Se os escândalos no Ministério das Finanças pagassem imposto, Maria Luís Albuquerque tinha os cofres cheios. Da “lista VIP” ao “striptease ” da máquina fiscal, o relatório da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), revelado há dias, expôs as fraquezas da Autoridade Tributária (AT) e indicou motivos de sobra para cobrar responsabilidades governativas. Entre outras situações alarmantes, detetaram-se medidas e comportamentos à margem da lei protagonizados por funcionários de topo do Fisco, fragilidades e amadorismo na proteção da confidencialidade dos contribuintes e acessos sem restrições à nossa vida fiscal por mais de duas mil pessoas externas à atividade das Finanças. Nesse número, estão incluídos três utilizadores que acederam aos dados fiscais do primeiro-ministro e mais 270 ligados às consultoras Accenture, Novabase e Opensoft. A polémica surge num quadro de vazio legislativo sobre estas matérias sensíveis. O cenário é “assustador”, garante Luís Antunes, diretor do Centro de Competências em Cibersegurança e Privacidade da Universidade do Porto. “Confirma-se que a AT é uma nulidade em termos de proteção de dados. Se somos tratados assim, então, pelo amor de Deus, é preferível voltarmos ao papel!”, desabafa o investigador credenciado pelo Gabinete Nacional de Segurança para aceder a informação confidencial.
Aquele expert da Agência Europeia para a Segurança das Redes e da Informação (ENISA, no original) não é a única “autoridade ” escandalizada com as revelações sobre as fragilidades da AT, como se verá. De resto, há vários anos que a CNPD vem coligindo queixas, pareceres e informações que comprovam o acesso pouco ou nada controlado por parte de empresas privadas a dados variados e sensíveis do sistema judicial, do recenseamento eleitoral, das polícias ou sobre a saúde dos portugueses, entre outros.
Está a subcontratação do Estado a tornar-se um risco para todos nós? “O panorama geral da Administração Pública em relação à proteção de dados é muito mau”, admite Luís Antunes. “A área que conheço melhor é a da saúde e está ao mesmo nível da AT. Em relação aos outros setores, vivo angustiado.
Não os conheço e não sei se os quero conhecer “, dramatiza.
O ‘euromilhões’ das Finanças
Façamos pause, por agora. Fixemo-nos nas três empresas privadas da área tecnológica com autorizações de acesso “francamente excessivas” à vida contributiva dos portugueses, de acordo com a CNPD. Além de terem garantido “via verde” do Estado, em regime de outsourcing, para consultar a nossa vida fiscal, a Accenture, a Novabase e a Opensoft garantiram, desde a entrada em funções deste Governo, a 21 de junho de 2011, pelo menos, 170 contratos por ajuste direto com a AT no valor aproximado de 15 milhões de euros, segundo os montantes apurados a partir do portal Base (ver infografia). São quase quatro contratos por mês, em menos de 4 anos.
Mas poderão ser mais, pois a publicação dos mesmos nem sempre é feita no dia em que são celebrados. Segundo fontes da CNPD, há mais de uma dezena de empresas do género a fornecer serviços à AT, embora os números de utilizadores com acesso à base de dados sejam “mais razoáveis”.
O valor obtido pelas três consultoras referidas pagaria a ajuda humanitária adicional da União Europeia à Ucrânia, o empréstimo que a Administração dos Portos de Sines e Algarve obteve do Banco Europeu de Investimento e o orçamento de Cabeceiras de Basto para este ano. Mas não misturemos alhos com bugalhos. “Não conheço o conteúdo dos contratos, mas posso garantir que uma pequena fração desse valor resolvia, nas calmas, os problemas de segurança da AT”, ilustra o investigador Luís Antunes, que condena os decisores políticos de várias pintas e espécie: “O Estado é muito mau gestor de recursos humanos. Tem nas universidades pessoas que não são propriamente estúpidas, que já deram mostras de capacidade científica, mas que estão desmotivadas e têm as suas carreiras congeladas.
Podiam estar a prestar bons serviços na Administração Pública”, defende.
Para Alexandre Sousa Pinheiro, perito nacional da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais, “os custos da proteção de dados não podem ser economicistas e têm de ser assumidos pelo poder político”, defende.
“Não é embaratecendo direitos fundamentais que protegemos a democracia.
Ou então passamos a contratar carcereiros privados e fechamos as prisões”, exemplifica este antigo adjunto e ex-assessor de vários governos. “Lamento que não haja dinheiro para refazer a capacidade da AT a vários níveis, mas sobrem verbas para pagar principescamente a empresas que, além de tudo, põem em risco o sigilo fiscal. Menos de 15 milhões de euros chegariam para ter soluções de software apropriadas para o quotidiano da AT e ter mais e melhores recursos humanos”, reage Paulo Ralha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores dosImpostos.
Bem-vindo ao ‘paraíso’ fiscal
Mesmo tratando-se de contratos públicos celebrados com a AT, as empresas em causa não quiseram comentar o relatório da CNPD e escudaram-se na relação de confidencialidade com os clientes para recusar fornecer mais elementos à VISÃO. Apenas a administração da Opensoft admitiu que a sua principal área de negócio é a fiscal, na qual presta serviços desde 2001.
De julho de 2011 até maio de 2014, a consultora celebrou 61 contratos com o Fisco superiores a 5,6 milhões de euros. Entre outras aplicações, o histórico da Opensoft inclui a construção do Portal das Finanças, a declaração modelo 3 do IRS e a “Fatura da Sorte”. A sua presença é também vasta em setores da Administração Pública: já trabalhou, por exemplo, para os ministérios do Ambiente, Educação, Ordenamento do Território e Energia, e Secretaria de Estado da Modernização Administrativa.
A CNPD identificou “mais de 60 utilizadores ” da empresa com permissão de acesso a dados contributivos, embora a consultora, no email enviado à VISÃO, faça referência a uma equipa de 52 colaboradores.
A multinacional Accenture é outra das que tem na AT um bom cliente. No mesmo período de referência, garantiu 56 contratos e quase cinco milhões de euros, parte deles relacionados com várias aplicações para as áreas da justiça, contencioso tributário e execuções fiscais. José Galamba de Oliveira é o presidente da Accenture Portugal e ocupa-se dos projetos da empresa no setor financeiro em África, Espanha e Israel. Banca, seguros, saúde, comunicações, energia, construção, transportes e principais organismos da Administração Pública são áreas de presença quotidiana da Accenture. José Galamba de Oliveira foi uma das personalidades sem militância partidária que colaborou na elaboração do programa de Governo do PSD.
Teve, aliás, de ser “este” Ministério da Justiça a resolver um problema herdado do executivo socialista: o pagamento de 1,1 milhões de euros por uma aplicação informática da Accenture para a gestão de inquéritos crime da Procuradoria-Geral da República, que acabou por não ser instalada.
Dois antigos quadros da empresa passaram, entretanto, pela direção da Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública, tutelada pelo Ministério das Finanças, à época de Vítor Gaspar. Um deles, Gonçalo Caseiro, é, desde o ano passado, vice-coordenador da Estratégia para a Reorganização dos Serviços de Atendimento da Administração Pública. No seu relatório, a CNPD identificou 120 utilizadores da Accenture com acesso a dados sensíveis dos contribuintes portugueses. “É uma loucura.
Deve ser do porteiro à administração”, ironizam fontes do setor.
Se houver queixas…
Por fim, a Novabase. Mais de 4,3 milhões de euros e 53 contratos celebrados com a AT na vigência do Governo PSD/CDS. Um dos maiores ajustes diretos da empresa, superior a 211 mil euros, nem sequer entra naquelas contas: foi celebrado em abril de 2012 para desenvolver dois sistemas de controlo da execução orçamental no âmbito do “memorando da troika”. A empresa tem boas ligações políticas: Luís Mira Amaral (ex-ministro da Indústria) é administrador, António Vitorino (ex-governante socialista), presidente da mesa da assembleia-geral, e João Rebelo (deputado do CDS), consultor.
Os interesses da Novabase na Administração Pública abarcam, entre outros, setores dos ministérios da Educação, Negócios Estrangeiros, Defesa, Justiça, Obras Públicas, Transportes e Comunicações. A empresa foi também escolhida pelo ex-ministro Jorge Coelho para auditar as eleições primárias no PS. O relatório da CNPD refere 90 utilizadores da empresa com acesso à vida fiscal dos portugueses. “Nesta matéria é a desresponsabilização total”, comenta Luís Antunes, também colaborador do Gabinete Nacional de Segurança, da CNPD e da Procuradoria-Geral da República na área do cibercrime. “Quando temos dois mil utilizadores externos e desconhecemos se partilham credenciais ou se é segura a forma como as guardam, estamos no domínio do inacreditável. Se houver queixas, a AT vai ter muita dificuldade em encontrar os responsáveis “, alerta.
Pedidos esclarecimentos ao Ministério das Finanças em relação a estas e outras matérias, a resposta foi, de novo, o silêncio. Refira-se, a propósito, que a tutela ignora, há quase um mês, as perguntas e solicitações da VISÃO.
Nesta fase, entretanto, a CNPD ainda nem sequer conhece os contratos da AT com as três empresas. Mas na comissão desconfia-se que as normas de proteção de dados, obrigatórias por lei, sejam uma miragem.
“Este é um mundo que vive à margem da lei ou na legalidade paralela”, refere Alexandre Sousa Pinheiro. “Permitir acessos externos a dados sensíveis sem intervenção da CNPD e sem serem conhecidos os contratos não é uma política de proteção de dados adequada”, aponta o investigador do Centro de Investigação de Direito Público, que vê no relatório da CNPD “a confirmação do que se temia”.
E pensar que tudo começou com a polémica lista de contribuintes VIP. A tal que, de tão pequenina, parafraseando o ex-ministro das Finanças Bagão Félix, acabou, afinal, por parir uma montanha.