“A jovem mulher que aceitou falar connosco treme como uma folha”, começa por escrever Marie Vaton, contando que aquela é a primeira vez que Joanna fala com um jornalista e que está “aterrorizada”.
Sexta-feira, dia de descanso no Qatar. Joanna é filipina, tem 26 anos e é empregada doméstica em casa de uma família rica, nos arredores de Doha, a capital. “É de noite e a escuridão tapa parcialmente a sua cara, emoldurada por longos cabelos castanhos”, descreve a jornalista da revista francesa Nouvel Observateur.
Sempre em inglês, Joanna sussurra-lhe que tem de tomar conta de quatro crianças pequenas, das 7 da manhã até à meia-noite, todos os dias, “sem pausa”, e que “é difícil”.
Repete ser bem tratada, “o problema é o ordenado”: apenas 1 300 riais por mês (cerca de 340 euros), por vezes pagos com atraso. O dinheiro não chega para alimentar os dois filhos pequenos que deixou com a sua mãe em Bohol, uma das maiores ilhas das Filipinas.
“De repente”, conta a jornalista, abre-se uma porta no corredor escuro no rés-do-chão da moradia onde a filipina trabalha, em Al Maamoura, uma zona com muitas escolas internacionais. “Uma mulher espreita e acena a Joanna, que sussurra: ‘Lamento, tem de ir embora agora, é perigoso ficar aqui.’”
Falar sai caro
Joanna não se chama Joanna. O seu nome foi alterado para sua proteção, tal como os de Sharmin, Ishan, Emma, Kallal e Kamil cujos dramas entrevemos na reportagem do Nouvel Obs.
“No Qatar, dizer a verdade sai caro”, lembra Marie Vaton. “Uma indiscrição, uma palavra errada, pode custar a ‘deportação’ dos trabalhadores estrangeiros.”
Marie Vaton é uma jornalista experiente que escreve habitualmente sobre migrantes, violência e crianças. Em março de 2021, publicou o livro Enfants placés – Il était une fois un naufrage (ed. Flammarion), resultado de uma investigação de dois anos no mundo da proteção da criança no seu país.
Em França, uma criança morre de cinco em cinco dias às mãos dos seus pais. Em 2019, as autoridades francesas registaram mais de 7 mil queixas de violação de menores, ou seja, uma violação por hora. Que realidade está por detrás destes números?, quis saber.
No Qatar, percebe-se que esta jornalista nunca iria pedir aos seus entrevistados para darem a cara ou revelarem os seus nomes e locais de trabalho.
“O único [trabalhador imigrante] que ousou falar da sua vida pagou um preço elevado”, lembra Marie Vaton. “Detido em maio de 2021 por ‘associação com potências estrangeiras com vista a desestabilizar o país’, e preso durante três semanas antes de ser deportado, Malcolm Bidali, um antigo segurança queniano, deve a sua libertação apenas à força das ONG.”
Tratada ‘como um cão’
A realidade dos empregados domésticos parece ser ainda pior, conclui-se ao ler o relatório Why do you want to rest? (Por que queres descansar?) que a Amnistia Internacional tornou público em 2020.
Três anos antes, tinha entrado em vigor uma lei sobre o trabalho doméstico no Qatar, que limitava o serviço a dez horas por dia, introduzia pausas diárias obrigatórias, um dia de descanso semanal e férias pagas. Mas as 105 mulheres entrevistadas pela Amnistia contaram abusos de toda a ordem. E relataram terem encontrado obstáculos quando decidiram denunciar abusos e atos criminosos às autoridades. “Existe impunidade generalizada”, lemos.
Das 105 empregadas domésticas ouvidas, 90 disseram que trabalhavam regularmente mais de 14 horas por dia; 89 trabalhavam regularmente sete dias por semana; e 87 tinham o passaporte confiscado pelos patrões. Metade delas trabalhava mais de 18 horas por dia, e a maioria nunca tinha tido um único dia de folga.
Algumas mulheres também contaram não terem sido pagas corretamente, enquanto 40 descreveram terem sido insultadas, esbofeteadas ou cuspidas. Uma mulher disse ter sido tratada “como um cão”.
Cinco mulheres contaram ainda terem sido abusadas sexualmente pelos seus patrões ou por familiares que estavam de visita. O abuso sexual variou entre assédio, carícias e violação. E a maioria sentiu que não podia queixar-se à polícia, por medo de represálias por parte dos seus empregadores.
Graves violações da lei?
Julia, que obviamente não se chama Julia, denunciou um caso de abuso sexual à polícia. O filho do patrão tinha ido um dia lá a casa e tentado violar uma outra empregada doméstica. O homem ofereceu dinheiro às duas mulheres para comprar o seu silêncio, mas elas decidiram fazer queixa.
O investigador encarregado do caso descartou as alegações de Júlia e da sua amiga, acusando-as de “inventarem histórias”. O caso foi arquivado e o patrão delas comprou-lhes bilhetes de regresso a casa, em troca de assinarem uma declaração em árabe que não compreenderam.
“Como parte em vários tratados internacionais que proíbem violações dos direitos humanos, incluindo a recente ratificação dos Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos (ICCPR) e sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais (ICESCR), o Qatar é obrigado a proteger todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores domésticos que vivem e trabalham no seu território, e deve proporcionar soluções quando esses direitos estão a ser violados”, lembrava a Amnistia Internacional.
Instado a comentar as conclusões do relatório sobre as empregadas domésticas, o Estado do Qatar respondeu, através do Gabinete de Comunicações do Governo, que, provando-se a veracidade das alegações, elas constituíam graves violações da lei e deviam ser tratadas em conformidade.
“O Ministério do Desenvolvimento Administrativo, Trabalho e Assuntos Sociais (MADLSA) está pronto a trabalhar com a Amnistia para investigar as alegações e assegurar que todas as partes culpadas sejam responsabilizadas”, garantiu, lembrando: “As políticas laborais do Qatar estão constantemente a ser revistas, incluindo as relacionadas com os trabalhadores domésticos.”
E mais: “Esta é uma área de reforma laboral com muitos desafios complexos, alguns dos quais ainda têm de ser ultrapassados. O MADLSA está a trabalhar com os seus parceiros locais e internacionais para resolver estes desafios e fornecer soluções que tragam benefícios a longo prazo para os trabalhadores domésticos e os seus empregadores.”
‘Sharmin chora de vergonha’
Esta resposta chegou no final de outubro de 2020, há mais de dois anos. Nessa altura, havia 173 mil trabalhadores domésticos no Qatar. O número poderá ter diminuído, mas não os abusos.
Na sua reportagem, Marie Vaton fala-nos de Sharmin, que uma noite gasta os seus únicos dez minutos de descanso diários para se encontrar com ela. Um homem de 40 anos que se desfaz em lágrimas ao contar os últimos cinco anos passados ao serviço das quinze pessoas que moram na casa onde trabalha.
No Qatar, quinze pessoas significam frequentemente quinze carros para lavar “todos os dias, sem exceção”. E ainda tratar da limpeza da casa, da roupa da família e, por vezes até cozinhar. “Tudo isto por 700 riais por mês (184 euros) e sem um único dia de folga, apesar das promessas iniciais do seu patrão”, sublinha a jornalista.
Sharmin dorme numa cabana ao ar livre e sem ar condicionado. E sabe que pode ser acordado a meio da noite, para passar a ferro uma camisa, reaquecer comida ou limpar retretes.
“Se Sharmin chora, é porque ele também tem vergonha. Tem vergonha de ser espancado, assobiado e, por vezes, tratado ‘como um cão’, pois endividou-se para proporcionar um futuro aos seus filhos que ficaram no Bangladesh com a sua mulher. Ele gostaria de mudar de emprego, mas como? O seu passaporte foi confiscado à chegada.”
O Nouvel Obs traz-nos ainda a história do indiano Ishan, que depois de anos como escravo faz-tudo em casa de multimilionários (uma casa com 28 pessoas e ele o único empregado), acabou despedido por ter chumbado na carta de condução. Agora não sabe o que fazer porque os patrões não lhe devolveram o passaporte.
O sistema kafala
O bangladeshiano Kallal é gerente num supermercado e está a ver se aguenta mais dois anos no Qatar. Há cinco anos, foi contratado como gerente de um supermercado por 1 400 riais por mês (369 euros). Marie Vaton conta que ele teve recentemente uma oferta para mudar de emprego, ganhando mais 1000 riais (264 euros), mas o seu patrão não assinou a necessária autorização de saída. Sendo libanês, também ele depende de um kafeel, um “patrocinador” qatari.
O kafala é um sistema que vincula legalmente os trabalhadores as suas empresas ou patrões. Em árabe, kafala significa garantias. Sem este sistema de patrocínio, que existe em vários países, os migrantes não podem entrar no país ou obter autorizações de residência.
Falta escrever que, em 2017, o Qatar entrou num programa de cooperação técnica de três anos com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), comprometendo-se a implementar um sistema contratual para substituir o sistema kafala, incluindo a renovação das autorizações de residência diretamente com os trabalhadores migrantes em vez de ela ser feita através dos seus empregadores.
E, em setembro de 2020, a lei foi alterada de forma a permitir aos trabalhadores migrantes mudarem de emprego antes do final dos seus contratos, sem primeiro obterem o consentimento do empregador – um dos aspetos-chave do sistema kafala que pode dar origem a trabalho forçado. Mas, na prática, o kafala continua a existir no terreno e os trabalhadores ficam sujeitos às ordens de quem os emprega, sejam elas justas ou injustas, legais ou ilegais.
Deixado sozinho no deserto
Aquilo Marie Vaton nos conta sobre o nepalês Kamil, de 22 anos, contratado para guardar uma manada de gado, no meio do deserto, a milhas de Doha, vai muito além do sistema kafala.
“Dorme numa cabana pré-fabricada, sem água, ar condicionado ou eletricidade. Sozinho. Todos os meses, uma pick-up vem buscar os seus 1 000 riais e envia-os por vale postal à sua mãe e irmã, que ficaram a viver no bairro de lata onde ele cresceu, no Nepal.”
Kamil não pode abandonar a quinta, conta à jornalista francesa, e anseia pelo dia em que o seu chefe “talvez” o leve dali. “Kamil gostaria que eu ficasse mais tempo: em quatro anos nunca falou com ninguém durante mais de vinte minutos. E eu sou a primeira mulher que ele vê.”
Só Emma parece ter escapado mais ou menos incólume de um destino de verdadeira escravidão.
Há cinco anos a trabalhar como esteticista ao domicílio, esta filipina de 47 anos diz que já não se deixa enganar. “Um dia, no meio de uma massagem, um homem agarrou-lhe as mãos e deitou-se em cima dela. Desde então”, lemos no Nouvel Obs, “Emma estabelece as suas regras: ‘Exijo que as mulheres dos meus clientes estejam presentes enquanto trato os seus maridos’.”
Antes de trabalhar no Qatar, Emma era empregada doméstica na Arábia Saudita. “No primeiro dia”, contou a Marie Vaton, “a senhora ficou zangada e esbofeteou-me. Fiquei tão surpreendida que não disse nada. No dia seguinte, ela gritou comigo e pontapeou-me, cuspindo-me na cara. Olhei-a então nos olhos e disse: ‘Senhora, se não sou suficientemente boa para si, encontre outra pessoa’. Ela pediu desculpa e nunca mais o fez. Se eu não tivesse dito nada, quanto tempo teria durado?”
Emma diz que no Qatar as trabalhadoras domésticas servem muitas vezes de “amantes” dóceis dos seus maridos ou “iniciadora” dos filhos. “E quando engravidam, é a Madame que as manda embora, denunciando-as à polícia.”
‘Esta lei é cruel’
Nada disto é novidade para o resto do mundo.
No seu último relatório mundial, a ONG Human Rights Watch começa por notar que no Qatar se mantêm certos elementos “abusivos” do sistema kafala.
Nomeadamente, o estatuto legal do trabalhador migrante permanece ligado a um empregador específico, sendo que este pode aplicar, renovar ou cancelar a sua autorização de residência. E “fugir” ou deixar um empregador sem autorização continua a ser um crime.
“Os trabalhadores, especialmente os trabalhadores mal remunerados e os trabalhadores domésticos, dependem frequentemente do seu empregador não só para os seus empregos, mas também para a habitação e alimentação”, lê-se.
“Confiscações de passaportes, elevadas taxas de recrutamento e práticas enganosas de recrutamento permanecem em grande parte impunes (…) Tal impunidade e aspetos remanescentes do sistema kafala continuam a conduzir a abusos, exploração e práticas de trabalho forçado.”
A realidade é tão abusiva que a Igreja alemã, através da ONG Missio, lançou uma campanha quem tem à frente a freira filipina Mary John Mananzan, envolvida no passado em muitas batalhas no país e no estrangeiro, lemos no Asia News. “Situações de exploração que fazem fronteira com a escravatura não dizem apenas respeito aos trabalhadores do Mundial, mas também a muitos trabalhadores domésticos migrantes empregados pelas famílias de cidadãos ricos do Qatar”, lembram na ONG.
A Missio também denuncia os abusos e as violações que “nove em cada 10 mulheres” sofrem no Qatar. A sua petição Proteja as Mulheres no Qatar deve, por isso, continuar após o Mundial. “Esta lei é cruel para as vítimas! Basta! Tem de ser revogada”, pediu a Irmã beneditina Mary John, em vésperas do Mundial a que mostrou um cartão vermelho.