geral, os tempos foram difíceis para todos”, reconhece.
Negociar com a oposição em troca de… um queijo
Os governos minoritários que tiveram de fazer manobras políticas não guardam boas recordações. Guilherme d’Oliveira Martins desenhou o primeiro OE da moeda única, mas o documento ficou conhecido não como o orçamento do euro mas sim como o (segundo) orçamento do queijo Limiano.
Pragmático, António Guterres, que ficou a um deputado de alcançar a maioria, negociou, por duas vezes, a não oposição de Daniel Campelo, deputado do CDS eleito por Ponte de Lima, aos OE de 2001 e 2002. O ex-primeiro-ministro teve de garantir que a marca de queijo Limiano não sairia do concelho, boicotando os planos de uma multinacional que queria transferir a produção para Vale de Cambra. De pouco lhe valeu. Pouco depois, Guterres demitiu-se invocando o “pântano” em que se encontrava o País…
Bagão Félix não precisou de negociar com a oposição. O seu governo tinha o apoio de uma maioria parlamentar, formada entre o PSD e o CDS. E fez o pleno: baixou as taxas de IRS e aumentou salários e pensões, ao mesmo tempo que mantinha o défice abaixo dos 3% (com medidas extraordinárias). Mas o seu orçamento – que não executou porque o governo entretanto caiu – foi considerado pela oposição como “expansionista”. O ex-ministro diz ter feito o orçamento que queria, sem grandes dificuldades, apesar das pressões dos lóbis para reduzir a taxa de IVA em certos produtos. Não cedeu às pressões e não mexeu naquele imposto sobre o consumo, mas arranjou um braço de ferro com Bruxelas, que durou anos, quando decidiu baixar o IVA nas fraldas para incontinentes.
Sorte distinta teve a equipa que lhe sucedeu nas Finanças, já no final do mandato. O Orçamento de 2011, redigido por um governo sem maioria no Parlamento, “foi precedido de negociações com o PSD, que o viabilizou”. Era o tempo dos PEC 1, 2 e 3 – o quarto foi “chumbado” por Passos Coelho –, e o entendimento entre os dois maiores partidos não foi fácil. Ao mesmo tempo, o País saltava de uma crise financeira para uma crise da dívida soberana, que obrigou um relutante José Sócrates a pedir um resgate à União Europeia (UE). Recordando o desequilíbrio orçamental desses anos, Emanuel dos Santos salienta como “o PSD insistia sobretudo no corte da despesa, mas escusando-se a apontar onde se devia cortar”. Por isso, o OE 2011, que acabou por ser “rasgado” pela troika, “foi um exercício tecnicamente desinteressante e pouco útil para o País”.
Hélder Reis, membro de um governo de coligação maioritário no Parlamento, não teve de esperar pelas negociações com os partidos da oposição. Mas ele e a ministra tiveram a oposição do… Tribunal Constitucional. “Os momentos de maior pressão surgiram quando algumas das medidas apresentadas nos orçamentos, por serem inconstitucionais, tinham de ser substituídas por outras.”
O ex-governante deixou a sua marca na nova Lei de Enquadramento Orçamental, elaborada de acordo com as recomendações da troika. É em 2019, quando a lei for integralmente aplicada, que as principais mudanças se farão sentir, com a harmonização dos processos de planeamento e a medição dos impactos económicos e financeiros das opções políticas.
Dizer “sim” a Bruxelas… sem pôr em causa o País
Os tempos eram diferentes quando Bagão Félix defendeu o OE de 2005 num Ecofin onde tinham assento pesos-pesados da política europeia, como Nicolas Sarkozy ou Gordon Brown. Como seria se fosse hoje? “Há o Tratado Orçamental, o visto prévio. Faz toda a diferença. O que era uma negociação passou a ser uma tutela. Não há soberania orçamental”, insiste.
Em 2001, ainda não havia tratado orçamental mas era necessário cumprir os critérios de Maastricht. Um objetivo central impôs-se logo à partida nas contas feitas por Oliveira Martins: a meta do défice orçamental não podia ir além dos 3 por cento. Agora, o ex-ministro acredita que é muito mais difícil fazer orçamentos. “A decisão última é do Parlamento, mas Bruxelas tem de dar o seu aval. O ministro anda num vai e vem entre Lisboa e Bruxelas, mas tem de ter inteligência para apresentar os melhores resultados.”
Emanuel dos Santos exerceu funções nos dois governos de José Sócrates, ainda antes da criação do semestre europeu. “A articulação com Bruxelas [até 2010] era feita no âmbito do PEC”, explicou, sem adiantar pormenores.
Mesmo depois da partida da troika, Hélder Reis está convencido de que “a margem de manobra” continua a ser “muito reduzida” em relação aos objetivos do défice e da dívida que decorrem do Tratado Orçamental e do Programa de Estabilidade. Já a margem de manobra para a escolha das “opções políticas”, para alcançar esses mesmos objetivos, é agora “maior”. É o que veremos, quando o atual Governo apresentar no Parlamento o seu orçamento para o próximo ano.
Bagão Félix O ministro que discordou… de si próprio
António Bagão Félix encontrou o orçamento já em marcha quando tomou posse como ministro das Finanças, em julho de 2004, durante o curto governo de Santana Lopes. Os números com que se deparou, quando entrou no edifício do Terreiro do Paço, não lhe eram totalmente estranhos. Afinal, Bagão tinha trocado a pasta da Segurança Social, no governo de Durão Barroso, pela das Finanças no executivo que lhe sucedeu de imediato. Para o seu antigo lugar foi nomeado Fernando Negrão, que não hesitou em enviar para o novo ocupante do Ministério das Finanças os rascunhos com os cálculos deixados em cima da secretária pelo antecessor…
É um divertido Bagão Félix que hoje recorda como pôs em causa, enquanto ministro das Finanças, a proposta de orçamento para a Segurança Social preparada por si próprio enquanto ministro da Segurança Social. “Basta que o contexto mude para vermos as coisas de maneira diferente. Claro que me ri quando percebi que estava a discordar de mim próprio… mas mesmo assim alterei algumas coisas.”
Conta-me como foi: Oliveira Martins
Excertos do discurso lido por Oliveira Martins, ministro da Fazenda, durante a crise financeira de 1891/92, na Câmara dos Deputados, a 20 de janeiro de 1892
“[Em 1892, Portugal tinha] um déficit que é de quase 30 por cento das receitas! Se alguém imagina que um indivíduo, uma família ou uma nação pode existir, pode viver, pode manter-se gastando mais um terço do que ganha, creio que quem assim pensar, como nós infelizmente pensámos, durante largos anos, será levado à situação tristíssima em que nos encontramos (Apoiados.) É por isto, Sr. presidente, que o papel que me foi distribuído é o mais ingrato, e que eu, contando desde já com a sorte que me espera, não duvidei todavia de aceitar este encargo, por isso mesmo que ninguém o queria neste momento. Chegámos a uma situação em que as medidas médias, os paliativos, são absolutamente improcedentes (Apoiados.) Ou nós conseguimos, por um acto de energia, por um movimento de dedicação patriótica, equilibrar o orçamento imediatamente, ou estamos perdidos. (Apoiados.) Isto é que é necessário que esteja na consciência de todos; ou nós conseguimos equilibrar o orçamento do estado à custa dos sacrifícios, sejam eles quais forem, (Apoiados.) ou estamos irremediavelmente perdidos. (Apoiados.)”
(Artigo publicado na VISÃO 1232, de 13 de outubro)